A SOLIDARIEDADE COM O POVO DA COLÔMBIA É UMA EXIGÊNCIA DA HISTÓRIA

A decisão do governo Obama de instalar na Colômbia sete bases militares dos Estados Unidosinsere-se na estratégia de dominação mundial da nova Administração norte-americana. Odiscurso de matizes humanistas do actual Presidente e uma campanha de propagandamassacrante contribuíram para que milhões de pessoas acreditassem que a política imperialde George Bush seria substituída por uma política de paz. Tal convicção é desmentida pelarealidade.

Ao declarar que a primeira prioridade da sua política exterior é vencer a guerra noAfeganistão, Obama abriu a porta a uma escalada de violência na Ásia Central. Por si só, anomeação do general Stanley Mc Chrystal – um criminoso de guerra – para comandanteoperacional na Região é esclarecedora das opções do Presidente dos EUA num conflito quetraz à memória do povo norte-americano os fantasmas e traumas do Vietnam.

Na América Latina, as iniciativas que confirmam a volta a uma política “musculada” sãotambém inquietantes. O golpe em Honduras foi concebido e montado em reuniões realizadasna Embaixada dos EUA em Tegucigalpa. A presença, agora permanente, da IV Frota daUSNavy em águas sulamericanas traduz igualmente o objectivo de impor por meios militaresa vontade de Washington em países que recusem submeter-se ao poder imperial.

Nessa estratégia, a Colômbia de Álvaro Uribe desempenha um papel fulcral.

O acordo já firmado permite a instalação de sete bases norte-americanas: três da ForçaAérea, em Palanquero, Malambo e Apiay; duas da USArmy em Tolemaida e Larandia; e duasda USNavy em Cartagena e Bahia Málaga.

A Colômbia, como sublinhou o Partido do Pólo Democrático, foi convertida por este acordo“numa plataforma para a consolidação e a expansão bélica desta politica que afecta não só aestabilidade dos governos democráticos e progressistas como os projectos de integraçãolatino-americana e do Caribe”.

Obama não inovou, deu continuidade a um projecto ambicioso cuja execução foi iniciada porClinton e Bush. A Venezuela bolivariana é o alvo principal. Cercam hoje a Venezuela basesmilitares dos EUA localizadas em seis países da Região: El Salvador, Honduras, Costa Rica,Panamá, Peru e Paraguai. A elas se somam as de Aruba e Curaçao no Caribe holandês, as dePorto Rico e a de Guantanamo, em Cuba. Na Colômbia, já existem há muito três bases dosEUA, a de Arauca, a de Larandia e de Três Esquinas.

Foi para denunciar a ameaça representada pela instalação das novas bases norte-americanasque se realizou em Bariloche, na Argentina, uma Cimeira extraordinária da União das NaçõesSul Americanas – UNASUL. O objectivo não foi, porém, atingido. A Declaração Final, inócua,nem sequer menciona expressamente a Colômbia e os EUA. A reunião foi sabotada por Lulaque chegou a ser grosseiro ao dirigir-se a Chavez e a Rafael Correa e se absteve de criticarUribe.

É oportuno recordar que durante a Administração Clinton o Pentágono elaborou um plano deintervenção militar directa na Colômbia .O pretexto invocado seria o combate aonarcotráfico, mas o objectivo era a aniquilação das Forças Armadas Revolucionárias daColômbia-FARC e do Exército de Libertação Nacional-ELN. Na operação, sugerida pelo generalMcCaffrey, participariam duas divisões aerotransportadas e três divisões de Marines,envolvendo 120 000 homens. A intervenção contra as FARC seria desencadeada inicialmentepor tropas da Colômbia e de outros países latino-americanas, nomeadamente do Peru e doEquador.

A ofensiva terrestre e aérea estava prevista para o ano 2000, mas o projecto foi arquivadoporque o governo Clinton chegou à conclusão de que esbarraria com a oposição doCongresso. A estória minuciosa do plano Caffrey foi, aliás, evocada com minúcias num artigodo professor brasileiro Moniz Bandeira, publicado em setembro passado em webs deinformação alternativa.

Durante a campanha eleitoral e após a sua eleição, Barack Obama comprometeu-se adesenvolver na relação com a América Latina uma política diferente daquela que sucessivospresidentes dos EUA aplicaram, tratando as nações do Sul do Hemisfério como “o pátiotraseiro”. Mas a promessa está a ser desmentida. É difícil avaliar até que ponto o Presidenteactua sob a pressão das poderosas engrenagens do establishment. Mas os factos confirmamque Washington, alarmada com a grande vaga de contestação ao imperialismo e às politicasneoliberais que varre a América Latina – e que encontra a sua expressão mais desafiadora naVenezuela, no Equador e na Bolívia – decidiu retomar uma estratégia musculada. Em vez doanunciado diálogo entre iguais, as iniciativas do grande vizinho do Norte deixam entreverameaças militares .

AS DUAS COLÔMBIAS

Não há na América Latina outro país onde a violência seja como na Colômbia um fenómenoendêmico tão enraizado. Desde o Bogotazo, em 1948, foram ali assassinadas mais de 300 milpessoas. Não é de estranhar que a imagem do país no mundo seja péssima. Para isso,contribuem decisivamente campanhas de desinformação que falsificam a História,transformando as vítimas em criminosos e os criminosos em cidadãos exemplares.Em Washington, o regime colombiano é apresentado como democracia exemplar.Significativamente, o Departamento de Estado, no seu último relatório anual sobre a situaçãodos Direitos Humanos, incluiu a Colômbia na lista dos países onde eles são respeitados.A Administração Obama mente conscientemente.

Quando director da Aeronáutica no Departamento de Antioquia, Uribe manteve relações comos cartéis da droga. Virgínia Vallejo, num livro de memórias, conta que Pablo Escobar, seuamante, lhe contou que sem a ajuda de Uribe não teria podido fazer sair do país toneladasde cocaína. O nome do actual Presidente figura aliás na lista de aliados do narcotráfico emarquivos da CIA hoje desclassificados.

Anos depois, como governador de Antioquia, Uribe desempenhou um papel importante nacriação e financiamento do paramilitarismo. Posteriormente foram sempre íntimas as suasrelações com as chamadas Autodefesas da Colômbia – AUC, a organização criminosaparamilitar incumbida pelo Exército de praticar os crimes mais repugnantes. É do domíniopúblico que milhares de paramilitares amnistiados foram nomeados para cargos públicos.Uma percentagem considerável faz parte do corpo de espiões –avaliado num milhão – querecebe um salário para transmitir informações sobre a insurgencia.

No governo de Uribe, os escândalos – alguns envolvendo membros da sua família, ministros egenerais da sua máxima confiança – tornaram-se rotineiros. O Presidente desenvolveu umestilo imperial. Para se reeleger, fez aprovar uma emenda à Constituição depois de tercomprado a maioria do Congresso. Agora repete a manobra e prepara uma segundareeleição através de um referendo montado ad hoc.

Não exagerou o comandante Manuel Marulanda, fundador das FARC, quando o definiu comofascista mascarado de democrata. A politica dita de «Segurança Nacional» de Uribe traduz-senuma estratégia de opressão e violência, que configura a prática de crimes de genocídio.

A SAGA DAS FARC

O governo Bush conseguiu, após o 11 de Setembro, que a ONU e a União Européiaincluíssem as Forças Armadas Revolucionarias da Colômbia-Exército do Povo na lista dasorganizações terroristas. Mas, para desacreditar as FARC, Washington e Bogotá foram maislonge. Uma campanha milionária foi desencadeada a nível mundial com dois objectivos.

1. Apresentar as FARC como uma guerrilha intimamente ligada ao narcotráfico e quesomente sobrevivia por manter intimas ligações com os cartéis da droga.

2. Difundir das FARC a imagem de uma organização criminosa, incompatível com osprincípios e valores da democracia, que assassina os camponeses, faz dos sequestrosum pilar da sua estratégia e tortura os prisioneiros.

Essas calúnias contribuíram para que milhões de pessoas em dezenas de países, sobretudonos meios intelectuais, tenham hoje sobre as FARC opiniões muito negativas, o que dificultaextraordinariamente a solidariedade com a luta dos combatentes do saudoso ManuelMarulanda. É útil recordar que a designação de “narcoguerrilha” foi forjada numa reunião commilitares do Pentágono por Louis Stamb, ex. embaixador dos EUA na Colômbia, um diplomataque mantinha estreitas relações com a CIA.

Dispusessem as FARC dos milhões que lhe são atribuídos e certamente teriam há muitoadquirido mísseis para se defender dos ataques da Força Aérea de Uribe e dos aviões queespiam os seus acampamentos na selva. E até hoje não possui armas desse tipo, comoWashington aliás reconhece.

É oportuno recordar que os oficiais e soldados capturados em combate pelas FARC sãoapresentados pelo governo de Bogotá como «sequestrados» e os guerrilheiros presos como«terroristas».

Significativamente, nunca que eu saiba, os grandes midia da burguesia informaram que asFARC elaboraram um projecto-piloto que previa em poucos anos a erradicação da cocamediante a substituição de culturas no município de Cartagena del Chairá, responsável pelaprodução de 90 % da droga de um Departamento. O custo da sua aplicação seria apenas de10 milhões de dólares. O estudo foi enviado à ONU, mas o governo Uribe opôs-se à iniciativa.No que se refere à campanha internacional que tem por objectivo apresentar as FARC comoum bando de criminosos e assassinos, a difusão da mentira também funciona. O caso deIngrid Bettancourt é esclarecedor dos métodos usados pelo governo de Uribe. Durante anos aex-candidata à Presidência da Republica foi apresentada como uma heroína , que estaria àsportas da morte em consequência de maus tratos recebidos. Foi libertada mediante a comprado guerrilheiro responsável pela sua custódia na selva. Mas o governo Uribe enganou aopinião mundial afirmando que fora resgatada pela Força Aérea numa operação montada deacordo com a Cruz Vermelha Internacional. Logo se verificou, porém, que Ingrid estava deperfeita saúde e cheia de energia.

Clara Rojas, ex-secretaria de Ingrid e sua companheira de cativeiro, desmascara aliás, numlivro recente, a falsa heroína cujo comportamento a isolou dos demais presos.Em 2001, passei algumas semanas num acampamento das FARC na selva amazônica doCaquetá. Nesses dias tive a oportunidade de falar durante muitas horas com o comandanteRaul Reyes – assassinado em 2008 no Equador durante um bombardeamento realizado pelaForça Aérea colombiana – e de conhecer alguns destacados comandantes das FARC,incluindo Manuel Marulanda, o seu legendário comandante-chefe.

As conversas que então mantive sobre múltiplos temas com esses dirigentes das FARCdeixaram em mim recordação inapagável. Desses encontros retirei a conclusão de que oshomens apresentados como terroristas e facínoras por Uribe são revolucionários merecedoresde respeito, com um conhecimento invulgar do marxismo-leninismo, a ideologia do partidoguerrilhaassumida pelas FARC.

A vida permitiu-me estabelecer laços não apenas de camaradagem, mas de amizade comalguns colombianos. Entre eles ocupa o primeiro lugar Rodrigo Granda. Conheci-o emHavana, reencontrei-o em El Salvador, muitas vezes em Cuba e na Venezuela, na véspera doseu sequestro por polícias de Uribe. A amizade é um sentimento difícil de hierarquizar. Mas deRodrigo Granda posso dizer, camaradas, que ele me aparece como um revolucionário e umcomunista exemplar, um paradigma do quase mítico homem novo com que sonhamos.

O APELO À PAZ DAS FARC

Há mais de quatro décadas que as FARC se batem por uma Colômbia verdadeiramenteindependente e democrática. Nesse batalhar houve um momento, no começo dos anos 80,em que aceitaram suspender a luta – sem entregar as armas – aceitando a proposta dogoverno da época para participarem na vida politica transferindo para o campo institucional adefesa do seu projecto de sociedade.

E que aconteceu, camaradas? A Unión Patriótica, o partido-movimento então criado pelasFARC, foi alvo do maior genocídio político da história da América Latina. Em pouco mais dedois anos, senadores, deputados, intelectuais, sindicalistas da União Patriótica foramassassinados.

Obviamente as FARC retomaram a luta armada. A organização revolucionária cresceu. Noinicio do milénio, quando o presidente Pastrana concordou abrir negociações com vista à Paze foi criada uma Zona Desmilitarizada com uma superfície equivalente ao Estado do EspíritoSanto, as FARC constituíam um exército popular com efectivos avaliados em 17 milcombatentes distribuídos por 60 Frentes de luta. Somente no Vietnam se encontra precedentepara uma saga comparável à das FARC-EP.

Sob a pressão dos EUA, da oligarquia bogotana e do exército, o presidente Pastrana fechou aporta a qualquer negociação séria que pudesse conduzir à Paz, invadiu e reocupou a ZonaDesmilitarizada. Recordo que então os comandantes guerrilheiros, em La Macarena, no actode libertação unilateral de 300 prisioneiros das FARC – a que assisti – eram tratados com omaior respeito pelos embaixadores de grandes potências européias. Entretanto, passaram deum dia para outro a ter a cabeça a prêmio como terroristas, narcotraficantes e assassinos.Com a chegada de Uribe à Presidência a escalada assumiu as proporções de um assalto àrazão. Sucessivas ofensivas militares, mobilizando dezenas de milhares de soldados, foramdesencadeadas com o objectivo de aniquilar as FARC. Todas fracassaram, não obstante orecurso a armas e equipamentos sofisticados, fornecidos pelos EUA.

Camaradas:

A solidariedade com o povo da Colômbia, nestes dias em que a Administração Obamadesenvolve uma estratégia que configura uma ameaça global à América Latina, é umaexigência da história.

Uribe impôs à Colômbia um regime neofascista. O projecto do Novo Estado uribista outorgaao Executivo um poder quase absoluto . A consumar-se a nova reeleição através de métodosilegítimos, Álvaro Uribe Velez governará como um ditador. Conforme recorda o Secretariadodas FARC, Uribe, após a sua primeira reeleição, anunciou que destruiria a organizaçãorevolucionaria num prazo de 18 meses. A promessa foi desmentida pela História. Agora, aolutar por um terceiro mandato, afirma que a vitória contra as FARC está iminente e fala do“final do final”, comprometendo-se a fazer da Colômbia “a Cidade do Sol”.

Na realidade, o país foi transformado numa semi-colônia dos EUA. Dos deputados que apoiamUribe, 85 são paramilitares . Na cadeia cumprem aliás penas dezenas de congressistascondenados por crimes graves.

As FARC não surgiram por geração espontânea. O Secretariado do seu Estado Maior Central,num apelo dirigido em julho p.p. ao povo colombiano, convida-o “a trabalhar por um AcordoNacional de Paz que construa uma alternativa política que convoque o diálogo, ponha emcampo uma trégua bilateral e proceda à retirada imediata das tropas norte-americanas eque, uma vez alcançados acordos com o protagonismo das organizações sociais e politicas,convoque uma Assembleia Constituinte para referendar o acordado”.

Camaradas:

Os combatentes revolucionários das FARC que se batem por valores eternos da condiçãohumana merecem o respeito e a solidariedade dos comunistas.

As FARC enfrentam na sua luta tremendas dificuldades. Mas as calúnias não fazem história.Com o rodar dos anos os nomes de Uribe e dos seus generais vão desaparecer na poeira dotempo. Mas o do comandante Manuel Marulanda será pelos séculos afora recordado. Jáatravessou as portas do panteão dos heróis da América Latina.

Miguel Urbano Rodrigues

Serpa, Outubro de 2009

Categoria