“Esqueçam o terrorismo”: a verdadeira razão da crise do Qatar é o gás natural

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Pelo Socialismo – 06/06/2017

Segundo a narrativa oficial, a causa da última crise do Golfo, em que uma coligação de Estados liderados pelos sauditas cortou as relações diplomáticas e económicas com o Qatar, é – para grande espanto de toda a gente – o fato de o Qatar financiar os terroristas, e surge depois da recente visita de Trump à Arábia Saudita, durante a qual exigiu medidas urgentes contra o apoio financeiro ao terrorismo; e também depois do relatório do Finantial Times, segundo o qual o Qatar tinha concedido diretamente bilhões de dólares de financiamento ao Irã e aos restos da Al Qaeda.

A Arábia Saudita tinha finalmente razões de queixa suficientes do “patife” do seu vizinho, o qual, nos últimos anos, tinha tornado ideologicamente inaceitável qualquer abertura ao Irã shiita e à Rússia. Porém, como muitas vezes acontece, a narrativa oficial é, tradicionalmente, uma conveniente cortina de fumaça que esconde as tensões subjacentes. A verdadeira razão por detrás dos efeitos diplomáticos do caso pode ser bastante mais simples e, mais uma vez, tem a ver com um tópico muito antigo e controverso, nomeadamente o domínio do gás natural do Qatar.

Recorde-se que muito se especulou (e as provas disso remontam tão longe quanto 2012) sobre uma das razões da longa guerra da Síria não ser nada de mais complicado do que a disputa pelos gasodutos, com o Qatar a querer ansiosamente utilizar o seu próprio gasoduto que liga a Europa aos seus grandes depósitos de gás. Mas, como isso poria em perigo o monopólio do gás natural da Gazprom na Europa, a Rússia manifestou-se firme e violentamente contra esta estratégia desde o início, e esta razão explica o firme apoio de Putin ao regime de Assad e o desejo do Kremlin de evitar a substituição do governo sírio por um governo-fantoche.

Agora, numa análise separada, a Bloomberg também desmascara a “narrativa oficial” da crise do Golfo e sugere que o isolamento da Arábia Saudita em relação ao Qatar, “e o longo passado da disputa e, provavelmente, o seu prolongamento futuro, se explicam de modo mais claro pelo gás natural”. As razões para o gás natural ser a fonte de discórdia são numerosas e começam em 1995 “quando a minúscula península deserta estava prestes a fazer o seu primeiro embarque de gás natural líquido do maior reservatório do mundo, o do Campo Norte. Este fornece virtualmente todo o gás do Qatar e é partilhado com o Irão, o odiado rival da Arábia Saudita”.

O resultado para as finanças do Qatar foi semelhante aos enormes ganhos que a Arábia Saudita colheu da sua vasta riqueza em petróleo. A riqueza extraída dali tornou o Qatar não apenas a mais rica nação do mundo, com um rendimento anual per-capita de $130 000, mas também o maior exportador mundial de gás natural liquefeito. A sua especialização no gás colocou-o à parte dos seus vizinhos produtores de petróleo no Conselho de Cooperação do Golfo e permitiu-lhe libertar-se do domínio da Arábia Saudita, que na sua declaração de queixa de 2.ª feira descreveu os qataris como “uma extensão da sua irmandade no Reino”, ao mesmo tempo em que cortava as relações diplomáticas e fechava a fronteira. Em resumo, no espaço de duas décadas, o Qatar tornou-se simplesmente a maior potência do gás natural na região, e apenas a Gazprom russa consegue desafiar a influência do Qatar nas exportações do gás natural liquefeito.

O Qatar é o maior exportador de gás natural liquefeito e tem um papel menor no mercado do petróleo. Certo é que o Qatar tem mostrado uma capacidade notável para mudar a sua fidelidade ideológica, dizendo o Finantial Times, numa reportagem de 2013, que ao princípio o Qatar era um convicto apoiante e financiador dos rebeldes sírios, encarregados de derrubar o regime de Assad, um processo que poderia culminar na criação do tão caluniado gasoduto trans-sírio. O minúsculo Estado do Qatar rico em gás gastou tanto como 3 000 milhões de dólares nos últimos dois anos para apoiar a rebelião na Síria, ultrapassando qualquer outro governo, mas agora ele está sendo ultrapassado pela Arábia Saudita como principal fonte de armas dos rebeldes.

O custo da intervenção do Qatar, a sua última tentativa de apoiar uma revolta árabe, ascende a uma fração do portfolio do seu investimento internacional. Mas o seu apoio financeiro à revolução que se tornou numa perversa guerra civil ofusca dramaticamente o apoio ocidental à oposição. À medida que os anos passavam, o Qatar foi compreendendo que a Rússia não permitiria que o seu gasoduto atravessasse a Síria e, em resultado disso, virou-se estrategicamente numa direção pró-Rússia tendo o fundo soberano do Qatar concordado em investir, no último ano, 2,7 mil milhões de dólares na estatal russa Rosneft Oil, mesmo sendo o Qatar o hospedeiro da maior base militar dos EUA na região, o Comando Central dos Estados Unidos. Esta manobra em particular deve ter também aumentado os receios de que o Qatar se tornasse um mais ativo apoiante do eixo Rússia-Irã-Síria na região, apesar do seu recente apoio financeiro e ideológico ao Irã.

Em resultado do crescimento financeiro e político da “independência” desta nação minúscula, os seus vizinhos estão cada vez mais frustrados e preocupados: “O Qatar costumava ser uma espécie de vassalo do Estado saudita, mas usou a autonomia que a riqueza do gás criou para assumir um papel independente” disse Jim Crane, investigador de energia no Instituto Baker, da Rice University, citado pela Bloomberg. Além disso, a produção de gás natural do Qatar tem estado “livre de embaraços” – e de pressão política – na OPEP, o cartel do petróleo que a Arábia saudita domina. “O resto da região tem estado à procura de uma oportunidade de cortar as asas do Qatar”. E como acrescenta a Bloomberg, «a oportunidade chegou com a recente visita do presidente Donald Trump à Arábia Saudita, quando apelou a todas as “nações conscientes” que isolassem o Irã.

Quando o Qatar discordou publicamente, numa declaração posterior, o governo afirmou que se tinha tratado de um produto da pirataria informática, seguiu-se a retribuição dos sauditas e seus aliados». A verdade é que, numa série de tweets, o próprio Trump insistiu na “narrativa oficial”, dando força ao isolamento do Qatar (talvez esquecendo-se que a base dos EUA está implantada na pequena nação). Os cínicos podem ser perdoados por assumirem que, se Trump está tuitando que o motivo do isolamento de Qatar é “acabar com o horror do terrorismo”, apesar de os EUA acabarem de assinar um acordo de armamento de mais de 100 bilhões de dólares com o maior defensor do terrorismo no mundo, a Arábia Saudita, então, efetivamente, a “narrativa” adotada por Trump deve ser completamente descartada.

O que nos leva de novo ao gás natural, onde o Qatar emergiu rapidamente como o produtor dominante e mais barato, ao mesmo tempo que os seus vizinhos começaram a exigir a mercadoria para si, dando ao pequeno estado toda a alavancagem. Como a Bloomberg acrescenta: “a procura de gás natural para produzir eletricidade e energia para a indústria cresceu nos Estados do Golfo. Eles têm de recorrer a importações mais caras de GNL [1] e de explorar difíceis formações de gás domésticas, cuja exploração é dispendiosa, de acordo com a investigação. O gás do Qatar tem os menores custos de extração do mundo”.

Claro, com a riqueza financeira, veio a necessidade de aumentar a influência política: “A riqueza do gás do Qatar permitiu desenvolver políticas externas que acabaram por irritar os seus vizinhos: apoio à Irmandade Muçulmana, no Egito, ao Hamas, na Faixa de Gaza e a fações armadas opositoras dos Emirados Árabes Unidos ou da Arábia Saudita, na Líbia e na Síria. O gás também pagou uma rede global de televisão, a Al Jazeera, que, em vários momentos, embaraçou ou irritou a maioria dos governos do Médio Oriente”. E, acima de tudo, “o gás levou o Catar a promover uma política regional de engajamento com o Irã xiita para garantir a fonte de sua riqueza”.

E daqui surgiu a fonte de tensão: porque, como Steven Wright, Professor doutor associado da Universidade do Qatar disse à Bloomberg: “pode questionar-se por que razão o Qatar não esteva disposto a fornecer os seus países vizinhos, tornando-os pobres de gás”, disse Wright, o acadêmico, a falar ao telefone da capital de Qatar, Doha. “Provavelmente havia uma expetativa de que o Qatar lhes vendesse gás com um desconto”. Isso não aconteceu e, em vez disso, o Qatar deu um passo atrás, em 2005, quando declarou uma moratória sobre o posterior desenvolvimento do Campo Norte, que poderia ter fornecido mais gás para exportação local, aumentando as frustrações de seus vizinhos. O Qatar disse que precisava testar como o campo estava respondendo à sua exploração, negando que estivesse a ceder às sensibilidades do Irã, que tinha sido muito mais lento a extrair gás do seu lado do campo compartilhado.

A moratória de dois anos foi levantada em abril, uma década mais tarde, depois de o Irã, pela primeira vez, ter alcançado as taxas de extração do Qatar. À medida que Qatar se recusava a ceder, o ressentimento cresceu. “As pessoas aqui estão perplexas, coçando a cabeça, exatamente como os sauditas esperavam que o Qatar fizesse”, disse Gerd Nonneman, professor de relações internacionais e estudos do Golfo, no campus de Doha da Universidade de Georgetown. “Parece que eles querem que o Qatar se afunde completamente, mas este não vai tratar a Irmandade Muçulmana como organização terrorista, porque não o é. E não vai excomungar o Irã, porque isso poria em risco uma relação que é, de fato, tão fundamental para o desenvolvimento econômico do Qatar”.

Se o gás natural é a fonte do isolamento do Qatar dependerá dos próximos passos da Arábia Saudita e do Irã. A Arábia Saudita, os Emirados Árabes Unidos e o Egito são altamente dependentes do gás do Qatar por via de gasoduto e do GNL. Segundo a Reuters, os investidores, assustados com este desenvolvimento, começaram a planejar todas as eventualidades, especialmente qualquer transtorno de abastecimento de gás canalizado do Qatar para os Emirados Árabes Unidos. Os Emirados Árabes Unidos consomem 1,8 bilhões de pés cúbicos/dia de gás do Qatar, através do gasoduto do Dolphin [golfinho] e têm acordos de compra de GNL com o seu vizinho, deixando-o duplamente exposto às medidas de olho por olho, dizem as fontes e investidores da indústria.

Até agora, os fluxos através do Dolphin não estão sendo afetados, mas os investidores dizem que, mesmo uma paralisação parcial, provocaria ondas de choque nos mercados globais de gás, forçando os Emirados Árabes Unidos a procurar a substituição do fornecimento de GNL, à medida que a sua procura doméstica atingisse os picos. Com os mercados de GNL em clima de baixa e fraca procura, os Emirados Árabes Unidos podiam lidar com o Qatar suspendendo o seu fornecimento de GNL de dois a três meses, apelando aos mercados internacionais, mas os fluxos do gasoduto Dolphin são muito grandes para serem totalmente substituídos. “Uma diminuição no fornecimento do Dolphin teria um enorme impacto nos mercados de GNL”, disse um dos investidores, analisando os desenvolvimentos. E uma vez que tudo se resume a quem tem a maior alavancagem, à medida que esta última crise regional de “equilíbrio de poder” se desenrola, o Qatar poderia simplesmente seguir a rota de Destruição Mútua Garantida e interromper todas as remessas do gasoduto para os seus vizinhos, prejudicando os interesses económicos de ambos (deles e de si próprio) no processo, para encontrar exatamente o ponto da “máxima dor”.

Notas [1] GNL: Gás natural liquefeito. – [NT]

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