Na contracorrente: as Repúblicas Populares de Donetsk e Lugansk. A solidariedade internacional é necessária

imagempor Humberto Carvalho*

Em pleno século XXI, quando tudo indica, ao menos nestes inícios do século, um predomínio neoliberal, aliado, em vários países, a um ressurgimento de forças da extrema direita, surgem duas repúblicas populares!

Isso ocorre numa importante região mineradora e industrial, conhecida como a Região do Donbass (bacia do rio Don, na realidade uma sub bacia, denominada Rio Donest, um afluente do Rio Don), no leste da Ucrânia, nos “oblasti” (regiões político-administrativas, equivalentes, numa federação, a estados-membros) de Donetsk e Lugansk.

A independência de Donbass surgiu como uma reação ao golpe oligárquico e neonazista ocorrido em Kiev e, em grande medida, incentivado pelas células locais do Partido Comunista e do Partido Socialista Progressista, ambos da Ucrânia, derrotando o Partido da Região que apoiava o golpe de estado perpetrado em Kiev.

Formou-se um amplo espectro de forças sócio-políticas, unido pela rejeição comum ao neonazismo, à burocratização, ao rigoroso centralismo, à corrupção e à ditadura oligárquica. Esse espectro é formado por socialistas, nacionalistas, comunistas, progressistas e outros.

Em 7 de abril de 2014, foi instalado o Conselho do Povo, proclamado como a maior autoridade da República Popular de Donetsk.

Os deputados do Conselho do Povo realizaram a parte principal do trabalho de redação da Constituição da RPD (República Popular de Donetsk) e prepararam o referendo sobre a independência. Em 7 de abril de 2014, o Conselho emitiu a Declaração de Soberania da República Popular de Donetsk e a Lei sobre a Independência do Estado dessa República.

Apesar do aumento das pressões e provocações políticas, midiáticas e militares, realizou-se um referendo nas regiões de Donetsk e Lugansk, que fez a pergunta: “Você apoia a Lei sobre a Independência do RPD/RPL?”

Em Donetsk, 89,7% dos eleitores disseram “sim”, enquanto que, em Lugansk, o “sim” atingiu 96,2% dos eleitores.

As propriedades dos oligarcas foram nacionalizadas e criado um imposto incidente sobre cidadãos ucranianos residentes na região e de seus bens que se destina a financiar as milícias populares em luta contra as forças de Kiev, apoiadas pelo imperialismo.

Inobstante a forte influência de ideias socialistas e a tomada de medidas socializantes, em Donetsk formaram-se dois grandes movimentos políticos, verdadeiras frentes: o Movimento Social da República de Donetsk, que foi fundado por Andrey Purgin que, atualmente, é chefiado pelo líder da RPD, Alexander Zakharchenko, e pelo presidente do Conselho do Povo, Denis Pushilin. O outro movimento, ou frente, é o Free Donbass (Donbass Livre). As diferenças programáticas entre os dois movimentos representados no Conselho Popular do DPR são mínimas. Diga-se, por importante, que o único partido registrado oficialmente, na RPD, é o Partido Comunista da República Popular de Donestk.

Também em Lugansk formaram-se dois fronts: o Movimento pela Paz em Lugansk, liderado por Igor Plotnitsky, membro do parlamento, e a União Econômica de Lugansk. Segundo seus líderes, em especial o Movimento pela Paz, esses partidos têm como objetivos lutar contra o fascismo e fazerem parte da Rússia. No momento, os partidos e movimentos sociais e políticos estão unidos em virtude da guerra.

Mas, diante dessas forças políticas, e movimentos, uma pergunta se impõe: uma vez afirmada a independência, vencida a guerra em que se encontram, para onde irá o sistema sócio-econômico de Donbass? Para um capitalismo nacional? Para o retorno do capitalismo oligárquico, ainda que profundamente reformado? Ou para o socialismo?

A resposta depende, em boa parte, da solidariedade internacional às repúblicas populares de Donetsk e Lugansk. Os comunistas da região e o largo apoio popular que possuem não podem ser abandonados, seja pela indiferença, seja por uma postura de aguardar os acontecimentos. É preciso criar formas de apoio aos nossos camaradas, desde já, e uma delas, como exemplo, pode ser a verdadeira ajuda humanitária, indicando a origem comunista dessa ajuda. Outro exemplo, é a necessária solidariedade aos combatentes do Donbass presos pelo regime neonazista da Ucrânia.

É verdade que os separatistas de Donbass são a favor de uma aproximação com a Rússia. Quando as repúblicas populares se uniram num pais, em 2014, este passou a se chamar Новороссия (transliteração – Novorossia) que significa Nova Rússia.

Mas por que querem se aproximar da Rússia? Existem inegáveis razões culturais e históricas. Basta lembrar que a Rússia nasce, como país, em Kiev, hoje capital da Ucrânia, o que revela os seculares laços de união entre Ucrânia e Rússia. Ademais, há uma importante questão política e econômica. A Ucrânia se encontrava num dilema: ingressar na União Europeia para receber financiamentos, empréstimos, ou fazê-los com a Rússia. O então presidente Viktor Yanukovich preferiu pedir um empréstimo à Rússia e não ingressar na União Europeia. Enquanto isso, principalmente em Kiev, havia o movimento Maidan, ou Euromaidan, favorável ao ingresso da Ucrânia na UE, que acabou derrubando Yanukovich. Quando se consolidou o novo governo na Ucrânia, começou o movimento separatista de Donbass porque eles eram e são contrários às políticas de austeridade e de restrições de direitos da União Europeia e por isso, fundamentalmente, preferem se aproximar da União Alfandegária da Eurásia, sob a hegemonia da Rússia.

A professora de Ciência Política da Universidade da Colúmbia, Elise Giuliano, escreveu um texto, sobre o assunto, intitulado The Origins of Separatism: Popular Grievances in Donetsk and Luhansk (As origens do separatismo: queixas populares em Donetsk e Lugansk). O texto se encontra em <http://www.ponarseurasia.org/memo/origins-separatism-popular-grievances-donetsk-and-luhansk>.

A certa altura do texto, ela diz:

“Eu identifico uma série de razões pelas quais as pessoas comuns começaram a apoiar o separatismo examinando queixas em Donetsk e Luhansk no final de 2013 e início de 2014. A análise ultrapassa a compreensão unidimensional dos separatistas como pró-rússia, motivada unicamente por uma orientação duradoura à Rússia que não mudou com o tempo, seja por identidade étnica ou linguística, seja por lealdade política.”

E mais adiante, falando sobre os temas que vai desenvolver, diz:

“No entanto, para outros no Donbass, o apoio ao separatismo não era principalmente a adesão à Rússia, mas foi motivado por várias formas de interesse material, ou por uma sensação de traição por Kiev e do resto do país inspirado nos eventos da Euromaidan. Em termos de interesse material, examino dois tipos de queixas:

1) queixas de redistribuição discriminatória na Ucrânia; e

2) percepções do efeito negativo da potencial adesão da UE ao bem-estar econômico, devido a políticas de austeridade, ou o comércio com a Rússia e a União Aduaneira Eurasiática” (grifos do signatário).

Já, o dr. Eduardo Popov afirma: “A proclamação das repúblicas populares de Donbass foi uma reação lógica ao desmantelamento do estado ucraniano, tal como se formou no âmbito da República Socialista Soviética da Ucrânia” <https://syncreticstudies.com/2017/04/28/peoples-republics-summating-the-donbass-socio-political-and-economic-experience/>.

Essa “ligação” de Donbass com a Rússia, acrescida da anexação da Crimeia, justificou, no Ocidente, um enorme acúmulo militar norte-americano e da OTAN ao longo das fronteiras russas. As forças da OTAN se estabeleceram nos estados bálticos, exercícios militares foram ou ainda estão sendo realizados no Mar Negro, a Polônia está sendo preparada para a guerra com a Rússia e o possível uso de armas nucleares é quase rotineiro em relação a dissuadir a alegada agressão russa.

As principais indústrias da região foram estatizadas. Depois disso, começou a guerra e o socialismo só pode ser construído na paz. O exemplo histórico da URSS nos ensina que, durante a guerra civil e contra as forças estrangeiras que cercaram a então incipiente URSS, havia o “comunismo de guerra”, isto é, um verdadeiro confisco da produção que praticamente não existia e, depois da guerra, Lênin estabeleceu a NEP para criar um capital inicial e desenvolver a economia para construir o socialismo.

O Conselho do Povo é a maior autoridade da Região e conselho em russo, como se sabe, é “soviet”, como também em ucraniano.

O parlamento da RPD é o Conselho do Povo (ou Conselho Popular) que foi presidido por Boris Litvinov que é, ou foi, o SG do Partido Comunista da República Popular de Donetsk, sucessor do Partido Comunista da Ucrânia, na região, mantendo o mesmo programa do PC da Ucrânia. O PC da RPD faz parte de uma frente política intitulada “República de Donetsk” e apoiou a eleição do atual Primeiro Ministro da RPD, Alexander Zakharchenko.

O Conselho do Povo tem 100 cadeiras e pelo resultado das eleições de 2014, a frente “República de Donetsk” fez 68 cadeiras, sendo 11 destas do PC da RPD e a outra frente política “Free Donbass” fez 32 cadeiras, sendo que 19 delas pertencem ao “Partido Nova Rússia”.

O Partido Socialista Progressista da Ucrânia, uma dissidência do Partido Socialista da Ucrânia, liderado por Nataliya Vitrenko que foi candidata à Presidência da Ucrânia em 1996, não participou, como partido, das eleições de 2014, mas pode ter representantes eleitos pela “República de Donetsk”.

As novas repúblicas populares estão sendo bem-sucedidas, apesar das difíceis condições, na luta contra o neonazismo ucraniano.

É bom lembrar que no século XX, o primeiro país a lutar, com armas, contra o então nazi-fascismo, foi a República da Espanha e que após o término da Guerra Civil Espanhola, com a lamentável vitória de Franco, em 1939, iniciou a Segunda Guerra Mundial.

As Repúblicas Populares de Donetsk e Lugansk uniram-se e formaram um novo país que é o primeiro, neste século, a lutar, com armas, contra o neonazismo.

A luta ideológica interna da Nova Rússia não deve ser intensa devido à guerra, mas certamente se acirrará ao final da mesma.

A Rússia de Putin é o principal apoio internacional à Nova Rússia, mas não se pode esquecer que a Rússia é capitalista, apesar da profunda luta interimperialista, e, certamente, não apoiará a construção do socialismo em Donbass. Por isso é necessário a solidariedade internacional dos trabalhadores à classe trabalhadora da Nova Rússia.

No mundo de hoje, algumas regiões, como o Oriente Médio, a região coreana, como também Donbass, podem se transformar em estopins de uma nova guerra mundial.

O apoio a Donbass significa, nos dias de hoje, lutar pela paz e o apoio aos comunistas e socialistas da Nova Rússia significa a luta pelo socialismo.

Humberto Carvalho é membro do PCB/RS.

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