‘Fora, mister Gordon’

imagemLuiz Celso Manço – militante do PCB de Santos

A fria e silenciosa madrugada, mal iluminada por uma lua crescente no límpido céu estrelado de abril, compõe o cenário de  uma ação secreta e arriscada: executar uma tarefa de enfrentamento da ditadura na plenitude de sua radicalização repressora. Um plano extremamente sigiloso houvera sido elaborado pela direção da organização revolucionária comunista. A missão a ser cumprida por cada um dos militantes designados e os detalhes da sua execução só seriam anunciadas poucas horas antes para o conjunto de camaradas mantidos no anonimato e sem contato entre si até o momento do seu encontro num “ponto” determinado. “ O quê será ?” era o pensamento que me aflorava insistentemente e que, provavelmente, também  ocorria com os demais companheiros.

À noite, véspera da ação, um membro dirigente da organização me transmite pessoalmente o teor da ação e alguns detalhes sobre a execução. O sotaque espanhol carregado  do interlocutor, a voz grave e o semblante sério sob um manto de exercitado autocontrole  parecem revelar a verdadeira dimensão do plano a ser executado, ou seja, um ataque frontal aos inimigos de classe. O momento solene ficará  indelevelmente gravado na memória, era um momento extraordinário. Tempos depois, tomei conhecimento de que o porta-voz da organização se tratava de um venezuelano que militara na luta armada de libertação do seu país,  e estava atualmente cursando medicina no Brasil.

Ribeirão Preto receberia, no dia seguinte, a visita do mister Gordon, então embaixador dos Estado Unidos no Brasil. A presença de um prócer do imperialismo  estadunidense era patrocinada pelos subservientes políticos da direita histórica da região, pela elite econômica e pelos inúmeros esbirros da ditadura civil-militar que vicejavam por toda parte. Era um momento estratégico extremamente importante para um enfrentamento de resistência, denúncia, agitação e propaganda revolucionárias. Coube-me a tarefa de distribuição de panfletos e pichações durante a madrugada num bairro da periferia da cidade, juntamente com outro militante.

É chegada a hora! O local do encontro é distante dos lugares que frequentava. O rígido esquema de segurança estabelecido numa organização revolucionária clandestina  para essas situações preconiza  o máximo possível de atenção e vigilância, e o mínimo possível de informações sobre nomes, locais, data e outros detalhes do plano. No caso de uma “queda” frente as forças de repressão, menor será o risco de colocar em perigo a segurança coletiva e individual. “Quanto menos informações o inimigo obtiver, melhor”. Não sabia, portanto, quem seria o meu companheiro na execução da tarefa, apenas conhecia a senha confidencial de contato e a forma de identificação visual.

Neste momento de forte emoção,  durante a caminhada rumo ao local estipulado, um frio incômodo perpassa pelo corpo inteiro parecendo denotar mais um  estado de ansiedade e medo do que de  sensação térmica objetiva. No ponto estabelecido, encontro  um militante igualmente jovem, aparentemente tão nervoso como eu, ambos inexperientes neste tipo de situação. Após o reconhecimento mútuo, pusemo-nos a caminhar e a executar o que fora determinado, percorrendo na semi-escuridão  ruas e ruas, muitas de terra  cercada de  terrenos baldios. A exígua  iluminação proveniente dos poucos postes existentes provoca efeitos assustadores através do movimento das sombras e supostas figuras mal  delineadas (numa situação de grande tensão diante do risco iminente, os limites entre a objetividade e a subjetividade se diluem). Vultos aparecem e se movimentam acompanhando nossos passos, ruídos estranhos surgem do nada no meio do silêncio e escuridão.

A tarefa parece interminável e se torna mais angustiante quando algumas luzes se acendem aqui e acolá nas casas sob o barulho estridente e intenso de latidos dos cachorros do bairro que se propagam por todos os lados. Basta o primeiro latido para contagiar toda a matilha. Afinal, somos suspeitos invadindo seu território. Neste momento delicado, intimamente eu penso: “será que o resultado da ação será tão expressivo quanto está sendo o nosso temor diante do perigo ameaçador ?”. Talvez, nunca saberei avaliar corretamente as consequ ências reais de toda e qualquer ação na luta revolucionária – pelo menos no curto prazo. Sabemos que a história não resulta de uma construção linear que possa ser previsível em cada etapa.

Concluída a atividade –  após um tempo que parece ter demorado uma eternidade, e num ritmo de quase correria a partir de certo momento – livramo-nos das sobras dos materiais  “subversivos” e nos separamos,  conforme a orientação de segurança recebida. Depois do amanhecer, já em casa, mal conseguia relaxar para dormir e refazer as energias. Aguardava, com expectativa, alguma notícia sobre as repercussões do nosso trabalho naquele bairro da cidade. Percebia a ação como importante para nós jovens militantes,  mas muito pequena diante do conjunto da luta contra a ditadura e pelo socialismo.

Horas mais tarde, a surpresa: além do bairro que nos coube cobrir, grande parte da cidade tinha sido pichada e panfletada por um expressivo contingente de duplas de militantes. No Centro, diante dos edifícios que seriam visitados pelo embaixador, “aranhas” lançadas nos fios de iluminação traziam cartazes pendurados com a inscrição “MR. GORDON, GO HOME”. Surpreendente a repercussão do episódio nos meio de comunicação e  nos vários segmentos da população. Durante muitos dias, o assunto ocupou as rodas de conversa e os comentários sobre a ousadia da ação, sobretudo porque não havia, à época, a televisão ao alcance da maioria.

Quando ingressei no Partido Comunista Brasileiro – PCB em meados dos anos 1960, fiquei sabendo que a ação da qual participara fazia parte do processo de recrutamento, precedida por inúmeras leituras do marxismo-leninismo, com o objetivo de ser avaliado sobre minhas reais condições de militar no Partido.

Luiz Celso Manço
Santos, outubro de 2017

Cem anos da Revolução Soviética