Os Palestinos nunca deixarão de exigir justiça

imagemBassem Naim*

ODiario.info

Desde há demasiado tempo que o Ocidente aplaude o espectáculo da repressão de dezenas de milhares de manifestantes desarmados que não fazem mais do que reclamar justiça, por uma força implacável fortemente armada.

Centenas de milhares de manifestantes pacíficos marcharam, desarmados, até à fronteira imposta por Israel à faixa de Gaza sitiada. Não puderam chegar a ela porque, a uma distância de várias centenas de metros, atiradores de elite israelenses dispararam sobre eles, causando dez mortos e centenas de feridos entre os Palestinos.

Não é um filme de cinema. É Gaza. É a Palestina.
Há mais de setenta anos que nós, palestinos, tentamos por todos os meios possíveis e imagináveis obter os direitos que o direito internacional e humanitário normalmente nos garantiriam.

No decurso destas décadas, dezenas de Resoluções foram adotadas por um largo leque de organismos internacionais, de associações e de ONG a favor dos nossos direitos fundamentais à liberdade, à autodeterminação e ao regresso às habitações de onde fomos expulsos pela força em 1948.

Contradizendo o mito romântico da criação do Estado hebraico, dezenas de historiadores, incluindo israelenses como Ilan Pappe e Gideon Levy, provaram que o ataque sionista coordenado de 1948 contra centenas de aldeias palestinas ancestrais foi na realidade o início de um deliberado projeto de limpeza étnica que prossegue sem cessar até aos dias de hoje.

Pretender que cerca de um milhão de palestinos tenha abandonado voluntariamente as suas casas, as suas escolas, as suas mesquitas e as suas igrejas em 1948 faz tanto sentido como afirmar que a Terra é plana. A fuga massiva e desesperada dos palestinos perante o assalto paramilitar às nossas comunidades ancestrais é uma realidade que ninguém pode honestamente contestar.

Apesar da quase unanimidade dos juristas internacionais no que diz respeito à nossa causa, a comunidade mundial não pôde ou não quis fazer justiça ao povo palestino, que vive em bantustões rodeados de muros no seu próprio país, ou que foi obrigado a refugiar-se na diáspora ou a tornarem-se refugiados apátridas espalhados pelo mundo inteiro.
E no decurso destas décadas, os Estados ocidentais adotaram abertamente políticas que não apenas favorecem e protegem Israel, como lhe concedem os meios para prosseguir a ocupação ilegal dos territórios palestinos.

Nenhum Estado contribuiu mais para essa injustiça histórica do que os EUA. Não satisfeitos com atribuírem mais de 250 bilhões de dólares de ajuda governamental direta a Israel, os EUA utilizaram mais de 70 vezes o seu direito de veto no Conselho de Segurança da ONU para impedir que fossem adotadas resoluções condenando as políticas israelenses.

O apoio financeiro dos EUA a Israel inclui dezenas de milhões de dólares de ajuda e de equipamento militar que dão a Israel os meios para esmagar os direitos e as legítimas aspirações de milhões de palestinos e para semear a morte e a destruição nas nossas comunidades. Dezenas de milhares de pessoas perderam a vida, muitos outros foram feridos ou mutilados e maior número ainda foi encerrado na prisão no decurso destes anos, num sistema de “justiça” militar que priva os palestinos de qualquer espécie de justiça.

Recentemente, para punir sempre mais os palestinos por manifestarem uma vontade política, a administração norte-americana cortou mais de 360 milhões de dólares da parte de 1,2 bilhões que lhe cabe anualmente atribuir à Agência de socorro e aos trabalhos das Nações Unidas para os refugiados da Palestina no Próximo Oriente (UNRWA). Este programa de ajuda internacional disponibiliza apoios em saúde, educação e alimentação a cerca de 5 milhões de refugiados palestinos, o que representa perto de 40% do total dos 11,5 da população palestina total no interior e no exterior da Palestina.

No decurso dos 25 últimos anos os palestinos tentaram, com toda a boa fé e em vão, concretizar as suas legítimas aspirações participando num processo de negociações longo, complexo e contraproducente. Em consequência de um desequilíbrio de fundo nas relações de força no terreno e de um inamovível alinhamento pró-israelense internacional, Israel utilizou essa “negociação” como cobertura para o seu programa de anexação ilegal das terras palestinas na Cisjordânia. Não contente com inundar a Cisjordânia com centenas de milhares de “colonos” ilegais, Israel prosseguiu o seu ataque sistemático contra os direitos fundamentais dos palestinos em todos os territórios ocupados, incluindo Gaza.

Qual foi então o resultado deste bloqueio israelense unilateral de 25 anos? Assistimos, como era de esperar, à sabotagem de todas as oportunidades reais de estabilidade e/ou de decréscimo da violência e à propagação da violência a toda a região, não é verdade? O bloqueio do processo tinha por objetivo aniquilar toda a esperança de liberdade, toda a esperança num Estado independente e de um regresso aos lares de onde tinham sido expulsos no decurso dos últimos anos, não é verdade? E que sucedeu à vida cotidiana dos palestinos sob a ocupação, seja na Cisjordânia dividida em cantões controlados ou na faixa de Gaza sitiada? Os dois territórios foram transformados no insuportável inferno que está à vista de todo o mundo e que nós vivemos. Assassínio, prisão, cerco, expropriação de terras, demolição de casas, miséria, desemprego, privação de cuidados médicos e interdição de se deslocar, eis o que cabe cotidianamente a milhões de palestinos.

Os palestinos, tal como qualquer outro povo do mundo, amam a vida, a sua comunidade e a sua família, e tudo o que desejamos é que os nossos filhos tenham um futuro melhor do que o nosso. Parece, contudo, que esta nossa aspiração legítima e coletiva é inaceitável para muitos países do mundo, que aparentam interessar-se por nós mas que nada fazem nunca, enquanto a Ocupação e a injustiça se perpetuam à vista de todos. Poucos países, ao que parece, sentem a necessidade de se opor à agressão israelense e à sua ocupação, ainda que estas violem todas as normas da decência e do direito internacional, seja qual for o ponto de vista em que cada um se coloque.

Após termos estudado as nossas diversas opções, e com a força do nosso legítimo direito de resistir nós, Palestinos de Gaza, decidimos organizar marchas pacíficas até à proximidade das barreiras de segregação que nos interditam a menor veleidade de autodeterminação. Exigimos o fim da ocupação, o fim do cerco de Gaza, e o reconhecimento do direito dos Palestinos a regressar às suas casas conforme a Resolução 194 da ONU, publicada em Dezembro de 1948. Estas iniciativas tiveram início com o aniversário do “Dia da Terra”, no decurso do qual seis palestinos foram mortos em 1976, quando defendiam a sua terra expropriada pelas autoridades israelenses na região da Galileia.

Seguindo a tradição da resistência passiva, as nossas atividades são pacíficas e realizar-se-ão junto da fronteira até 15 de maio, 70º aniversário da “Nakba”, no decurso da qual mais de um milhão de palestinos foram expulsos dos seus lares. Todos os palestinos da nossa pátria e da diáspora, incluindo homens, mulheres e crianças, participarão nestas marchas e nas manifestações que reivindicam, todas elas, justiça, liberdade e o direito à vida. As nossas atividades serão supervisionadas por um comitê nacional representativo de todas as forças e facções palestinas, bem como a sociedade civil, personalidades e simpatizantes palestinianos.

O Comitê difundiu numerosas publicações e instruções destinadas aos participantes nas marchas, sublinhando o caráter pacífico deste movimento especial e a necessidade de evitar a violência e as provocações de Israel, que têm por objetivo a escalada da violência. O Comitê designou igualmente diversos representantes no território para supervisionar as nossas ações coletivas e assegurar que a nossa mensagem fosse difundida por meios poderosos e pacíficos. Esperávamos, fizéssemos nós o que fizéssemos, que Israel se dedicaria a provocações no decurso das nossas manifestações, e nós faríamos todo o possível para que as suas ações incendiárias não tivessem resposta.

Uma vez mais, os nossos piores receios vieram infelizmente a concretizar-se, quando Israel começou a disparar centenas de balas reais e granadas lacrimogênias face a manifestantes pacíficos, unicamente armados da sua determinação e da sua voz. Há muito que Israel teme, e faz tudo para contrariar, todos os esforços realizados pelos palestinos para revelar ao mundo a realidade da ocupação e do cerco de Gaza, realidade que comprova a falsidade da pretensão israelense de ser o único Estado democrático da região: um Estado que respeitaria os direitos do homem e honraria o direito fundamental da liberdade de expressão. Levanta-secontra esse mantra a realidade cotidiana das forças de ocupação, que mostra uma realidade completamente diferente…uma realidade impregnada de racismo, de violência e de violações sistemáticas dos direitos do homem.

A recente prisão e detenção de Ahed Tamimi, hoje com 17 anos de idade, na Cisjordânia, por ela ter esbofeteado um soldado israelense fortemente armado que tinha entrado na sua casa, é apenas um dentre centenas de acontecimentos que mostram o que é a vida e a morte na Palestina. Não há muito Ibraheem Abu Thuraya, que se deslocava em cadeira de rodas, foi morto por um atirador de elite israelense simplesmente por ter agitado uma bandeira palestina em frente aos soldados que controlam quem pode entrar ou sair do local cercado onde vivem cerca de dois milhões de pessoas.

Tendo em conta a longa e bem documentada história das violências da Ocupação, os palestinos temem com razão que, apesar da natureza pacífica destas marchas, Israel venha a servir-se delas como pretexto para matar e ferir ainda mais dos nossos concidadãos. No passado, as forças de ocupação nunca demoraram em provocar as manifestações não violentas para as fazer degenerar em confrontos violentos no decurso dos quais as nossas comunidades e os nossos filhos pagaram um alto preço por tentarem fazer ouvir as suas vozes.
O mais recente ataque israelense contra o nosso pacífico povo prova, uma vez mais, que a história se repete e que isso permite prever o que aí vem.

Todavia, não nos deixaremos desencorajar pelas agressões de Israel, porque exercemos o nosso direito fundamental de resistir à opressão e de nos manifestamos para garantir aos nossos filhos um futuro melhor, um futuro com o cunho da justiça e da igualdade.

*Bassem Naim, que reside em Gaza, foi ministro da Saúde e conselheiro do primeiro-ministro palestino para as relações internacionais.

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