Comunidades tradicionais cada vez mais ameaçadas

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Em 2017 foram registrados 70 homicídios em conflitos territoriais segundo a Comissão Pastoral da Terra: nove a mais que em 2016 e mais que o dobro do registrado em 2013. Mais pobres e minorias étnicas são as principais vítimas.

A reportagem é de Tom C. Avendaño, publicada por El País, em 22-04-2018.

Fátima Barros, de 42 anos, é antes de tudo quilombola. É a primeira coisa que diz, com uma voz que normalmente é aguda, mas que hoje, depois de horas expondo injustiças em uma reunião de comunidades tradicionais do Cerrado, emBalsas (Maranhão), está rouca: “Eu construí minha identidade em torno da causa quilombola”. Essa mulher negra, de feições arredondadas e olhar duro, poderia ter construído sua identidade em torno de, por exemplo, o fato de ser a primeira mulher de sua família, descendente de escravos do Tocantins, a ir à universidade. Mas, em 2010, um fazendeiro queimou o quilombo de São Vicente, que tinha sido o lar de sua família desde que seu tataravô foi libertado daescravidão em 1888, e depois entendeu que sua vida seria uma luta onde quer que estivesse. “Eu não podia escolher não lutar porque sou mulher, negra e quilombola: sou o que o Brasil não quer ver”, disse.

Assim, Fátima Barros é uma líder quilombola. Assim como também era seu companheiro Gabriel Pacifico dos Santos, de um quilombo da Bahia. Até que, no dia 19 de setembro, alguns homens desceram de um carro branco e lhe deram 10 tiros enquanto ia a um enterro. Assim como também eram os outros 12 líderes assassinados no Brasil em 2017, um número até agora inédito, mas que sugere ser a nova norma no campo brasileiro. “No Congresso, as bancadas mais fortes são as ligadas ao agronegócio e aos latifundiários. Esse fato favorece a criação de projetos de leis que fortalecem os que têm interesse em explorar as nossas terras”, explica Fátima. “O uso da força outrora executado pelos pistoleiros agora também está sendo reforçado pelas milícias do campo que, em algumas regiões, servem como seguranças armadas particulares para os fazendeiros e empreendedores.” No dia 15 de abril, Nazildo dos Santos Brito, líder dosquilombos do Alto Acará, foi encontrado com três tiros na cabeça.

As zonas rurais brasileiras sempre foram lugares violentos, onde os problemas, sobretudo territoriais, são resolvidos com pistolas, incêndios e sangue, e não com uma sentença judicial. Mas fazia tempo que não corria tanto sangue quanto agora. De acordo com o relatório recém-publicado pelo observatório da Comissão Pastoral da Terra (CPT), em 2017 foram registrados 70 homicídios em conflitos territoriais: nove a mais que em 2016 e mais que o dobro do registrado em 2013. Embora os números gerais de violência tenham aumentado no maior país da América Latina, em poucos lugares ela cresceu como no campo. Devemos recuar a 2003 para encontrar um número tão alto. As piores matanças aconteceram nos estados do Pará, Rondônia e Bahia.

As vítimas são geralmente pobres e de alguma minoria étnica. A CPT calcula que os mortos que inflam os números são, ao menos desde 2015, pessoas sem terra que trabalhavam para outros temporariamente, indígenas, quilombolas, ocupantes de terras abandonadas e pescadores. Alguns enfrentamentos são autênticas batalhas, como a chacina contra os índios Gamela que aconteceu em Viana (Maranhão) em abril do ano passado: 13 índios ficaram feridos – cinco por balas – e dois tiveram a mão decepada. Mas a maioria das vítimas se deve a enfrentamentos menos dramáticos e que, portanto, têm menos repercussão. Como o que teve a comunidade de Aliene Barbosa, uma jovem das margens do rio Arrojado (Bahia). Um dia, em 2015, descobriram que sua terra havia sido ocupada por pistoleiros, que tinham até montado barracas durante a noite para ficar de guarda.

“Éramos 80 pessoas para enfrentá-los”, lembra Aliene agora. “Eles ameaçaram atirar e quebraram o braço de um companheiro, mas não fomos embora. Ficamos e batemos neles”, diz, encolhendo os ombros na lógica cristalina entre uma ação e outra. “Quase todos fugiram, menos um. Nós o capturamos e o amarramos em um poste. Cortamos as cercas que tinham colocado, queimamos seus carros e derrubamos as casas. E então, com tudo em ordem, já respondemos à justiça”.

Muitos dos entrevistados concordam que a violência é consequência do apoio do Governo de Michel Temer à bancada do agronegócio. E a verdade é que há vítimas em ambos os lados. Mas é também verdade que, quanto mais branco alguém for e quanto mais dinheiro tiver, menos possibilidades tem de ser uma vítima. “Gente como eu não é bem atendida em hospitais, também não ensinam para nós nas escolas”, explica Cristina, uma das poucas indígenas que restam da tribo Itay, a etnia Guarani-Kaiowá de Douradina (Mato Grosso do Sul).

Eles retomaram suas terras quatro vezes desde 2011 e ainda têm que lidar com os pistoleiros de vez em quando. Vivem em um ciclo de violência e ameaças do qual suspeitam que não sairão. Mas pior seria não lutar. Fátima Barros tem isso bem claro. Ela foi ameaçada de morte, como todos de sua família. Mas, sentada em sua mesa de pedra, com a voz rouca depois de ter falado a 700 pessoas de comunidades tradicionais do Cerrado em Balsas, ela sabe por que está ali: “Essa luta não é tanto pela terra, mas pelo respeito pelo passado. A vida que meus ancestrais levaram. O quilombo de São Vicente foi dado ao meu tataravô por seu dono, Vicente Bernardinho, por ser seu escravo preferido. Eles o tiraram de nós sem razão alguma. Em 2010, provamos diante dos tribunais que era nosso legalmente, mas se não tivéssemos conseguido teríamos perdido tudo. Isso está errado. Nossa história é importante. O povo negro é bom contando histórias, as mulheres as contam enquanto quebram babaçu. Temos que conseguir que as escutem”.

Em meio ao maior ataque aos direitos indígenas dos últimos 30 anos, começou o Acampamento Terra Livre

Com o tema “Unificar as lutas em defesa do Brasil Indígena – Pela garantia dos direitos originários dos nossos povos”, a 15ª edição do Acampamento Terra Livre (ATL) teve início na segunda-feira (23), no Memorial dos Povos Indígenas, no Eixo Monumental Oeste, Praça do Buriti (em frente ao Memorial JK), em Brasília (DF). Neste ano, está prevista a participação de pelo menos 2,5 mil indígenas de mais de cem povos das cinco regiões do país.

Acesse aqui a Programação do ATL.

A reportagem foi publicada por Instituto Socioambiental, em 23-04-2018.

Maior mobilização dos povos originários do Brasil, o ATL está inserido na semana de Mobilização Nacional Indígena (MNI), e acontece em um contexto de ampla ofensiva sobre os direitos dos povos originários e de aumento da violência nos territórios. Com foco no direito territorial, a principal reivindicação do acampamento é a retomada das demarcações das Terras Indígenas (TI) e a revogação do Parecer 001/2017 da Advocacia-Geral da União (AGU), oficializado pelo presidenteMichel Temer e que, na prática, inviabiliza os procedimentos demarcatórios.

Temer tem o pior desempenho nas demarcações entre os presidentes desde 1985. Ele não assinou nenhum decreto de homologação de terras indígenas e deixou passar em branco o 19 de abril, Dia do Índio, quando, em geral, os governos assinam portarias e decretos relacionados aos procedimentos demarcatórios.

“Nunca como hoje, nos últimos 30 anos, o Estado brasileiro optou por uma relação completamente adversa aos direitos dos povos indígenas. O governo ilegítimo de Michel Temer assumiu uma política declaradamente anti-indígena pondo fim à demarcação e proteção das terras indígenas, acarretando a invasão dessas terras por empreendimentos governamentais e privados”, afirma a Convocatória da Mobilização Nacional. A bancada ruralista e o Judiciário também têm atuado duramente no sentido de vulnerabilizar os indígenas.

Historicamente, a semana do ATL é o período em que os povos indígenas pressionam os Três Poderes para a manutenção e efetivação de seus direitos constitucionais e das legislações internacionais, como a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).

Com encerramento no dia 27, a programação prevê plenárias, debates, audiências com parlamentares e representantes do Executivo, Legislativo e do Judiciário. Tradicionalmente, durante o evento ocorrem protestos, assim como rituais tradicionais e diversas manifestações culturais.

O ATL é realizado pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e conta com o apoio de organizações indígenas e indigenistas.

Acesse aqui a Convocatória do ATL.

Serviço

O que – Acampamento Terra Livre (ATL)

Onde – no Memorial dos Povos Indígenas, no Eixo Monumental Oeste, Praça do Buriti (em frente ao Memorial JK), Brasília

Quando – De 23 a 27 de abril

Mais informações – Assessoria de Imprensa do ATL:

Patrícia Bonilha – (61) 9 9643-8307 – patricia.bonilha@greenpeace.org / Letícia Leite – (61) 9 8112-6258 – leticialeite@socioambiental.org

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