A condição da mulher e a «primeira opressão de classe»

imagemDomenico Losurdo, El Viejo Topo

Resumen Latinoamericano

O gênero das lutas de classes emancipadoras inclui uma terceira espécie, além das duas que conhecemos. Sim, existe outro grupo social, muito numeroso, tão numeroso que é a metade ou mais da população total, um grupo social que padece da «autocracia» e anseia a «libertação» (Befreiung): trata-se das mulheres, sobre quem pesa a opressão exercida pelo varão entre as quatro paredes domésticas (MEW, 21; 158). Estou citando um texto (A origem da família, da propriedade privada e do estado) que Engels publicou em 1884. É verdade que Marx tinha morrido há um ano, porém já entre 1845 e 1846, em A ideologia alemã, texto no qual Engels se remete explicitamente, observa que na família patriarcal «a esposa e os filhos são os escravos do homem» (MEW, 3; 32). Por sua vez, o Manifesto, que não se cansa de criticar a burguesia pela redução do proletário à máquina e instrumento de trabalho, assinala que «para o burguês, sua própria mulher é um simples instrumento de produção»; pois bem, «trata-se justamente de abolir a posição das mulheres como meros instrumentos de produção» (MEW, 4; 478-479). A categoria utilizada para definir a condição do operário na fábrica capitalista também se utiliza para definir a condição da mulher no âmbito da família patriarcal.

Visto no conjunto, o sistema capitalista se apresenta como uma serie de relações mais ou menos servis impostas por um povo a outro povo em escala internacional, por uma classe a outra no âmbito de um país e pelo homem à mulher no âmbito da mesma classe. Compreende-se, então, a tese que formula Engels remetendo-se a François-Marie-Charles Fourier e que também defende Marx, a tese de que a emancipação feminina é «a medida da emancipação universal» (MEW, 20; 242 e 32; 583). Para o bem e para o mal, a relação homem/mulher é uma sorte de microcosmos que reflete o ordenamento social: na Rússia amplamente pré-moderna, submetidos a uma implacável opressão de seus amos, os camponeses – observa Marx – são capazes, por sua vez, de dar «surras horríveis e mortais em suas mulheres» (MEW, 32; 437). Vejamos agora a fábrica capitalista: ainda que o poder despótico do patrão subjugue a todos os operários, o faz de um modo especialmente humilhante com as mulheres: «sua fábrica é ao mesmo tempo seu harém» (MEW, 2; 373).

Não é difícil encontrar na cultura da época vozes que denunciam o caráter opressor da condição feminina. Em 1970, Condorcet (1968, vol. 10, p. 121) disse que a exclusão da mulher dos direitos políticos é um «ato de tirania». No ano seguinte, a Declaração dos direitos da mulher e da cidadã, escrita por Olympia de Gouges, chama a atenção em seu artigo 4 sobre a «tirania perpétua» imposta pelo homem à mulher. Na Inglaterra, mais de meio século depois, J. S. Mill fala da «escravidão da mulher», «tirania doméstica» e «servidão real» (atual bondage) sancionada pela lei (1963-1991, pp. 264. 288 e 323 = Mill 1926, pp. 18, 68 e 139).

Porém, quais são as causas desta opressão e da insensibilidade geral frente a ela? Condorcet (1968, vol. 10, p. 121) condena «o poder do costume», que ofusca o sentido da justiça inclusive nos «homens ilustrados». De modo parecido, argumenta Mill (1963-1991, pp. 263-264 = Mill 1926, pp. 15, 17 e 19), que remete ao conjunto de «costumes», «prejuízos» e «superstições» que é preciso superar ou neutralizar com «uma sã psicologia». Ainda que se faça referência às relações sociais, só se trata das «relações sociais de ambos sexos», que sancionam a escravidão ou submissão da mulher por causa da «inferioridade de sua força muscular» e da vigência neste âmbito da «lei do mais forte».

Não se indaga a relação entre a condição da mulher e as outras formas de opressão. E mais, aos olhos de Mill (1963-1991, pp. 264-265 = Mill 1926, p. 19) a relação homem/mulher é uma espécie de ilha na qual ainda se mantém a lógica da submissão, que já ficou muito para trás em outros âmbitos: «Vivemos, ou vivem pelo menos uma ou duas das nações mais avançadas do mundo, em um estado em que a lei do mais forte parece totalmente abolida, e se diria que já não serve de norma aos assuntos dos homens». Em compensação, do ponto de vista de Marx e Engels, a relação entre a metrópole capitalista (as «nações mais avançadas do mundo») e as colônias é, mais que nunca, uma relação de domínio e submissão; e na própria metrópole capitalista a coação econômica (ainda não jurídica) segue presidindo as relações entre capital e trabalho.

Por acaso é Mary Wollstonecraft (2008, p. 30) quem une a denúncia da «dependência servil» que se reserva à mulher com o questionamento da ordem social. O domínio machista parece próprio do antigo regime. Enquanto os campeões da luta pela abolição da escravidão denunciam a «aristocracia da epiderme» ou a «nobreza da pele» (Losurdo 2005, cap. 5, § 6), a militante feminista critica o que, em sua opinião, se configura como o poder aristocrático dos varões: a denúncia deste poder já unida à condenação das «riquezas» hereditárias e das «honras hereditárias», à condenação das «absurdas distinções de estamento». Em todo caso, «as mulheres não se libertarão» de verdade «até que os estamentos não se misturem» e «não se estabeleça mais igualdade em toda a sociedade» (Wollstonecraft 2008, pp. 109 e 139). Outras vezes, parece que a feminista e jacobina inglesa questiona a própria sociedade capitalista. Sim, as mulheres deveriam «ter representantes em vez de ser governadas sem nenhuma voz nas deliberações do governo». Porém, não podemos perder de vista que na Inglaterra os operários também estão privados de direitos políticos:

Todo o sistema de representação neste país é só uma cômoda ocasião de despotismo. As mulheres não deveriam esquecer que estão representadas na mesma medida em que o está a numerosa classe dos operários, trabalhadores esforçados que pagam pelo sustento da família real, apesar de que a duras penas consegue saciar com pão a boca de seus filhos (Wollstonecraft 2008, p. 113).

Não faltam os pontos de contato entre condição operária e condição feminina: o mesmo que para os membros da classe operária, «os poucos trabalhos abertos às mulheres, longe de serem liberais, são servis». Por último, no âmbito desta crítica global das relações de domínio que caracterizam a ordem social existente, as próprias mulheres (sobretudo as de situação mais acomodada) devem fazer um exame de consciência, pois às vezes dão mostras de «loucura» pelo «modo com que tratam os serviçais na presença das crianças, fazendo com que seus filhos acreditem que aqueles devem servir-lhes e suportar suas destemperanças» (Wollstonecraft 2008, pp. 115 e 137).

A «jacobina inglesa», que é uma exceção genial, parece em certo modo precursora de Marx e Engels, que estabeleceram um nexo entre divisão do trabalho no âmbito da família e divisão do trabalho no âmbito da sociedade.  Segundo, em particular, formula a tese de que «a família nuclear moderna se baseia na escravidão doméstica, aberta ou dissimulada, da mulher»; em todo caso, «o varão é o burguês, enquanto a mulher representa o proletariado» (MEW, 21; 75).

Entre os contemporâneos de Marx e Engels, quem faz uma análise que poder se parecer com a sua não é J. S. Mill, mas sim Nietzsche, ainda que com um juízo de valor oposto. O crítico implacável da revolução como tal, incluída a revolução feminista, compara a condição da mulher com a dos «miseráveis dos estamentos inferiores», dos «escravos do trabalho (Arbeitssklaven) ou dos presos» (Genealogia da moral, III, 18) e indiretamente junta o movimento feminista com o movimento operário e o movimento abolicionista: os três buscam afanosamente, por denunciar com indignação, as diferentes «formas de escravidão e servidão», como si constatá-las não fosse a confirmação de que a escravidão é «o fundamento de toda civilização superior» (Para além do bem e do mal, 239).

Evidentemente, o motivo do nexo entre submissão da mulher e a opressão social em geral está desenvolvido de um modo mais amplo e orgânico em Engels, remetendo-se sempre ao livro A ideologia alemã, que escreveu com Marx e permaneceu inédito muito tempo: «a primeira opressão de classe coincide com a do sexo feminino pelo sexo masculino». É uma longa história que ainda não terminou:

A abolição do matriarcado foi a derrota do sexo feminino no plano histórico universal. O homem tomou o comando da casa e a mulher foi degradada, submetida, convertida em escrava de seus desejos e simples instrumento para fazer filhos (Werkzeug der Kinderzeugung). Este estado de degradação da mulher […] foi gradualmente adornado e dissimulado, às vezes teve formas mais suaves, porém nunca foi eliminado (MEW, 21; 68 e 61).

Seção 4 do primeiro capítulo do livro de D. Losurdo, A luta de classes. Uma história política e filosófica.

Fonte: http://www.resumenlatinoamericano.org/2018/06/29/la-condicion-de-la-mujer-y-la-primera-opresion-de-clase/

Tradução: Partido Comunista Brasileiro (PCB)