“Este monstro mole e indeciso ainda que é o Brasil” (Mário de Andrade)

imagemJacques Grumman

Faço minha declaração de voto. Não dá para ser a seco. O país está mergulhado num clima irracional, o debate político foi substituído por uma combinação ácida de frustrações, sentimentos difusos e messianismo. Nos bastidores, reaparece um fantasma que assombrou, torturou e dizimou minha geração. No Brasil, quando a caserna, em aberto desafio à Constituição, se mete a dar opinião política, advertência vira ameaça. Por tudo isso, qualifico o que penso e, para organizar melhor o pensamento, vou ser um tanto esquemático. Lamento.

1. Antes de dar um passo à frente, dou dois atrás. A resistência à ditadura civil-militar nunca foi uniforme, mas sabíamos quem era o inimigo principal. Isso nos unia, mesmo sob regras eleitorais draconianas e claras divergências doutrinárias. Em 1974, por exemplo, esta unidade em torno do MDB derrotou a ditadura em 16 estados. Esse ponto é importante: podemos ter dúvidas sobre os aliados, mas jamais sobre o inimigo.

Hoje, vivemos uma situação inédita, tanto pela dimensão como pela velocidade com que surgiu. Nunca houve um partido de massas de extrema-direita no Brasil. Continua não havendo, mas uma plataforma inorgânica protofascista está seduzindo amplos setores sociais e conseguindo penetrar em todo o país. O desgaste da representação política, e essa é uma responsabilidade também da esquerda, joga nos braços de um deputado medíocre a catarse contra a violência cotidiana e a insegurança econômica. O nível de esquizofrenia é tal que, por mais que o ex-capitão ofenda as mulheres, ele continua crescendo neste segmento. Nestas horas, parece que o país surtou.

O inimigo principal é, portanto, a extrema-direita. Sem desvios ou dúvidas. Faz lembrar um personagem do Henfil. Cada vez que um político ligado à ditadura tentava desviar a atenção popular, o personagem gritava “Diretas-já !”. Todas as divergências se dissolvem para derrotar o projeto totalitário. As firulas a gente resolve depois.

2. É tarefa importante dos partidos de esquerda e movimentos populares analisar o fenômeno filofascista, sem subestimá-lo ou folclorizá-lo. Que direita é essa ? Que bases sociais a sustentam ? Que interesses representa ? Pode evoluir para uma formação orgânica, uma espécie de “direita popular” ? Não são questões triviais. O possível enfrentamento, em segundo turno, entre o pesadelo do coturno e a impossível volta a uma Shangri-lá idílica (o tempo não para, dizia Cazuza), sob a direção de um novo Padim Ciço, tornará as respostas muito urgentes. Digo mais. Qualquer que seja o resultado final desta eleição, o horizonte será movediço, sujeito a turbulências extremas.

3. Um dos traços melancólicos do quadro eleitoral é a indigência partidária. Praticamente tudo está fulanizado. Os partidos políticos, quase todos, são meros logotipos de palanque. Candidatos do PDT, por exemplo, não falam de trabalhismo. Alguns se penduram na herança de Brizola e Darcy Ribeiro (como se fossem nomes populares entre os jovens …), sem explicar do que se trata. Ilusionismo. O PT, que nasceu de uma conjugação de forças que lutaram contra a ditadura e foi, na origem, socialista, há muito abandonou este projeto. O petismo é cada vez mais substituído pelo lulismo, vulgarização envergonhada da tradição sebastianista lusa. A corrosão da base operária levou ao que o sociólogo Ricardo Antunes chama de “sindicalismo negocial, maneiroso para fora e mandonista para dentro”. O projeto de poder articulou, e continua articulando, alianças com partidos e políticos ligados às oligarquias. Quem não lembra a famosa feijoada na casa de Paulo Maluf, cujos comensais foram Lula e Haddad ? Quem pode esquecer os apoios formais de Lula à sucessão de bandidos que governaram o Rio de Janeiro nos últimos anos ? Francisco de Oliveira, sociólogo e fundador do PT (do qual se desligou na alvorada do mensalão), chama o lulismo de “perversão do petismo”. Exagero ? Não sei. O que sei é que a exaltação de mitos despolitiza e facilita o caminho da direita.

Ainda o Chico de Oliveira: “Os partidos tornam-se irrelevantes para a grande política; esta se decide em outras instâncias, fora dos controles democráticos e republicanos; o Banco Central é a principal delas. A economia engole o Estado”.

4. O processo de conciliação de classes e a miragem do poder pavimentaram a estrada para a corrupção. Só mesmo o fanatismo pode explicar a negação deste fato. Cito dois personagens. Lula, em 2005: “Eu me sinto traído por práticas inaceitáveis sobre as quais eu não tinha qualquer conhecimento. Não tenho vergonha de dizer que nós temos de pedir desculpas”. Jamais esclareceu que “práticas inaceitáveis” eram aquelas, muito menos pediram desculpas ou fizeram uma autocrítica. Tarso Genro, em 2012: “Que tem pessoas que cometeram ilegalidades, não tenho dúvidas. Seria debochar da Justiça do país e do processo dos inquéritos achar que todo mundo é inocente”. Isso me permite sair do terreno da conspiração, mantra único de quem não se dispõe a aceitar o óbvio.

5. A utopia da esquerda foi sequestrada neste século. Substituída pelo gerenciamento de conflitos típica dos limites do movimento sindical. Como se bastassem bons administradores para harmonizar interesses contraditórios. Frase lapidar neste sentido foi dita por um ilustre representante do capital: Delfim Neto (a quem chamávamos de Gordinho Sinistro quando era o czar da economia dos generais). Reconhecendo a habilidade negociadora de Lula, sentenciou: “Lula salvou o capitalismo no Brasil”. É para isso que se quer reformar o país ? Para manter intocada a dinâmica da acumulação capitalista ?

Para entender este processo, Chico de Oliveira elaborou o conceito de hegemonia às avessas. Controvertido, lembra o Chico o que aconteceu na luta contra o apartheid sul-africano. Derrotado o regime nefando, adotou-se uma política neoliberal ortodoxa. “Você derrota o apartheid para servir aos senhores do apartheid”, ponderou. No caso brasileiro, apesar dos permanentes esbravejamentos contra as “elites”, governou-se com elas. Nunca os banqueiros ganharam tanto dinheiro como nos meus governos, diz Lula com orgulho, imaginando que pode replicar o modelito em qualquer quadra histórica. E vai seguindo a procissão …

6. Nunca votei em nomes. Sou antigo, voto em programas. Assim, e dentro da perspectiva de fortalecer uma referência de esquerda que vá além do espaço limitadíssimo das urnas, votarei nos candidatos da coligação PSOL/PCB/MTST/movimentos sociais. De presidente a deputado estadual. Não é, sei disso, um voto pragmático. E direi que pouco importa. O que me importa é contribuir para a reinserção de objetivos abandonados exatamente pelo excesso de pragmatismo (no limite, não há diferença para o cinismo) e mancebia com a dinâmica exploradora do capital.

Como se materializa essa intenção ? Recorro ao professor Vladimir Safatle: “Sugiro que a esquerda pare de tentar impedir a autodestruição do capitalismo e lute por uma sociedade na qual a propriedade não seja mais a representação única da liberdade”.

7. No segundo turno, coerente com o que escrevi no princípio, é unidade para barrar o fascismo.

Para terminar, me ocorre uma antiga peça de teatro, escrita por Paulo Pontes. Brasileiro, Profissão Esperança surgiu quando fazia muito escuro nas nossas vidas. E saímos daquilo, penosamente, mas transformando o desencanto, o conformismo, em esperança militante. É disso que precisamos.

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