Por que o fascismo cresce no Brasil?

imagemCarlos Serrano Ferreira

Nestes últimos dias meus colegas cientistas sociais vêm falando que seria necessário refundar a ciência social brasileira para explicar o crescimento do fascismo no Brasil. A surpresa se deve em particular à adesão de massas empobrecidas, negros, mulheres e homossexuais a este projeto, logo setores que são já atacados discursivamente por esse movimento e que sofreriam mais fortemente com um governo fascista. A surpresa é ainda maior por este tsunami eleitoral fascista ocorrer uma semana depois das enormes manifestações feministas do “Ele Não”. Uma análise destas por si só necessitaria um artigo extenso e profundo, mas que esboço alguns comentários, tendo em vista sua importância para a discussão do tema em tela.

O “Ele Não” faz parte de sucessivas, explosivas e recorrentes manifestações de massas que ocorreram no Brasil desde os anos 80: as ‘Diretas Já!’, as greves gerais, o ‘Fora Collor!’, a Marcha dos Cem Mil em Brasília pelo ‘Fora FHC!’ e as manifestações de 2013. Contudo, desde estas últimas, cinco anos atrás, incluindo-as, não há classe trabalhadora organizada e setores populares organizados como participantes expressivos. E se o ‘Ele Não’ foi progressista em relação à afirmação feminista, teve debilidades importantes e que explicam muito sobre o cenário político-social atual. Foram centradas na luta contra o machismo, mas não se ligaram às lutas gerais de classe e mesmo contra o fundo do fascismo. Isto aponta que um fascismo com roupagem mais ‘moderna’, que ao menos não seja abertamente machista, teria como resultado a inexistência de mobilizações de massas antifascistas, pois mesmo os demais setores de luta contra opressão, como homossexuais e negros, não têm a capacidade de mobilizar da mesma forma. E isto não é impossível. Pois, como se mostrará, o fascismo precisa construir inimigos, mas o único obrigatório, pois é o central e causa de sua existência, é a classe trabalhadora organizada e a esquerda. Exemplos claros desta versão mais ‘moderninha’ do fascismo já ocorreram na Europa, como a Alice Weidel, líder lésbica do partido fascista alemão AfD ou o falecido líder do partido neofascista austríaco Partido da Liberdade, Jörg Haider, gay também, para ficar em apenas dois dos mais famosos exemplos. Além disso, as mobilizações acabaram por se tornar explosões catárticas, não se materializando em organização concreta para o futuro.

Não creio no entanto que seja necessário recriarmos nada na ciência social brasileira, não mais do que a criatividade normalmente exigida para a tarefa científica. O que é preciso é aprofundar o estudo do fascismo, entender o seu significado histórico, bem como os fatores estruturais e conjunturais que possibilitam o seu enorme crescimento no Brasil e no mundo todo. Não podemos nos restringir à espuma do processo político brasileiro, e devemos procurar inclusive a nova correlação de forças entre as classes na sociedade brasileira. Principalmente, é preciso sair de análises que se fixam na aparência do fascismo, e entender sua natureza, sua essência. É como uma primeira contribuição neste sentido que escrevo este artigo, que precisará ser aprofundado, inclusive pelo debate coletivo. Sempre se pensa melhor coletivamente que isoladamente.

Qual é a essência do fascismo? Aqui podemos ter a ajuda das análises marxistas, que já produziram muito material sobre o tema. Uma definição que sintetizaria o debate é que o fascismo é o regime dos setores mais reacionários da burguesia, que se utiliza de métodos de guerra civil para destruir a democracia operária e os organismos da classe trabalhadora. Se é verdade que precisamos distinguir o fascismo-enquanto-movimento do fascismo-enquanto-regime (Dos Santos, 1978; Villaverde Cabral, 1982, entre outros), isto ocorre primordialmente pois o primeiro é essencialmente um movimento pequeno-burguês, das classes médias, e o segundo é um regime burguês, do grande capital, em particular o financeiro. Essa passagem de um para o outro é produto de duas realidades.

A primeira é que a pequena burguesia, ou em sentido mais lato – pois inclui setores da aristocracia proletária e setores burgueses de baixo calado – as classes médias, não são uma classe essencial do capitalismo, não representam os pólos centrais em luta. Por isso não são capazes nem de dirigir o capitalismo, como a burguesia, nem podem propor uma alternativa social superior, como o proletariado. Consequentemente, podem se juntar em certos momentos ao projeto proletário, quando este demonstra força e está em avanço, ou à contra-revolução burguesa, quando esta é mais forte e afirmativa. Quando tenta elaborar um projeto próprio, produz um pastiche, que amalgama fragmentos dos programas burgueses e proletários, e mesmo resquícios pré-capitalistas, formando uma bizarra composição. Como o fascismo-enquanto-movimento precisa elaborar um programa, e o máximo que consegue é essa bizarrice inconsequente, e enquanto regime baseia-se em métodos de guerra civil, ele é sempre e essencialmente irracionalista. Faz o culto da força, da morte e da guerra, habita no sobrenatural. O fascismo rejeita os valores racionalistas, iluministas e humanistas, que foram característicos do capitalismo em ascensão e dos períodos de crescimento – ainda que estes valores se convertam em realidade cada vez mais no elogio da técnica e da burocracia, bem como a defesa do humanismo se converte em mero discurso hipócrita a justificar intervencionismos externos e filantropias internas lucrativas. O fascismo nega mesmo conquistas científicas que contrariem sua visão de mundo irracionalista, chegando às raias da loucura, como a atual defesa de muitos deles da “Teoria” da Terra Plana, a negação do Holocausto ou a afirmação de que o nazismo era de esquerda. As teorias conspiratórias também são um dos passatempos preferidos dos fascistas.

É por isso que o fascismo pode assumir um discurso nacionalista econômico e mesmo de defesa da autarquia em um momento, e atualmente defender programas antinacionalistas econômicos e ultraliberais; pode usar uma retórica anticapitalista em um momento, e em outro ser o defensor aberto do capitalismo; pode ser racista em generalidade, como era o nazismo, ou admitir negros, inclusive líderes, como Abdias do Nascimento e João Cândido, membros do integralismo brasileiro; pode ser antissemita, como muitos foram no passado e alguns ainda o são, ou deixarem de ser e passarem a ser islamófobos e mesmo defensores de Israel; podem assumir um discurso imperialista, expansionista, como nos anos 1930 e 1940, ou de Estado de Contra-Insurgência, voltado para o inimigo interno, como as ditaduras militares latino-americanas a partir dos anos 1960… O fascismo assume a forma e se apropria de partes das tendências de uma sociedade em uma dada época, inclusive o ódio a setores que já são tendencialmente oprimidos em cada momento. É por isso que os seguidores do candidato fascista brasileiro ficam confusos quando tomam a forma pelo conteúdo e, ao verem o nome de Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães, acreditam que o nazismo era de esquerda, quando na verdade o nazismo apenas parasitou a aparência do comunismo para poder alcançar trabalhadores em um momento em que o comunismo tinha influência na Alemanha e na Europa em geral. Porém, o nazismo, como qualquer estudioso ou mesmo um cidadão bem informado saberá, é o oposto do comunismo, é seu inimigo mortal. O nazismo, ao utilizar o termo socialismo, utiliza um expediente de propaganda hipócrita. Na conjuntura das democracias de massas e de ascenso socialista do início do século XX, alguns dos regimes contra-revolucionários tiveram de mimetizar as manifestações revolucionárias. Por exemplo, “o movimento na Alemanha é no essencial análogo ao italiano. É um movimento de massas, cujo dirigentes usam e abusam de demagogia socialista. Tal é necessário para a criação do movimento de massas” (Mandel, 1976, 1986). Aqui é válida a frase de François de La Rochefoucauld: “a hipocrisia é uma homenagem que o vício presta à virtude”.

Mesmo em sua forma de organização, ela pode variar em relação ao componente de mobilização. Em países em que a política de massas era ou é presente, o fascismo enquanto movimento assume formas mobilizadores, como emulação. Em países onde isto não ocorre, esta característica é menor, como no caso do fascismo português ou do fascismo espanhol (este por sua origem e suporte militar), em que pode se valer simplesmente do apoio de massa silencioso, em sociedades aonde a política não é ativa publicamente. O que não torna o peso desse apoio menos forte e esmagador para os opositores, pois deixa as mãos livres para o regime ditatorial atuar sem preocupações. Lembre-se o caso português, aonde silenciosamente muitos foram parte da rede de informadores da famigerada PIDE/DGS.

Talvez seja quando há o elemento mobilizador mais claro é que se pode notar a maior diferença entre as duas fases, o fascismo-enquanto-movimento e o fascismo-enquanto-regime. A mobilização em ambos se dá sob o domínio de uma estrita hierarquia, e não como atividade livre, criativa e participativa, mas como o seu oposto, pois intenciona a supressão da liberdade e a desmobilização dos setores ativos da sociedade:

“Trata-se da natureza intensamente mobilizadora do fascismo. Ora, já foi quanto a nós convincentemente argumentado, por Organski por exemplo, que tal mobilização, mais episódica e instrumental do que animada de qualquer estratégia a longo-prazo, já antes da tomada do poder se transforma depois da tomada do poder em mero ritual ratificatório, sem qualquer incidência sobre o processo de tomada de decisões ao nível do Estado. Além disso, tal mobilização é de ordem estritamente política e tem por objectivo e limite a desmobilização social do proletariado, o qual possuía, sim, uma estratégia e visava a transformação da sociedade burguesa. Em nossa opinião, são estes efectivamente o objectivo e o limite da mobilização fascista. E não resisto a citar as sábias palavras de Samuel Barnes a este respeito: ‘Alguns sistemas de mobilização totalitária surgem como reacção contra outras estruturas de mobilização. Tais sistemas são, efectivamente, muito mais negativos do que ideológicos e, embora tenham uma pseudo-ideologia formal, esta não é um guia para a acção, e só é levada a sério pelos jovens, pelos ignorantes e pelos universitários’. [Grifos no original.]” (Villaverde Cabral, 1982, p.7-8).

Mesmo estas mobilizações se tornam ainda mais ritualizadas. Isto é assim pois o objetivo dos fascistas quando no governo é restringir a liberdade, desfazer os avanços, o que em si significam restrições. Logo, para estes as restrições externas – inclusive externas ao Estado – ao seu campo de ação são menores. A história demonstra que, ao menos no médio prazo, a redução da liberdade é sempre mais simples, pois conta principalmente com a apatia generalizada e a inércia, do que é a expansão da liberdade, que exige ação e atuação consciente e enérgica. As forças da inércia atuam para reforçar a retração da liberdade. Ainda que os condicionantes externos possam determinar a forma como se manifesta essa restrição da liberdade.

O outro motivo para a passagem de movimento à regime é a aceitação a partir de certo momento pela burguesia. Normalmente, a burguesia não adota o fascismo como meio principal. Porém, não há lugar aonde o fascismo tenha chegado ao poder sem que para isto contasse com o apoio econômico dos pesos-pesados do grande capital e sem a colaboração dos partidos burgueses – fossem conservadores ou liberais. Na verdade, a forma normal, convencional, de passagem para o fascismo, foi a conversão interna do regime, a partir de um processo de aprofundamento do Estado de Exceção, que leva em em certo momento a um salto qualitativo para o fascismo. Foi assim na Alemanha e na Itália, por exemplo, por dentro das estruturas democráticas. Em Portugal houve várias crises internas no parlamentarismo da Primeira República, o crescimento da centralização com a ‘República Nova’ de Sidónio Pais, depois o golpe de 28 de Maio de 1926 e a Ditadura Nacional (1926-1933) e finalmente um regime abertamente fascista, com Salazar e o Estado Novo, a partir de 1933. Entre os casos mais importantes a grande exceção foi o franquismo, que foi uma ruptura aberta com a institucionalidade vigente desde o início, por um golpe militar, como também ocorreu no Chile de Pinochet. Esse caminho regressivo e faseado ao Estado Fascista mostra como não é só a classe trabalhadora que aposta em processos sem ruptura: esta, em sua evolução, primeiro busca reformas, até que só lhe resta o caminho da revolução; já a burguesia aposta primeiro em medidas reacionárias, até que adota o regime contra-revolucionário do fascismo. Isto remete ao caso brasileiro, aonde a burguesia apostou inicialmente em um golpe institucional, com a instrumentalização e partidarização da luta contra a corrupção – o que também é típico do fascismo, o discurso da “regeneração moral da nação”, ainda que sejam na prática corruptos até à alma – e o impeachment de Dilma Rousseff e a imposição de Michel Temer, para só à frente avançar com o apoio ao candidato fascista, para aprofundar a reação. Colabora no processo a incapacidade dos representantes tradicionais da burguesia em se apresentar como agentes capacitados de cumprir essa tarefa, como o falhanço político de Geraldo Alckmin.

Contudo, a burguesia só aposta em última instância no fascismo não por ser preferencialmente democrática, pois nunca foi e ainda não é. Cita-se muito a Revolução Francesa, mas esta só alcançou a radicalidade que teve pois o processo foi levado aos limites do possível pelas massas populares, não seguindo os desejos da burguesia. Esta preferia um modelo inglês moderado e conciliador. A democracia liberal seria atualmente, não fossem as mobilizações socialistas e operárias, uma democracia censitária, como era no início do século XIX. Seria apenas um regime de homens de posse, cidadãos de bens (note-se o eco com o ‘cidadão de bem’ atual). Seria uma plutocracia (governo dos ricos) escancarada. Ela teve que incluir as mulheres, negros e trabalhadores em geral devido às lutas dos de baixo contra os de cima. Só por isto a ditadura de classe não assumiu a forma de um regime democrático abertamente dos ricos e uma ditadura aberta contra os trabalhadores. A universalização do sufrágio só não realizou os temores da burguesia de perda de controle, pois esta conseguiu trazer para seu campo setores de direção das classes populares (a social-democracia). Contudo, se a ameaça do sufrágio fosse concreta, a burguesia buscaria suprimi-lo universalmente, como já o fez em vários países, em muitos momentos. A democracia liberal permite uma circulação intra-elites, entre as frações burguesas, o que acalma as tensões entre estas, ao menos em geral, e por isso é até certo ponto útil. Porém, mais do que isso: não se recorre à métodos de guerra aberta permanentemente, pois isto fragilizaria a hegemonia da própria classe dominante. Por isso o fascismo é para ser “consumido com moderação” pela burguesia, apenas de tempos em tempos.

E aqui chego à outra conclusão importante, e que explicará muito do crescimento do fascismo no Brasil e no mundo no último período: o liberalismo e o fascismo não são antagônicos. Pelo contrário, o fascismo é a continuação do liberalismo por outros meios, parafraseando Carl von Clausewitz, que afirmava que “a guerra é a continuação da política por outros meios”. Esta percepção já está indiciada na excelente obra de João Bernardo, Labirintos do fascismo, com o qual não concordo em sua integralidade, mas que traz elementos importantes a serem refletidos. Ele afirma neste livro que

“É a partir daqui que podemos analisar as formas específicas de organização que os fascistas implantaram nas suas milícias, nos seus partidos e nos seus sindicatos, em que a ausência de qualquer capacidade de iniciativa da base correspondia à sua fragmentação e à sua redução aos indivíduos, assegurando o prevalecimento incontestado das hierarquias. Do mesmo modo, nos festivais e desfiles […] cada indivíduo não era mais que um figurante, como que um espelho do modelo geral, multiplicando todos eles, até ao infinito, essa imagem singular, enquanto a coreografia do conjunto se organizava em função da figura central e exclusiva do chefe. Este foi um dos aspectos em que o fascismo esteve mais próximo dos liberais do que dos conservadores. Com efeito, para os conservadores o povo constituía uma totalidade orgânica, irredutível à soma de individualidades idênticas que constitui a massa. Foi o modelo liberal do cidadão – o indivíduo consumidor da economia ou o indivíduo eleitor da política – que presidiu à noção fascista de massas.” (Bernardo, 2003, p.28-29)

A burguesia, enquanto classe exploradora, precisa defender a hierarquia, como todos os regimes de exploração do passado o fizeram. Porém, devido à natureza do regime capitalista, tal qual o mercado que esconde atrás de sua aparência de espaço de livre-competição de unidades econômicas uma brutal concentração de riqueza em enormes e cada vez mais gigantescos monopólios, o Estado capitalista esconde a hierarquia real da sociedade, a desigualdade, sob a forma de uma aparente igualdade “cidadã”. Como já apontava Nicos Poulantzas (2007, p.358-359), “la estructura real de las relaciones de producción — separación del productor directo y de los medios de producción — conduce a una prodigiosa socialización del proceso del trabajo. Ese aislamiento, efecto sobredeterminado pero real, lo viven los agentes a la manera de la competencia y lleva a la ocultación, para esos agentes, de sus relaciones como relaciones de clase”. Isto engendra um processo de individualização que se materializa na dissolução ideológica da organização de classe e sua substituição pelo individualismo da cidadania. O que faz por um lado que se suponha que “[…] ese Estado representa el interés general, la voluntad general y la unidad politica del pueblo y de la nación” (Poulantzas, 2007, p.361). Estamos assim “en presencia del conjunto normativo institucional de la democracia política [acrescentaria eu, burguesa] [Grifos no original]” (Poulantzas, 2007, p.361).

Normalmente, esta forma política individualista convive com a existência de organizações de classe, econômicas e políticas. Se as organizações da classe trabalhadora avançam, elas podem substituir o Estado Capitalista e construir um novo Estado, Operário, uma democracia socialista. Isto ocorreu em muitos países ao longo do século XX, tendo refluído, como parte dessa luta de classes internacional, ao final do século passado e início deste. Por outro lado, quando se avança a dissolução da organização dos trabalhadores, dos organismos de poder popular, nos aproximamos do fascismo, que visa precisamente a destruição de toda a democracia proletária, incluindo os seus partidos e sindicatos. Nesse processo, a ação clara, com métodos de guerra civil, acaba por romper o invólucro ideológico do regime democrático capitalista, mostrando à luz do dia as entranhas do regime capitalista, seu caráter plutocrático e hierárquico.

O fascismo pretende converter a classe trabalhadora em massa, pois “as massas populares assentam a sua existência, enquanto massas, na desorganização da classe trabalhadora. A perda de consciência sociológica da classe trabalhadora e a sua redução a uma entidade meramente económica é caracterizada, no plano político, por uma conversão da classe em massas. Foi este um dos objectivos básicos do fascismo” (Bernardo, 2003, p.28). Essa diluição em massas precisa de um anteparo ideológico, que é a nação. Não a nação em sua substância histórica e material, mas em sua abstração ideal. Por isso, o fascismo, mesmo quando possui programas antinacionalistas, como o atual fascismo brasileiro, recorre à sombra do nacionalismo, para aquela parte de dissolução das diferenças – o oposto da realidade de quase todas as nações – em particular a dissolução do elemento de alteridade que afirma o caráter classista, ou seja, o comunismo, ou o substituto imediato de organizador da classe trabalhadora, até mesmo a social-democracia. E, como diluidor, por sua vez, das diferenças própria internas das nações, apela para um político “regenerador”, um líder carismático que seria a personificação do modelo de nação (mesmo que em realidade sejam todos estes exemplares abjetos de depravação, sadismo e corrupção).

Por isso, o liberalismo, e sua versão radicalizada contemporânea, o neoliberalismo, são sempre as antessalas do fascismo, desbravadores do mesmo. Por sua política econômica e social, destrói na prática o tecido social e econômico dos países, levando à ampliação brutal da desigualdade social, da miséria popular e da violência generalizada, o que leva à disseminação da angústia e incerteza existencial, o que, por sua vez, abre espaço para todas as formas de obscurantismos e irracionalismos. O medo é o berço do fascismo, é o mar em que navega, é o norte de sua bússola. Não é por acaso que as políticas austeritárias vigentes na Europa tem estimulado o avanço das forças fascistas.

Contudo, é por sua ideologia de individualismo extremista que o neoliberalismo prepara o terreno para as hordas fascistas. Como disse uma das maiores apóstolas dessa religião laica, Margaret Thatcher, “[…] there’s no such thing as society. There are individual men and women and there are families” [‘não existe tal coisa, a sociedade. Existem homens e mulheres individuais e há famílias’ em tradução livre]. Nessa sociedade individualizada não há solidariedade, mas é um mundo da competição total, com uma moral que admite qualquer comportamento para ascensão e sobrevivência, o mundo estadunidense dos vencedores e perdedores. A violência na competição social se converte, cada vez mais, no culto da violência como meio de vida. A brutalidade é valorizada. É o tempo em que a maior diversão de massas esportiva é o vale tudo, e em que há a generalização universal da brasileira Lei de Gérson (“Gosto de levar vantagem em tudo, certo?”) e do “jeitinho”. Não há luta coletiva, mas a luta de indivíduos contra indivíduos pela ascensão social, com vagas cada vez mais limitadas.

O fascismo é a tendência radicalizada do neoliberalismo, que por sua vez é próprio da natureza da burguesia na etapa atual de decadência sistêmica quando não possui freios impostos pelas organizações dos trabalhadores. Nos termos de Marx, o bonapartismo no século XIX era um equilíbrio catastrófico da luta de classes, pois equilíbrio entre organismos de poder da classe operária e burguesa paralisados pela incapacidade de lutar, pelo esgotamento (e a impossibilidade naquele momento histórico de ascensão do capitalismo da passagem ao socialismo). A verdade é que a democracia liberal é uma realidade precária, um equilíbrio pela afirmação ativa das organizações burgueses e proletárias, marcante principalmente nos países centrais nas três décadas posteriores à Segunda Guerra Mundial. Isto ocorria principalmente pela presença de um forte campo socialista internacional. Não se pode entender a correlação de forças única e exclusivamente em nível nacional, mas pela influência internacional.

Quando é possível à burguesia avançar, desorganizando a classe trabalhadora, o que se inicia como um liberalismo ou neoliberalismo ativo acaba por se converter, se não tiver uma forte oposição, em  fascismo. E a burguesia necessita, devido à lei de tendência à queda da taxa de lucro, derivada do próprio funcionamento capitalista normal, de avançar sobre as condições de vida e trabalho dos trabalhadores, para ampliar a mais-valia e tentar contrariar esta tendência. Para isso precisa exatamente desarticular as resistências dos trabalhadores. Isto é uma necessidade particularmente severa, quando as margens são ainda mais reduzidas durante as fases B dos ciclos de Kondratiev, de descenso, e é exponenciada nos períodos conturbados de decadência do ciclo de uma potência hegemônica.

O que assistimos desde o início dos anos oitenta no mundo é a imposição do neoliberalismo, que serve fundamentalmente para transferir riqueza para o setor financeiro e assim gerar um desemprego massivo e estrutural, que destrói com as organizações da classe trabalhadora. Isto, somado ao retrocesso produzido pelo fim da União Soviética e das democracias populares – irresponsavelmente comemorado por setores da esquerda –, possibilitou um avanço descontrolado das tendências fascistizantes.

Esta dinâmica ter se instalado após às contra-revoluções no Leste Europeu contraria o discurso liberal e dos revisionistas históricos que afirmam que o fascismo é uma resposta ao perigo revolucionário. Pelo contrário. O fascismo só foi capaz de surgir e vicejar aonde a revolução já tinha sido derrotada, como na Alemanha, após a derrota do ciclo revolucionário de 1918-1923, ou na Itália, após a derrota do Biénio Rosso de 1919-1920, para quedarmos apenas nos exemplos mais conhecidos. Mesmo nos golpes fascistas contra processos revolucionários, como no caso espanhol e chileno, só foram possíveis suas vitórias devido à dubiedade e tibiez de seus dirigentes, que congelaram o avanço revolucionário e, por isso, os levaram à derrota, o que abriu o caminho para a ofensiva fascista. A República Espanhola não avançou para a resolução dos problemas das nacionalidades, não fez a reforma agrária generalizada, não libertou o Marrocos, etc; Salvador Allende se prendeu aos limites da institucionalidade burguesa e não avançou ao socialismo, apesar de suas importantes reformas. Aonde a marcha da revolução avançava, como na Rússia de 1917, a intentona fascista de Kornilov é derrotada, bem como o Exército Branco na guerra civil. Uma derrota da Revolução Russa teria levado inelutavelmente ao fascismo de imediato ou quase de imediato. Por isso os que afirmam que o fascismo não pode vencer no Brasil atual pois inexiste um perigo revolucionário, ou desconhecem as lições do passado ou agem ideologicamente orientados, como os historiadores revisionistas ao tratarem dos fascismos do Entreguerras (sobre isto sugiro a leitura da brilhante resposta do recentemente falecido marxista italiano, Domenico Losurdo, em seu livro Guerra e Revolução).

Lembremos também que o fascismo tem convivido normalmente com a economia liberal. O nazismo teve à frente de sua política econômica, durante boa parte de seu governo, um liberal ortodoxo, Hjalmar Schacht. Este só contrariou com medidas práticas os princípios econômicos que defendia para afastar, como ele afirma em suas memórias, ‘o perigo comunista’ (Schacht, 1999). Sintomaticamente, seu Plano Helferich será estudado por Gustavo Franco e será a inspiração para o Plano Real, que asfalta o caminho para o choque neoliberal profundo dos anos FHC. Será Gustavo Franco, ex-presidente do Banco Central, então do PSDB, dirigente do Instituto Millenium (ultraneoliberal) e atual militante do Partido Novo (também ultraneoliberal), que prefaciará a edição brasileira das memórias do economista de Hitler. Também é fundador do Instituto Millenium o Paulo Guedes, atual mentor econômico do candidato fascista brasileiro e o seu possível Ministro da Fazenda. Ele também é a ponte entre o fascismo brasileiro com a experiência fascista que, não só melhor se combinou com o neoliberalismo, como inaugurou a ofensiva neoliberal, a ditadura de Pinochet (1974-1990). Não é de se estranhar, pois para impor o choque neoliberal em uma sociedade altamente mobilizada e em avanço progressista só com o recurso ao fascismo. Paulo Guedes lecionou durante um período dessa ditadura na Universidade do Chile. Ele é PhD pela Universidade de Chicago, que não só formou importantes ultraneoliberais, como Milton Friedman, como forneceu os assessores econômicos à Pinochet, os famosos Chicago Boys.

No Brasil, a fascistização começará a trilhar seu caminho com a derrota da greve dos petroleiros em 1995, no início do governo FHC, que possibilitou o início de um violento programa neoliberal. Nem mesmo os governos social-democratas do PT reverteram esse processo, pois não mexeram com os fundamentos econômicos neoliberais, ainda que se beneficiando de uma conjuntura internacional favorável. Sua política distributiva, ainda que acessória e extremamente importante, como o Bolsa-Família, não rompeu com a lógica liberal, pois não passava pelo fortalecimento das organizações da classe trabalhadora, mas reforçava a dinâmica cidadã, ou seja, centrada no fortalecimento dos direitos dos indivíduos isolados, ainda que com algumas exigências ao nível das famílias, como o comparecimento das crianças nas escolas. Ao abordar isto não significa que desconheçamos ou neguemos a importância do programa. Apesar de limitado em recursos, colaborou para o resgate de milhões da indigência e gerou um impacto positivo na economia. Ao contrário do “Bolsa-Banqueiro”, dos juros da dívida e das transferências financeiras, que gera o enriquecimento de uma minoria reduzidíssima, e não têm nenhum retorno positivo para a economia, pelo contrário, tem feitos deletérios. Note-se que ao não realizar uma política governamental que passasse essencialmente pelo fortalecimento das organizações da classe trabalhadora, o PT produziu uma situação curiosa: em meio à hegemonia ideológica neoliberal, os ganhos que grandes parcelas da população obtiveram em seus governos foram enxergados posteriormente não como produto dessa época, mas do esforço individual desses trabalhadores e pequeno-burgueses. Obviamente, eles se esforçaram, mas sem o ambiente criado não teriam conseguido ir tão longe.

Contudo, esse processo de construção da hegemonia neoliberal e fascistização não foi produto apenas de inciativas a partir do Estado, mas contou com o suporte das organizações privadas da burguesia e de seus aparelhos ideológicos, como os monopólios dos meios de comunicação. A principal organização a educar as gerações de jovens que crescerão nos anos noventa será a Rede Globo. Veja-se o caráter dos programas voltados para esses públicos, como a série ‘Malhação’, que durante muitos anos apresentou toda uma concepção neoliberal, individualista e competitiva, imoral. Também foi ajudado pelo grupo Abril, que publica entre outros o semanário Veja, aonde encontramos novamente a sombra de Paulo Guedes, que investiu na Abril Educação, dos irmãos Civita.

Essa fascistização das massas brasileiras é um diferencial em relação à ditadura militar (1964-1985), quando o Estado era então fascista, de tipo contra-insurgente, mas não conseguiu disseminar uma cultura fascista. E um elemento que facilitou esse processo foi o crescimento das seitas convencionalmente chamadas de evangélicas, mas que são sobretudo neopentecostais. Estas ocuparam, principalmente, o vazio deixado entre os mais pobres pela quase destruição total da Teologia da Libertação durante os papados ultrareacionários de João Paulo II e Bento XVI. É preciso entender o diferencial destas seitas para as igrejas protestantes tradicionais, bem como em relação às outras igrejas e religiões, como o judaísmo, o catolicismo, o cristianismo ortodoxo, o islamismo e o hinduísmo e as religiões de matriz africana, por exemplo. Estas tem origens pré-capitalistas ou, no máximo como os protestantes tradicionais, emergiram na transição para o capitalismo, por isso possuem contradições com o capitalismo, tendo assistido ao longo de tempo a emergência de ramos progressistas. O neopentecostalismo, porém, surge já no período de decadência capitalista, nos anos 1960 e 1970, na grande potência imperialista de nosso tempo, os Estados Unidos. O neopentecostalismo é a religião do imperialismo: congrega ao mesmo tempo uma Teologia da Prosperidade e uma defesa do individualismo econômico e social com movimentos de diluição dos indivíduos em grandes massas; possui práticas marcadamente irracionalistas, como o curandeirismo, a glossolalia (“falar em línguas”), profecias, batalha espiritual, com o “enfrentamento” direto dos demônios, e um mundo repleto e dominado diretamente pela influência de seres sobrenaturais, além de um forte discurso moralista conservador. Como se nota é, também, claramente, a única religião intrinsecamente fascista. Sua estrutura organizacional reproduz as estruturas fascistas, como o líder carismático, a forte hierarquia e o domínio total do líder, e mesmo a formação de milícias, como a “Gladiadores do Altar”, de uma das maiores e mais poderosas seitas, a Igreja Universal do Reino de Deus. Como o fascismo, também estabelece relações com o lumpenproletariado e há vários indícios apontados pela imprensa de conexões com o submundo do crime. E é no uso dos meios de comunicação de massa, e contando com a conivência do Estado, que eles foram penetrando e ocupando governos, criando uma das maiores bancadas parlamentares. Com uma visão fundamentalista do cristianismo, destilam o ódio contra os homossexuais, feministas e contra qualquer traço de modernidade, em particular contra as organizações sindicais e a esquerda (ainda que parte da social-democracia tenha coabitado durante algum tempo com essas seitas). Tendo em vista que ela inicialmente se espraiou entre setores mais empobrecidos – atualmente chegando até à classe média – ela incorporou algumas características, realizando um sincretismo doutrinário com as religiões de matriz africana, em particular pela incorporação de elementos animistas. Contudo, por sua dinâmica fascista, não aceita conviver com a diferença, e passa a satanizar e perseguir, inclusive violentamente, essa religiões, e a reboque, ataca toda a cultura popular negra e favelada. Desta forma, assume conotações também racistas e serve à desarticulação das organizações populares nessas comunidades. Não é por acaso que a IURD e sua emissora, a Record, embarcaram na campanha do fascista.

Por outro lado, a hegemonia neoliberal terá resultados inclusive sobre a dinâmica da oposição ao neoliberalismo. A partir dos anos noventa, frente ao retrocesso das organizações de classe, e apoiado por uma ofensiva ideológica emanada dos Estados Unidos, a esquerda começa a migrar do debate de classe, e mesmo do debate classista de luta contra as opressões, para uma posição identitarista, liberal, de luta contra as opressões. Também migra da afirmação da posição classista de mundo para uma posição “cidadã” (liberal), e como um eco tardio do eurocomunismo, esbate a diferença entre democracia liberal e a democracia operária, e dilui tudo na defesa de uma democracia – sem corte de classe ou definição – como valor universal, tentando esconder sua adesão enquanto ala esquerda do neoliberalismo e do regime. A forma liberal de debater as opressões, além de vender falsas ilusões de superação das diversas opressões dentro do capitalismo, é de corte individualista, biologizante, irracionalista em alguns casos, e que se torna um instrumento de desorganização das organizações da classe trabalhadora. Divide os explorados e oprimidos e explode a realidade em múltiplas e fragmentadas identidades, deixando de lado a identidade que as unificava, exatamente a de explorados e oprimidos, a identidade de classe. É a era do pós-modernismo, do “fim das grandes narrativas”, tudo se transforma em discurso, em batalhas semânticas. Muitos destes movimentos são claramente contrários à esquerda e criam um ambiente irracionalista favorável ao fascismo, pois levam a disputa política para o campo que o fascismo brasileiro quer disputar, o dos costumes e o da moral. A esquerda liberalizada não consegue oferecer uma identidade unitária que congregue todas as lutas de opressão casando-as com a luta anticapitalista, classista, e se vê desarmada frente à identidade nacionalista – ainda que essencialmente antinacionalista –, de extrema-direita, militarista e fundamentalista cristã, que unifica todo o fascismo brasileiro.

Tendo em vista todo esse processo, ainda falta responder algumas questões centrais sobre o processo fascista atual: quem na classe dominante brasileira apoia o fascismo e porquê? Para isso é preciso entender a dinâmica da economia e da composição da classe dominante e de suas frações hegemônicas: passamos de uma coalizão liderada pelo setor industrial, suportada pelo setor financeiro e secundada pelo setor do agronegócio (nome ‘modernoso’ para os velhos coronéis e latifundiários), para uma coalizão dominada pelos setores financeiro e do agronegócio, secundado pelo setor industrial. Essa composição tem como resultado um retrocesso nas forças produtivas nacionais e uma inserção cada vez mais dependente do país no mercado mundial.

O gigante agrícola se baseia em uma estrutura predatória e superexploradora de caráter profundamente desigual, incapaz de gerar renda que sustente a elevação do nível de consumo das massas e que possa ter efeitos positivos sobre os restantes setores econômicos. Um vislumbre do último Censo Agropecuário (2006) revela a continuidade desses padrões: a agricultura de pequena escala representava 80% das propriedades, empregava três quartos da mão de obra rural, mas representava apenas 25% das terras agrícolas, enquanto a pecuária ocupava metade da área e as monoculturas da soja, cana e milho representavam 60% das áreas plantadas. A agricultura tem servido para desperdiçar e esgotar nosso potencial hídrico e reduzir importante fonte de riquezas em tempos de florescimento da biotecnologia, que é a nossa biodiversidade, ameaçada pela expansão irracional e criminosa da fronteira agrícola.

O peso desse setor cresce enquanto o setor industrial tem visto sua participação no PIB encolher desde seu auge em 1985 (21,6%), e a desnacionalização dos setores estratégicos se aprofunda, onde a venda da Embraer foi apenas mais um triste capítulo (defendida pela equipe do fascista). O peso do setor primário levou a que o Brasil se associasse à pujança chinesa quase que exclusivamente por exportações agrícolas e de minérios, em uma dinâmica tipicamente semicolonial, apesar da enorme demanda de produtos industrializados por parte desse país. Este processo, por sua vez, fragiliza obviamente a classe trabalhadora, pois reduz a sua vanguarda, o operariado industrial.

Um dos bloqueadores ao desenvolvimento é a concentração bancária: em 2016, os quatro maiores bancos (Caixa, BB, Bradesco e Itaú) concentraram 79% do mercado de crédito nacional e dos depósitos e 73% dos ativos do sistema financeiro, segundo o BC. Além disso, a dinâmica de atendimento governamental ao setor financeiro internacional e nacional, que retroalimenta a ampliação das dívidas interna e externa para auferir lucros, mina o desenvolvimento nacional e possibilita que em 2015 o gasto com juros e amortizações da dívida pública tragasse 42,43% do Orçamento Geral da União. É aqui que está o grande quinhão do setor financeiro.

Este processo de desindustrialização é ainda mais perverso, pois agrava os já graves limites às políticas de redistribuição de renda e de concessões. Os governos do PT, sem se enfrentar com os fundamentos econômicos desse processo, foram capazes, durante os anos de crescimento, de distribuir uma parte minoritária, mas ainda assim importante, da riqueza. Porém, isto não se coaduna com a crise econômica e, principalmente, com os planos do novo (velho) bloco dominante. As reformas progressistas se tornam inviáveis e a superexploração se torna o único caminho, em definitivo, para o capitalismo dependente brasileiro, o que a Teoria Marxista da Dependência já afirmava, mas é necessário dar novos saltos, saltos brutais, no nível de superexploração. O país toma feições cada vez mais parecidas com o Brasil da República Velha (1889-1930). Contudo, fazer a história retroceder em um século necessita um esforço hercúleo. Um ajuste deste só se torna possível com o uso da força, só se torna possível com um método de guerra civil, só se torna possível com o fascismo. É impossível impor esse nível de retrocesso aos direitos sociais e às condições de vida e de trabalho da classe trabalhadora brasileira sem destruir por completo qualquer tipo de organização desta enquanto classe.

E é aí que vai de roldão mesmo o PT, que assumiu ao longo do período de redemocratização, em particular a partir dos anos 1990, o papel de ala esquerda de sustentação do regime democrático liberal. Este se sustentava com uma perna esquerda, sindical-política, o PT, e uma perna direita, industrial-financeira (cada vez mais a segunda), o PSDB. Isto era possível dentro de um equilíbrio ativo de forças. Este foi rompido pelo processo de retrocesso econômico estrutural. O PT pôde, dentro de uma política de conciliação, nos marcos de um ambiente internacional favorável, recuperar a credibilidade da democracia liberal brasileira após o descrédito que esta caíra após o nefasto choque neoliberal dos governos de Fernando Henrique Cardoso (PSDB). Fez inclusive concessões à burguesia, como a (contra)reforma da previdência e a lei de terceirizações, pois atingiam no primeiro caso setores organizados periféricos para as bases petistas, o funcionalismo público, e no segundo caso, os setores desorganizados, mais precarizados, que escapam à estrutura burocrática tradicional do movimento sindical. Mas, quando exigido pelo novo bloco dominante burguês agrário-financeiro que fizesse medidas mais profundas, como a (contra)reforma trabalhista, aprovada por Temer, que retrocedeu a legislação trabalhista ao nível pré-CLT (1943), não podia realizá-las. A essa altura, já tinha perdido o apoio de extensos setores da classe trabalhadora e das classes médias, ao adotar uma política econômica neoliberal austeritária, e perdeu o suporte dos setores dominantes.

Esse novo bloco foi então apostando na destruição institucional do PT, dentro dos marcos da ordem. Contudo, ao não enfrentar resistências à sua ofensiva por parte da classe trabalhadora, derivado da confusão que se instalou com o golpe de 2016 nas principais lideranças da classe, e estando estas já desacostumadas ao papel de mobilizadoras – tendo atuado no sentido oposto por mais de uma década – o bloco dominante continua a avançar contra o PT, a esquerda e o conjunto das organizações da classe trabalhadora. É aí que encontra, ansioso para realizar a tarefa, o candidato fascista e seus seguidores. Com contradições, com o passar do tempo, o conjunto dos setores dominantes embarcam em sua candidatura, abandonando os políticos mais tradicionais e seus partidos. Nesse processo o PSDB será reduzido quase à pó, deixando de ser um partido em escala nacional – ainda que não nacional no sentido político-programático, pois refletiu sempre interesses do capital internacional – e sobreviverá enquanto um partido de poderes locais, em particular em São Paulo. Mais uma característica que aproxima o período que vivemos do retorno à República Velha: guiados pelas mãos do fascismo o PSDB se converte cada vez mais em um Partido Republicano Paulista (PRP).

A hegemonia desse novo bloco rentista-latifundiário pode ser notada também culturalmente, quando o sentido da produção cultural, em particular musical, se inverte, e ao invés de partir do Rio de Janeiro e do litoral do país para o interior, passa a ser dominado pelo sertanejo (não nacional, mas uma versão abastardada do country estadunidense) em direção ao litoral. Vê-se o culto do agrário, do latifúndio, inclusive na campanha publicitária da Globo, que afirmava que “O Agro é POP”, que “O Agro é bom”.

O ódio de classe das elites brasileiras e das classes médias, estas historicamente a base de massas do fascismo, servirá a esse processo em curso. É um ódio seletivo, que dois anos atrás busquei explicar em artigo (Ferreira, 2016, s.p.):

“Porque a classe média – com notáveis e escassas exceções – odeia tanto? Odeia o Lula, odeia o PT, odeia os sindicatos, e odeia a esquerda (ao confundi-la toda com o PT)? O exercício de explicação não pode passar pelo seu discurso, que tal como em 1964, se fantasia da luta anticorrupção. Afinal, a corrupção não nasceu com o PT, nem alcançou seus píncaros sob os governos do mesmo. As panelas que batiam contra a Dilma silenciaram mesmo diante das sucessivas denúncias que atingem, como uma estaca, o coração do governo golpista, inclusive a figura sombria que o encabeça. Reina o silêncio […]. As castigadas panelas e os ouvidos sensíveis agradecem, mas a democracia não. Na verdade, essa parcialidade dos panelaços é histórica. Se contarmos apenas o período de redemocratização e sobre o tema de corrupção, onde estavam os batedores de panelas quando do escândalo do contrabando das pedras preciosas ou das concessões de rádios e TVs no governo Sarney? Onde estavam quando os jovens saíam às ruas contra Collor? Quando os trabalhadores lutavam contra as privatizações tucanas, escandalosas e corruptas, que entregaram as riquezas nacionais aos piratas corporativos estrangeiros que, ao invés de canhões, usavam moedas podres e contatos privilegiados? Onde estavam no escândalo do SIVAM? Onde estavam as panelas, que permaneceram incólumes, quando num golpe se mudava as regras no meio do jogo, com a compra da emenda da reeleição de FHC? Ou na maxidesvalorização, maxi-estelionato eleitoral? Ou no escândalo do BANESTADO? Onde estava quando do Tremsalão ou da Máfia da Merenda?

O ódio seletivo precisa ser explicado. E, esta explicação está no que é a atual classe média brasileira e sua posição na sociedade brasileira. […] A sua posição se define fundamentalmente por sua posição intermediária entre as classes extremas da sociedade brasileira, estando espremidos entre uma reduzida burguesia monopólica de grande riqueza e altíssima renda e uma massa proletária, subproletária e lumpenproletária, do campo e das cidades, completamente miserável. Mas, afirmar que estão numa posição intermediária não significa que estão eqüidistantes entre o topo e a base. Não. […] a desigualdade brasileira é tão grande que a classe média, ao não ver a elite acima, se crê no topo da pirâmide, se crê ela própria elite. É a “síndrome da Atlântica” [… ,] a classe média vê como ameaça a si mesma qualquer ameaça à elite. Como não pode mais se diferenciar das massas pela propriedade, a classe média passa a se diferenciar, como forma de diminuir seu medo da decadência social, pelo consumo. Aí está a raiz da “goumertização” de tudo, do rechaço a viajar em aviões com setores populares, e do ódio elitista à cultura popular. Aí está a origem de seu reacionarismo feroz e de sua rejeição à democratização social. A classe média defenderá com unhas e dentes a ordem que garante a desigualdade e as diferenciações. Aí está a raiz do ódio da classe média.”

Também engrossam esta base fascista os fiéis seguidores das seitas evangélicas fascistas, e mesmo outros setores populares, que enxergam erroneamente o PT como o único responsável de todos os males, deslocando seu justo ódio aos efeitos que a longa hegemonia neoliberal produziu no país, contra a esquerda, contra a sociabilidade moderna, contra os setores progressistas. É assim que as massas oprimidas se convertem em seguidores dos opressores e passam, pois desorganizadas enquanto classe e organizadas enquanto massa pelo fascismo, a odiar os outros oprimidos. A máscara progressista sob a qual o país profundo e a reação foram escondidos em anos recentes caiu e revelou a face mais abjeta fascista.

O processo de fascistização que vemos estará em curso vencendo ou sendo derrotado o candidato fascista. O resultado apenas definirá a forma dessa fascistização: no primeiro caso, seguirá a via italiana/alemã, no segundo caso, a via espanhola/chilena. O que é certo é que as expectativas de grande parte da esquerda brasileira de reverter eleitoralmente o fascismo são vãs. Quando o processo de fascistização entra em curso, por mais que se mantenha a forma democrática aparente, ela será apenas isso, aparência. O que existe é de fato uma guerra civil. A tragédia brasileira é que, até agora, só um lado entrou em campo para lutar: e não é o lado dos trabalhadores e do progresso.

Bibliografia:

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Dos Santos, Theotonio. Socialismo o fascismo. El nuevo carácter de la dependencia y el dilema latinoamericano. México, D.F.: Edicol, 1978.

Ferreira, Carlos Serrano. O ódio e a classe média. 2016. Disponível em: https://www.brasil247.com/pt/colunistas/geral/271244/O-%C3%B3dio-e-a-classe-m%C3%A9dia.htm.

Mandel, Ernest. Sobre o fascismo. Lisboa: Antídoto, 1976.

Poulantzas, Nicos. Poder político y clases sociales en el Estado capitalista. México, D.F.: Siglo XXI, 2007.

Schacht, Hjalmar. Setenta e seis anos de minha vida. São Paulo: Editora 34, 1999.

Villaverde Cabral, Manuel. O fascismo português em perspectiva comparada. Lisboa: A regra do Jogo Edições, 1982.