Zuleide Faria de Melo, uma comunista exemplar!

Ivan Pinheiro*

Texto apresentado em homenagem da Associação Cultural José Marti à camarada Zuleide, em 19 de outubro de 2018, no Rio de Janeiro, na sua posse como Presidente de Honra desta importante entidade de solidariedade a Cuba.

Segundo meus critérios, a querida amiga e camarada Zuleide é um excelente exemplo para se definir um verdadeiro comunista.

A meu ver, ela reúne os principais requisitos: militância orgânica, firmeza ideológica, referência nos fundamentos do marxismo-leninismo, exercício do internacionalismo proletário, respeito ao centralismo democrático, nenhuma ilusão na possibilidade de humanizar ou democratizar o capitalismo. Outra qualidade que valorizo muito: Zuleide nunca deixou de expor suas opiniões, mesmo quando as sabia minoritárias. Nunca fez qualquer concessão às muitas facetas do pós-modernismo, do oportunismo e do carreirismo. Dedicou sua vida à Revolução, que certamente nós dois não veremos, mas confiamos que um dia virá.

Em termos de contribuição teórica e prática, de exemplo, coragem e doação pessoal, Zuleide foi a principal referência do Movimento Nacional em Defesa do PCB que, em janeiro de 1992, derrotou os que queriam acabar com o partido, dando início à sua reconstrução revolucionária.

Durante quase quatro anos – antes, durante e depois dessa vitória – sua residência foi a sede nacional, primeiro do Movimento de Defesa e depois do próprio PCB, até conseguirmos a primeira sede própria. Com a contribuição decisiva e generosa da sua doce mãe, Dona Dolores, ali se davam as reuniões do núcleo duro da resistência ao reformismo, se hospedavam camaradas de outros Estados, recebíamos aliados e amigos. Posso citar aqui os encontros que ali tivemos com Álvaro Cunhal, com Miguel Urbano Rodrigues, com diplomatas cubanos e dirigentes comunistas da América Latina. Para quem não sabe, Zuleide é uma verdadeira dama, uma elegante anfitriã que se preocupa com os mínimos detalhes.

O escritório pessoal da Zuleide – que já estava e continuou a serviço da solidariedade a Cuba – passou a funcionar também como o secretariado político e de organização da resistência: fax, telefone, arquivos e uma histórica máquina de escrever IBM 82, em que, além de redigir fluentemente, ela datilografava com maestria atas, correspondências, circulares, panfletos, o que fosse necessário.

E não era só no trabalho intelectual e de organização que Zuleide se superava. Na luta em defesa do PCB e em sua reconstrução, ela foi a mais eficiente na captação de finanças, agitação e propaganda, no contato com simpatizantes, nas relações internacionais, na formação política e ideológica da militância, sobretudo da juventude.

Eu teria muitos casos para contar sobre o papel da Zuleide em nossas lutas. Mas escolhi um episódio que dificilmente teria ocorrido – ao menos com a expressão que acabou tendo – se não fosse por ela.

Em 17 de dezembro de 1991, no início da tarde, Zuleide me telefonou e, sem dizer o de que se tratava, por razões de segurança, me pediu para ir o mais rápido possível para sua residência. Chegando lá, contou-me a triste novidade: recebera a informação, de um contato de sua confiança na imprensa, de que o oportunista Roberto Freire, então presidente nacional do partido, entregaria pessoalmente no dia seguinte, às 18 horas, na sede das Organizações Globo, a ninguém menos que Roberto Marinho, o acervo digitalizado da memória do PCB que, durante a ditadura, ficara abrigado no chamado Arquivo Histórico do Movimento Operário, na Universidade de Milão.

O gesto do traidor era uma provocação repugnante. A um mês do evento chamado de “congresso” do partido, em que votaram não filiados, convocado especificamente para acabar com o PCB, ele entregava simbolicamente a história do partido para ninguém menos do que o dono do maior monopólio de comunicação a serviço da burguesia e do imperialismo.

Zuleide já me recebeu em casa com um anteprojeto de nota política a ser divulgada num ato público que resolvemos realizar no horário e local marcados para a entrega do acervo. Ali mesmo, começamos a telefonar para vários camaradas, pedindo-lhes que reproduzissem para outros a convocação.

O ato foi um sucesso e teve grande repercussão na imprensa, pois havíamos mobilizado jornalistas de confiança que trabalhavam em outros jornais. Com a presença de dezenas de militantes, fizemos uma boa agitação, onde não faltaram cartazes artesanais, bandeiras do partido, apupos e moedas baratas jogadas no traidor, quando, protegido por seguranças da Globo, saia do encontro que tivera com aquele que foi um dos principais suportes da ditadura burguesa sob a forma militar que, entre outras barbaridades, havia torturado e assassinado inúmeros socialistas e comunistas, inclusive do PCB.

Embora sempre muito afinados nas questões estratégicas e ideológicas, eu e Zuleide tivemos algumas divergências táticas e outras práticas, em discussões reservadas ou no âmbito do Comitê Central e de Congressos partidários. Nenhuma delas afetou o carinho e o respeito que sempre imperou em nossa relação.

Na formação de minha consciência política e ideológica, a intelectual orgânica revolucionária Zuleide Faria de Melo foi uma das principais referências.

A Associação Cultural José Marti acertou em cheio ao prestar homenagem à nossa Zuleide, sua Presidente durante longos anos. Seu amor, fidelidade e dedicação à Revolução Cubana sempre foram incontestes e incondicionais. Brinquei muitas vezes com ela, dizendo-lhe que tinha dupla militância, uma no Partido Comunista Brasileiro e outra no Partido Comunista de Cuba. Ela não negava; apenas sorria, com ar orgulhoso!

Hoje em dia já se pode contar o papel decisivo que Zuleide desempenhou na solidariedade a Cuba durante a ditadura. Mesmo correndo riscos, disponibilizou a mesma residência de que falamos nestas linhas para funcionar como uma espécie de embaixada cubana, na época proibida pelo regime de se instalar no Brasil. Ali era um dos principais espaços em que se movimentavam politicamente no Brasil, de forma discreta, os queridos camaradas cubanos, primeiro Cervantes e depois Ferreira, em nome do povo, do governo e do partido de seu país.

Sugiro aos atuais diretores da José Marti que façam chegar aos dirigentes cubanos, em especial aos do Instituto Cubano de Amistad con los Pueblos, que devem uma grande homenagem à camarada Zuleide, durante muitos anos uma verdadeira Embaixadora de fato de Cuba em nosso país. Ninguém no Brasil amou e se dedicou mais a Cuba do que ela.

*Ivan Pinheiro é membro do Comitê Central do PCB