A guerra dos quilombolas pelo direito à terra no Brasil

imagemO Programa Brasil Quilombola mapeou mais de 3 mil comunidades, mas forneceu apenas 40 títulos de propriedade de terra.

A reportagem é de Anna Sophie Gross, publicada por CartaCapital, 09-11-2018.

Os idosos se reúnem na sala de estar da casa da matriarca e procuram nos recantos de suas memórias as canções tradicionais que eles e seus antepassados costumavam cantar. Uma mulher acalenta o neto no colo. Lentamente, os quilombolas juntam letras de uma velha canção. Faz um bom tempo desde a última vez que cantaram.

Não é fácil chegar no Quilombo de Taboleirão. Para ir até lá, é preciso percorrer um caminho bem distante pelo sul do estado do Maranhão, ao longo de uma estrada poeirenta e esburacada. Quando a comunidade foi fundada, na virada do século 19 por escravos fugitivos, ficou protegida contra as autoridades pela mata nativa. Hoje, ela é enjaulada pelas plantações de soja.

Ao todo, 29 famílias vivem no local, todas descendentes de escravos que fugiram de seus senhores brancos para a relativa segurança do remoto Cerrado.

O Programa Brasil Quilombola do governo já mapeou mais de 3 mil comunidades, mas forneceu apenas 40 títulos de propriedade de terra. Esses direitos à terra estão consagrados na Constituição de 1988, mas não são honrados por um governo federal que procrastinou e resistiu ao processo de demarcação e reconhecimento por décadas – resistência que só piorou sob o governo Temer.

A maioria dos quilombolas tem pouca lembrança do quanto suas terras eram ricas e férteis; os colonos originais de Taboleirão cultivaram uma gama diversificada de alimentos e plantas medicinais em um terreno de 1.500 hectares, propriedade da qual não lhes foi dada a escritura.

A planície fértil em que suas plantações cresceram foi usurpada durante os anos de 1980 e 1990 por empresários do agronegócio que as reivindicaram como suas, primeiro plantando arroz e depois soja. “Costumava haver muita gente aqui perto do rio e ali nas planícies, era lindo”, lembra Necir Joaquina da Cruz, 76 anos, que nasceu lá e é filha da falecida matriarca do Quilombo. “Todos os animais foram embora por causa desse projeto [do agronegócio]”, contou, referindo-se ao Plano Agrícola Matopiba.

A lavoura de soja invadiu tão profundamente a comunidade que suas terras para cultivo encolheram para apenas 500 hectares ao longo do rio. Por diversas vezes, os moradores colocaram uma cerca para reivindicar seu direito a essa parcela, mas as barreiras são sempre derrubadas por seus vizinhos sojicultores. Afinal, suas terras à beira do rio são valorizadas: oferecem acesso vital à irrigação para as plantações de soja.

O longo caminho do direitos à terra

O líder comunitário José Lázaro da Cruz, de Taboleirão, lidera os esforços para conseguir que o direito à terra seja reconhecidos pelo governo brasileiro. No início deste ano, a comunidade recebeu a certificação da Fundação Cultural Palmares, órgão governamental que fornece a certificação quilombola – o primeiro e mais fácil passo no extenso caminho para uma transferência de propriedade.

Para obter um título oficial de propriedade da terra que habitaram e cultivaram por muitas décadas, o Taboleirão e os quilombos em todo o Brasil devem se inscrever no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). O Taboleirão fez isso há dois anos, mas não teve retorno algum. “Os sojeiros são ricos. Eles podem obter o máximo de terra e tantos títulos quanto quiserem, enquanto não conseguimos nenhum”, explicou José.

O superintendente do Incra no Maranhão, George de Melo Aragão, lamenta a fila de 400 comunidades quilombolas que aguardam o reconhecimento no Estado. Muitas comunidades estão na fila à frente de Taboleirão. “Temos recursos muito limitados”, justificou Aragão.

Hoje, há apenas nove pessoas trabalhando para reconhecer e nomear os 400 quilombos do Maranhão, com um financiamento para demarcação que despencou de quase 2 milhões de reais em 2016 para 80 mil reais em 2018.

Esse déficit reflete uma tendência nacional mais ampla de cortes abruptos nos programas sociais redistributivos do Brasil, que incluem cortes drásticos no Programa Brasil Quilombola (PBQ).

O PBQ foi lançado em 2004, em grande parte para ajudar os quilombos a obter acesso permanente à terra que reivindicaram por décadas e, às vezes, séculos. O orçamento nacional para identificar e demarcar essas terras caiu em todo o país de 6,2 milhões de reais em 2010 para 1,4 milhão de reais em 2018. Como resultado, apenas um quilombo recebeu a titularidade da terra em 2016, comparado a oito em 2014, de acordo com o Incra.

Da mesma forma, o orçamento para reparações – processo pelo qual o governo compra terras de proprietários privados para devolvê-las aos quilombolas – caiu de 42,6 milhões de reais em 2013 para 1,4 milhão de reais em 2018.

Se o governo não pagar os proprietários de terras que detêm a propriedade, as comunidades quilombolas permanecerão no limbo. Embora sua terra possa ser oficialmente demarcada, sem os pagamentos de reparação, os membros da comunidade ainda são impossibilitados de cultivar ou mesmo entrar no território.

Êxodo

O Quilombo do Grotão, no norte do estado do Tocantins, é emblemático quanto aos efeitos desses cortes. As dezenove famílias que vivem no local são descendentes da oitava geração de escravos fugitivos que se estabeleceram na terra.

Em 1984, os primeiros grileiros chegaram à região e começaram a reivindicar o território e transformá-lo em pastos lucrativos.
Não demorou muito para que esses intrusos, brandindo documentos de compra, invadissem a propriedade onde as famílias quilombolas viviam e plantavam.

Em 2008, um casal empreendedor levou sua ação ao tribunal; um ano depois, um juiz local concedeu a terra ao casal e determinou que toda família quilombola fosse expulsa. “O grileiro e seu filho vieram com a polícia, nem tivemos tempo de pegar nossas roupas”, disse Maria Aparecido Gomez Rodriguez, mãe de cinco filhos e líder comunitária.

As casas foram queimadas e propriedades destruídas, enquanto homens armados faziam ameaças. “Eles seguraram uma arma na cabeça de uma menina de 9 anos”, informou Rodriguez.

As famílias expulsas procuraram refúgio na cidade vizinha de Filadélfia, onde permaneceram por 90 dias. Organizações da sociedade civil lutaram pelo direito de retorno e, no final das contas, o mesmo juiz concordou em conceder-lhes apenas 100 hectares.

Depois disso, muitas famílias se dispersaram por medo ou porque seus meios de sobrevivência haviam sido negados.

Finalmente, em 2010, após numerosos apelos, o Incra realizou um estudo antropológico da área e determinou que 2 mil hectares pertenciam ao quilombo. Foi uma vitória agridoce, já que a história fez de Grotão uma comunidade – seu povo, tradições culturais e espírito – dispersa.

No entanto, os moradores de Grotão ainda não podem reivindicar a propriedade da terra, pois esperam que o Incra pague os 14 proprietários que detêm as escrituras do local. “Nossa esperança é que a comunidade esteja sempre aqui, mesmo depois que morrermos, e que o Incra nos dê a terra, para que possamos resgatar nossa cultura, nossa medicina, nossos modos de produção”, disse Rodriguez.

O superintendente do Incra do Tocantins, Carlos Alberto da Costa, afirma que o escritório regional não tem recursos para compensar os proprietários de terras. Ele admite que nenhum quilombo no Tocantins recebeu a titularidade da terra, embora dois estejam em fase final de processamento.

No Brasil, 3.133 quilombos foram certificados pelo órgão governamental Fundação Cultural Palmares. Até o momento, mais de 1.700 pediram ao Incra que demarcasse e concedesse o direito de propriedade de seus territórios. Desse total, o Incra demarcou apenas 260, com somente 40 direitos de propriedade definitivos.

“A postura sinalizada pelo governo Temer é que eles não querem avançar um milímetro no reconhecimento dos territórios quilombolas”, afirma Acácio Leite, engenheiro florestal do Incra. “O que estamos vendo nesse governo é uma negação de direitos e uma completa relativização da Constituição Federal”.

Procurado pela reportagem, o Ministério dos Direitos Humanos emitiu um comunicado destacando os avanços feitos na política quilombola nas últimas três décadas, que “se traduziam em um legado positivo para o período da democracia brasileira”.

No entanto, eles admitem que “o País ainda não superou as desigualdades sociais que afligem as comunidades tradicionais. Assim, é preciso avançar na eficiência das políticas públicas para consolidar os direitos desses grupos”.

O Ministério afirma que está tentando obter 190 milhões de reais para o INCRA no momento, e ressalta que estimam que o custo para pagar as reparações aos proprietários de terras seja algo em torno de 600 milhões de reais.

“O governo deu sinal verde para o agronegócio e nenhum apoio para aqueles que tentam resistir aos seus avanços”, disse Givania Silva, que está em período sabático do trabalho na política quilombola para o governo federal.

Estando o Incra de mãos atadas, não há nem mesmo um órgão para os quilombolas ameaçados recorrerem.

http://www.ihu.unisinos.br/584526-a-guerra-dos-quilombolas-pelo-direito-a-terra-no-brasil