O governo Bolsonaro e a dupla face de uma política externa servil

imagemPor Carlos Eduardo Martins BLOG DA BOITEMPO

A política externa do governo Jair Bolsonaro está orientada por dois vetores principais: a adesão ideológica ao trumpismo e a adoção de uma agenda neoliberal radical.

O primeiro vetor é atualmente comandado pelo núcleo de extrema-direita do governo, que se articula aos setores mais radicais do governo Trump e à liderança de Steve Bannon na organização de uma internacional neofascista, por meio do grupo The Movement. Ele é dirigido por Ernesto Araújo, Chanceler brasileiro, e pelo Deputado Federal Eduardo Bolsonaro, um dos filhos do Presidente – ambos com forte vinculação a Olavo de Carvalho, astrólogo e filósofo autodidata, que abandonou a escola antes de cumprir o ensino médio, e que, desde 2005, se radicou em Richmond, capital do exército confederado durante a guerra da secessão.

Esse núcleo pretende que o Brasil exerça um subimperialismo títere e servil na América do Sul, a partir da associação visceral aos Estados Unidos, e se torna fonte importante de captação das pressões de Trump e do neofascimo mundial sobre o governo brasileiro. O seu grau de fundamentalismo e servidão ideológica pode ser medido pelo artigo, “Trump e o Ocidente”, escrito por Araújo, até certo ponto sob influência de Samuel Huntington, que retrata Trump como expressão mítica e divina da salvação do Ocidente das garras de seu principal inimigo, um inimigo interno, constituído a partir da Revolução Francesa, expressando-se no liberalismo político radical, no ateísmo e no socialismo.

Entusiasma esse grupo a hipótese de uma participação brasileira em uma eventual intervenção para a “libertação” da Venezuela, da instalação de uma base militar dos Estados Unidos em solo nacional, da transferência da embaixada brasileira para Jerusalém, de saída do país do Acordo de Paris, com a sua retirada do Pacto Global de Migrações da ONU, e com o fim do acordo para receber os médicos cubanos em suas comunidades pobres. Apoiam a entrada do Brasil na OTAN e na OCDE em troca do abandono do tratamento especial do Brasil na OMC, da internacionalização da Amazônia e das exigências que o imperialismo estadunidense impuser. Subordinam-se às políticas de Trump formuladas pelos lobbies anti-Cuba e sionista que ecoam no Grupo do Lima para elevar ao máximo a desestabilização do governo Maduro. Pretendem sepultar de vez a UNASUL e redefinir o MERCOSUL, eliminando a união aduaneira e ampliando-o para transformá-lo no PROSUL, baseado no livre-comércio unilateral e no bloqueio das relações comerciais e financeiras com países designados como ameaça ideológica. Em especial, a “Troika da Tirania”, epíteto formulado pelo governo Trump para nomear a Cuba, Nicarágua e Venezuela, onde se pretende promover a mudança de regime.

O segundo vetor é dirigido por Paulo Guedes, o poderoso ministro da Economia de Bolsonaro. Sua agenda ultraneoliberal busca o desmonte do Mercosul e da UNASUL, a desindustrialização e a transformação do Brasil no paraíso de uma burguesia rentista, compradora e primário-exportadora, que aufere recursos na dívida pública, na especulação cambial, na transferência de terra, biodiversidade e riqueza mineral, e na superexploração do trabalho. Guedes afirmou que o Mercosul, cuja pauta exportadora do Brasil é formada em 89% por manufaturados, é restritivo e tem inclinações bolivarianas. Sua meta é a liquidação das empresas estatais, a destruição do BNDES e das políticas industriais, a entrega das reservas indígenas para exploração transnacional de minérios e urânio, o congelamento de gastos públicos primários, e a reforma da previdência, onde busca impor a regressão de direitos sociais e abrir espaços para a geração de capital fictício.

Essa agenda encontra certo grau de consenso nas classes dominantes brasileiras. As frações industriais do grande capital apoiaram a imposição de um programa recessivo de longa duração que congelou gastos públicos primários reais por 20 anos. A principal explicação para isso está na necessidade de impor-se altas taxas de desemprego para desarticular as pressões sociais contra a superexploração de uma classe trabalhadora que quase duplicou seu nível de escolaridade entre 1992-2015. Os anos de restabelecimento do crescimento econômico e do emprego formal, entre 2004-2013, elevaram o nível de ativismo sindical e culminaram em grandes explosões sociais. A compensação para o capital industrial de seu apoio à desindustrialização é a na conversão crescente de seus investimentos na geração de capital fictício por meio da dívida pública, o que permite colocar os seus interesses estratégicos acima dos setoriais.

Tal diretriz orienta o Brasil para um padrão de acumulação baseado no crescimento medíocre, no dinamismo das exportações de baixo conteúdo tecnológico e na crescente expansão da dívida pública, cujas taxas de juros reais são superiores às de expansão do PIB. Enquanto as exportações brasileiras, após o golpe de 2016, apresentaram forte dinamismo, contrastando com a retração do PIB per capita, sua vinculação com o setor industrial e a alta tecnologia foi baixa. As exportações cresceram 17,5% em 2017 e 9,6% em 2018, e sua rentabilidade alcançou neste ano o seu nível mais alto desde 2009. Já os produtos manufaturados representaram apenas 48,8% da pauta exportadora em 2018, muito abaixo dos 65% de 2007. O déficit comercial da indústria entre 2017-18 se elevou de US$ 3,2 bilhões para US$ 25,2 bilhões, principalmente nos segmentos de alta e média/alta tecnologias, que juntos responderam pelo saldo negativo de US$ 57,6 bilhões. Tais tendências sinalizam para a aceleração da retração da indústria no PIB, em curso desde os anos 1990, excetuado o período de 2004-2013. Esta, em 1980, representava 21,3% do PIB e, em 2016, apenas 12,5%.

A agenda trumpista de política externa, por sua vez, apresenta consenso muito mais baixo, o que neutraliza em parte os seus aspectos mais radicais, embora se reforce com a visita de Jair Bolsonaro aos Estados Unidos e as articulações que estabelece com seu aparelho de Estado. As declarações de Ernesto Fraga desincentivando o comércio com a China ao afirmar que o Brasil não venderia sua alma para exportar minério de ferro e soja repercutiu mal no agronegócio. Os militares brasileiros desaprovam o envolvimento brasileiro num conflito militar com a Venezuela, a transferência de nossa embaixada para Jerusalém e a instalação de uma base militar estadunidense em solo brasileiro, ainda que as negociações envolvendo a cessão de Alcântara estejam em curso. A ala militar, entretanto, não oferece oposição à agenda utraneoliberal. O establishment liberal que articulou o golpe de 2016, não respalda a ideologização do comércio exterior e seus conflitos potenciais com o mundo árabe, a China e a Rússia. Tampouco respalda a escalada de confrontos externos, ou internos, que propicie o avanço para formas de governo totalitárias e de exceção, capazes de rivalizar com o monopólio do grande capital sobre o Estado. Não apoia a destruição das esquerdas na sociedade civil, porque desmoralizado eleitoralmente, sabe que estas podem lhe oferecem a única fonte de resistência social à ofensiva do Governo Bolsonaro para a troca de comando da elite dirigente do Estado brasileiro, em favor de frações da pequena e média burguesia parasitária que atuem como puro apêndice do imperialismo unilateral estadunidense e sionista.

As esquerdas estão em posição minoritária no Parlamento e ainda não conseguiram mobilizar uma grande base de massas de oposição ao golpe de 2016 e ao governo Bolsonaro. Mas a popularidade do governo Bolsonaro mostra-se baixa para início de mandato, alcançando apenas 38% de avaliação ótima ou boa. Três fatores podem contribuir para deteriorá-la: as formas grotescas de expressão do Presidente e de seu núcleo ideológico, típicas do neofascismo; a proximidade do Presidente com as milícias, a lavagem de dinheiro e os assassinos de Marielle; e a imposição de uma agenda de destruição do Estado brasileiro e de direitos sociais que não oferece nenhuma perspectiva de emprego e redução da pobreza. A aceleração desses conflitos entre o governo, o establishment liberal e as esquerdas pode repercutir sobre a aprovação de Jair Bolsonaro, paralisar as reformas ultraneoliberais e as iniciativas mais agressivas no campo da política externa.

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Carlos Eduardo Martins é Professor Associado do Instituto de Relações Internacionais e Defesa da UFRJ e Coordenador do Laboratório de Estudos sobre Hegemonia e Contra-Hegemonia (LEHC/UFRJ). Membro do conselho editorial da revista semestral da Boitempo, a Margem Esquerda, é autor, entre outros, de Globalização, dependência e neoliberalismo na América Latina (2011) e um dos coordenadores da Latinoamericana: Enciclopédia contemporânea da América Latina e do Caribe (Prêmio Jabuti de Livro do Ano de Não Ficção em 2007) e co-organizador de A América Latina e os desafios da globalização (2009), ambos publicados pela Boitempo. É colaborador do Blog da Boitempo quinzenalmente, às segundas.

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