Malthusianismo e Reforma da Previdência

imagempor G. Lessa

Os argumentos demográficos da direita em defesa da Reforma da Previdência se baseiam em um malthusianismo que esquece os contínuos aumentos de produtividade do trabalho. Essa corrente ideológica e política abstrai os avanços da capacidade produtiva e deduz triunfante que o número de aposentados não pode ser muito alto em relação ao de adultos economicamente ativos sem que as contas públicas sejam destruídas.

Por essa lógica malthusiana aparentemente irretocável, mas fundada apenas no sofisma de não se considerar o peso específico de cada fator de produção, seria impossível explicar, por exemplo, como os trabalhadores dos EUA alocados na agropecuária (divididos entre mão de obra familiar e assalariada), correspondentes a apenas 1,5% da força laboral, conseguem alimentar os 98,50% dos trabalhadores inseridos nos outros segmentos, a população em idade ativa fora do mercado, as crianças e os aposentados e, além disso, garantir a liderança norte-americana nas exportações agrícolas mundiais. Essa situação se repete na indústria, na qual apenas 18% da força de trabalho total são capazes de produzir para todo o restante da população e ainda garantir consideráveis exportações. No que se refere à “taxa de participação na força de trabalho”, apenas 63% das pessoas em idade de trabalhar nos EUA estão efetivamente empregadas ou trabalhando por conta própria (fonte: https://pt.tradingeconomics.com).

Em março de 2019, a “taxa de participação na força de trabalho” brasileira é de 61,6%. Número muito próximo aos das taxas dos Estados Unidos e da maioria dos outros países. No Brasil, a “razão de dependência”, a relação entre o número de habitantes em idade inativa (0 a 14 anos e de 60 e mais anos) e o número de habitantes em idade ativa (de 15 a 59 anos), também é próxima ao caso norte-americano.

O gráfico abaixo torna possível termos uma perspectiva de longa duração desse fenômeno. A “razão de dependência total” já foi muito maior no passado devido à grande porcentagem de crianças, caiu porque houve a diminuição dessa porcentagem e se ampliará novamente por causa do aumento da expectativa de vida e, portanto, do número de idosos. A queda vertiginosa na taxa de natalidade no Brasil e nos outros países industrializados foi determinada pelo fato de que os salários reais cresceram muito menos do que os custos dos cuidados com as crianças.

Ao contrário do afirmado pelos defensores da Reforma da Previdência, é possível garantir os direitos da crescente porcentagem de idosos porque, ao contrário do previsto por Malthus, desde a Revolução Industrial a população do planeta tem crescido em um ritmo muito inferior em relação ao ritmo de crescimento dos meios de satisfação das necessidades humanas. Tendência determinada por peculiaridades econômicas e tecnológicas do capitalismo. Segundo a Divisão de Estatística da ONU, entre 1970 e 2014, a população do planeta aumentou 93% e o PIB mundial cresceu 2.184% (22,5 vezes mais).

Devido aos contínuos avanços da capacidade produtiva, é economicamente viável, mesmo em uma sociedade de mercado, na qual a alocação da renda é necessariamente assimétrica, que uma parte pequena e decrescente da população trabalhe com alta produtividade para manter inativa e socialmente amparada uma população muito maior e crescente de crianças e idosos. Essa relação entre ativos e inativos, que já ocorre há muito tempo na maioria das nações, só se tornaria impossível se as grandes empresas conseguissem absorver todos os resultados dos avanços de produtividade em detrimento da renda dos trabalhadores e dos cofres públicos.

Na história mais recente, a captura total dos ganhos de produtividade vem sendo tentada pelas grandes empresas desde os anos 1970. Essa atitude está relacionada à instabilidade das taxas de lucro, suscitada pelas contradições estruturais do capitalismo, e à fragilização conjuntural dos sindicatos. Aproveitando as crises organizacionais dos assalariados, as grandes corporações procuram avançar sobre a renda desses trabalhadores para adquirem mais capital, segurança financeira e estabilidade.

Os gráficos abaixo, preparados pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), apresentam a relação entre os índices de salário real e os índices de produtividade nos países centrais. O crescimento do salário foi bem menor do que o crescimento da produtividade (Gráfico 02) e a porcentagem da renda nacional apropriada pelos trabalhadores diminuiu (Gráfico 03). Mantendo-se essa tendência perversa, se não houver um aumento significativo da contribuição das grandes firmas à Previdência Social, não será possível no futuro próximo a transferência da renda suficiente para o sustento digno de milhões de crianças e idosos.

Mesmo se houvesse um déficit no sistema previdenciário brasileiro, e já foi sobejamente provado que não há, as causas deste fenômeno não poderiam ser os alegados privilégios de setores minoritários entre os aposentados ou o envelhecimento da população. As únicas causas determinantes de um futuro déficit na Previdência Social seriam: 1) uma prolongada estagnação da produtividade, fenômeno impossível no médio e longo prazos em uma sociedade capitalista; e 2) a total apropriação pelas empresas dos resultados dos aumentos de produtividade e, portanto, o não recolhimento de parte significativa desses resultados ao sistema previdenciário.

A reforma proposta pela direita vai no sentido contrário ao da sustentabilidade econômica e social da Previdência, pois busca criar artificialmente um déficit estrutural ao diminuir ou mesmo zerar a contribuição das empresas ao mesmo tempo em que procura impor mais tempo de labor aos trabalhadores e uma renda declinante aos aposentados.