A História dos vencedores e o apagamento da resistência negra

imagemCoordenação Nacional do Coletivo Negro Minervino de Oliveira

A história das transformações sociais no Brasil tem sido a história dos “acordões” por cima, isto é, por setores das classes dominantes excluindo as classes populares e subordinadas das decisões políticas. Isso ocorre diferentemente do que sugere a historiografia hegemônica (de cunho eurocêntrico e burguês), que atribui à sua narrativa constante apassivamento, desinteresse e imobilidade das classes populares. A prática regular é e sempre foi a criação de medidas planejadas com o intuito de minar os conflitos sociais de fundo e buscar construir uma concepção de que tais mudanças ocorreram por ações deliberadas apenas por essa classe dominante.

A problemática deste tipo de formulação está no apagamento de diversos fatos históricos que registram forte engajamento e organização popular. Apesar de todos os obstáculos postos em cada período histórico, nós estivemos lá, resistindo por meio de revoltas, insurreições, boicotes, motins, quilombos, fugas, levantes e greves. Gerimos em nosso meio lideranças, cantos, contos e memórias, de cunho radical e subversivo. O Quilombo dos Palmares, que alcançou seu auge na metade do século XVII, é sem dúvidas, a maior expressão da resistência, assim como as revoltas na Bahia, dentre as quais a Revolta dos Malês em 1835 é a mais famosa. Um passado tão rico não pode ser simplesmente soterrado com o objetivo de nos apassivar, de diluir elementos essenciais para a construção de nossa identidade como protagonistas das mudanças que queremos, como trabalhadores combatentes.

No dia 13 de Maio de 1888, temos um fato histórico de característica similar aos citados anteriormente, data em que houve a assinatura da Lei Áurea, pela Princesa Isabel, que por conta deste ato ficou também conhecida como “A Redentora”. A lei institucionalizava o fim da escravidão e a proibição total de qualquer atividade que envolvesse a compra e a vendas de escravizados, assim como a libertação de todo e qualquer sujeito que se encontrava na condição de escravizado. A historiografia burguesa enfatiza a data como o marco do abolicionismo, constrói uma narrativa que se engendra em dois eixos: o primeiro como um gesto de bondade e lucidez da Princesa Isabel e de setores progressistas das classes dominantes; o segundo como resultado de uma grande pressão externa vinda da Inglaterra, principal potência econômica e política do século XIX, a qual necessitava vender seus produtos que se acumulavam nos estoques, dinamizando mercados pelo mundo e para isso era crucial garantir o trabalho livre a todo e qualquer custo, ainda que essa medida trouxesse rupturas brutais no modo de produção vigente e prejuízos pela perda de propriedade dos latifundiários, que passaram a reivindicar indenização ao Estado pela subtração dos escravizados que antes trabalhavam em suas terras.

A afirmação de Fernando Henrique Cardoso parece sintetizar esse ideal burguês ao dizer que os escravizados foram “testemunhos mudos de uma história para a qual não existem senão como uma espécie de instrumento passivo”. A tentativa de nos colocar como meras coisas, desprovidos de qualquer objeção ao regime, acomodados, persiste com a mesma função ideológica: a de retirar de nós toda a luta que travamos ao longo da história.

Os motivos cruciais para o fim da escravidão contam com instabilidade interna e externamente, nas esferas econômica e política, englobando o crescimento das revoltas dos escravizados e um modelo econômico insustentável pelo encarecimento dos produtos, obrigando o Império do Brasil a abolir a escravatura antes de um colapso total. A medida provocou resistência dos setores mais atrasados da classe dominante, mas foi uma medida urgente para suprimir os motins: ao invés de ter um regime derrubado pelas mãos dos oprimidos, realizou-se a reforma por cima, pelo Estado, buscando ofuscar a luta negra e popular pela sua libertação.

A partir da vigência da lei, um novo momento surge para a população negra, já que, diante de motivações econômicas e ideológicas, o projeto de transição para o trabalho livre não a inclui, ao invés disso há uma grande mobilização para trazer força de trabalho europeia, principalmente italiana. A importação de europeus para assumirem o posto de trabalhador livre rendeu altas taxas de lucro para os setores da navegação e agências que propagandeavam uma nova vida de sucesso para os imigrantes. A forte ideologia de branqueamento da sociedade brasileira se dava pela concepção do negro como elemento perigoso, indesejado, preguiçoso, entre outras características atribuídas, com o intuito de marginalizá-lo e demonizá-lo.

Desprovidos de terras ou empregos nas fazendas, onde habitaram por gerações de maneira forçada, foram obrigados a buscar nas cidades alguma possibilidade de trabalho e modos de suprir suas necessidades básicas garantindo sua subsistência. O Estado brasileiro não se mobilizou para garantir qualquer direito a indenização, trabalho, estudo ou moradia.

Esse processo criou feridas que ainda estão longe de cicatrizar, com nossa população amargando até os dias de hoje as piores estatísticas, como criminalidade, homicídios, residindo nos bairros mais precários, possuindo os piores salários. O capitalismo brasileiro tem intrínseco a sua estrutura o racismo, não só pela sua acumulação primitiva de capital, como também na função de nosso povo na dinâmica do capitalismo contemporâneo, com os menores salários (ampliação da mais valia absoluta), na regulação e contenção do aumento do salário médio (a população negra engrossando o exército de reserva, ou seja, os desempregados, causando uma contenção no aumento do salário), nosso ingresso em empregos precários e de alta insalubridade, entre outras formas.

Em síntese, embora o 13 de Maio seja a data oficialmente reconhecida como marco do fim da escravidão, tendo seu discurso ideológico replicado nos mais variados meios (materiais didáticos que educam a nossa classe, na televisão, nos jornais, nas produções ficcionais, etc), nós do Coletivo Negro Minervino de Oliveira​, assim como grande parte do Movimento Negro, fazemos uma leitura crítica sobre tal narrativa, indicando sua contradição, enfatizando a importância de conhecermos os processos de resistência dos nossos antepassados, na luta por melhores condições para a população negra. Sendo a história da humanidade a história da luta de classes, nosso povo tem em sua essência a potencialidade para subverter a ordem estabelecida e enfim alcançar a plena emancipação humana.

Lutar! Criar! Poder Popular!