Um herói sem nenhum caráter

imagemPor Mauro Luis Iasi.

“Triste a nação que precisa de heróis”
BERTOLT BRECHT

BLOG DA BOITEMPO

O herói é um arquétipo interessante, desde os primórdios desta aventura de representar a vida em formas ideais, como o Odisseu na velha Grécia ou o herói romântico do drama burguês. Este último, conforme a análise de István Mészáros seguindo as pistas de seu mestre György Lukács, seria um personagem que busca realizar em si mesmo o destino de uma época que se apresenta como impossibilidade de realizar esse destino: apresentar-se humano em um mundo desumano, digno em meio à indignidade, justo em uma época em que predomina a injustiça.

No Brasil as coisas não são bem assim. Por estas terras as versões deformam e recriam, engolem e regurgitam outras palavras e representações… “versão brasileira Herbert Richers”. Como analisou em sua obra O espetáculo das raças, a antropóloga Lilia Schwarcz nos lembra que não se trata de mera imitação, mas de um ato de antropofagia no qual se devora o original e o recria com temperos autoctones. Desta maneira, o fascismo à brasileira assume a forma de um simpático gordinho, Getúlio Vargas, que se aliou aos EUA para lutar contra o nazifascismo, ou ainda, o Estado de bem-estar social da socialdemocracia assume aqui a forma de uma democracia de cooptação.

Oswald e Mário de Andrade sabiam muito bem isso tudo e formalizaram essas questões, respectivamente, no manifesto antropofágico e na figura do clássico anti-herói Macunaíma. Um herói de nossa gente, negro como o povo da noite, filho de índia, malandro e preguiçoso. Um sujeito que vive criando confusão e trai descaradamente quem nele confia. No célebre romance modernista há um momento em que um estudante fala às massas sobre nossas mazelas, afirmando o seguinte:

“– Meus senhores, a vida dum grande centro urbano como São Paulo já obriga a uma intensidade tal de trabalho que não permite-se mais dentro da magnifica entrosagem do seu progresso sequer a passagem momentânea de seres inócuos. Ergamo-nos todos contra os miasmas deletérios que conspurcam o nosso organismo social e já́ que o Governo cerra os olhos e delapida os cofres da Nação, sejamos nós mesmos os justiçadores…”

Que faz Macunaíma (que aliás havia criado a própria confusão)? Começa a bater boca com o estudante, defendendo seus “manos”, e acaba agredindo um “Grilo” loiro que só falava em língua estrangeira, quase indo preso. A massa, que há pouco estava disposta a linchar alguém (Macunaíma ou seus irmãos), agora defende o herói contra o “Grilo”, e seu delegado que quer levá-lo para a cadeia.

Algumas pessoas, compreensivelmente, se mostram confusas. Afinal, para elas os heróis seriam representações de um sentimento de justiça tolhido por poderosos interesses, deviam ser amados, não destratados e presos. No entanto, as massas ora os aclamam ora os abandonam, ora os abraçam com seus infinitos braços ora os lincham. Pois massas são assim mesmo. Pedem para soltar Barrabás e depois vão chorar aos pés da santa cruz. De certa forma, não é o herói que não tem caráter, é a nação que nele se representa que se apresenta como um caldeirão de sentimentos contraditórios, cindidos e antagônicos.

Lula precisa ir para a cadeia: a raiva dessa injunção é purgada em atos amarelos insanos, adornados com pixulecos inflados, exortações à violência e à ignorância, com danças pagãs convocando a volta de velhos fantasmas militares e seus métodos medievais, aos gritos que fazem veias saltar dos pescoços tensos, bonecos enforcados nos viadutos, ódio contra meninos alegres que passeiam de mãos dadas e pedagogos com barbas longas, ódio contra a cor vermelha e todas as cores do arco íris que não seja o verde e o amarelo…

Toda essa energia se consubstancia num homem que veste preto e julga. Mas lembrem-se: estamos no Brasil. O juiz projeta uma imagem imponente: seu punho firme, seu queixo quadrado e seu cenho sério. Mas quando abre a boca… vem a voz do Pato Donald. A mais clara expressão de uma elite culta e sofisticada, o crème de la crème, mas que tem dificuldade em terminar um TCC ou escrever uma dissertação de mestrado, até mesmo de utilizar corretamente o idioma pátrio. É a nata da sociedade, mas talvez seja o leite que coalhou azedo. Ele vai julgar, não teme os poderosos, combaterá a corrupção, doa a quem doer, a lei é para todos. Nas revistas de fofoca (chamadas de “noticias”), sua figura aparecerá de baixo para cima contra a luz, um gigante, ou com camisa dobrada nos antebraços, um esforçado trabalhador incansável, ao lado da bela esposa com vestido chique e muita maquiagem, abraçado com artistas e celebridades, rindo com a escória da política nacional, um combatente sério… cenho, queixo, punho… orgasmos múltiplos na classe média reunida na frente do prédio da FIESP em torno de um enorme pato de plástico roubado de um artista holandês.

Todo Quixote precisa de um Sancho Pança para montar o jumento enquanto o herói cavalga o Rocinante. Eis que surge Deltan Dallagnol, com seus óculos e semblante de garoto virgem em meio às quengas do cabaré. Nosso escudeiro brasilis, contudo, ao contrário da versão original de Cervantes, contudo, não é aquele que enxerga o real para apontar as alucinações do cavaleiro, mas quem agrega seus próprios delírios evangélicos à cruzada purificadora. Faz jejum e ora quando outros incautos causídicos fazem petições e embargos infringentes.

A triste nação precisava de heróis, mas infelizmente era isso que tínhamos pra hoje: passamos por um vampiro de linguagem rebuscada e conjugações manoelinas, um ex-capitão com sérios problemas intelectivos, um torturador psicopata falecido, um pretenso filósofo com síndrome de Tourrete e… um juiz e seu procurador.

Bom, eis que entra em cena um jornalista lá do primeiro mundo – justamente da terra do Tio Sam e do Superman –, casado, pai de dois filhos, e joga merda no ventilador. A síntese do que saiu até agora (ao que se sabe, há mais por vir): o juiz combinou com o promotor os procedimentos e condições para condenar o cara que segundo todas as pesquisas ganharia as eleições – e isso independente de terem provas e evidências consistentes –, garantindo assim a vitória do capitão caverna que por sua vez lhe concedeu um superministério… o da justiça. Estava no esquema a rede Globo, que literalmente “cobriu” a trama toda. O ministro, com aquela voz que lhe confere credibilidade, jurou para a loira do banheiro que não fez nada de errado e ela, lógico, acreditou.

O interessante, além de ver a rede Globo tentando fazer de conta que o míssil abaixo de sua linha d’água não é tão sério assim, é que as massas (lembram delas?) não entendem o porquê de tanto alarido. Afinal, o herói pegou o bandido, fez o que tinha que fazer, acelerou os trâmites, burlou processos legais de defesa, botou escuta nos escritórios dos advogados de defesa – há inclusive a possibilidade de pessoas terem sido mortas (o delegado que apurava a morte de Teori Zavaski foi assassinado etc.) –, vazou áudios que não podia, livrou a mulher do Cunha (que sempre esteve de olhos bem abertos durante toda a crise), tirou foto junto com o Fágner. Qual o problema? Qual é a desse “Grilo”?

O cara tem nome de trama internacional: Glenn Greenwald. É jornalista reconhecido e corajoso, premiado com o Pulitzer e outras honrarias da profissão, enfrentou o maior império do mundo hoje. Mas os “jornalistas” brasileiros – mais conhecidos como leitores de teleprompter, ou aqueles “especialistas” em cobertura política que acreditam que isso significa ir tomar café no Congresso com suas fontes para saber das últimas fofocas dos bastidores e que “olhar para o outro lado” não quer dizer buscar o contraditório, mas fazer vista grossa – tentam desqualificar o jornalista do Intercept para tentar salvar seus próprios rabos.

O ministro neste momento deve estar na casa do Queiroz tentando, sem sucesso, lavar sua cueca de uma marca indelével de batom com Vanish Oxi Action. O que dirão as massas, pelo menos por um tempo? Que ele está sendo perseguido, que as forças internacionais do bolivarianismo e da ditadura gaysista estão sabotando a Lava Jato, que Paulo Freire hackeou os telefones do Dallagnol? A Damares há de achar uma passagem em algum livro didático que ensina as crianças a ser jornalistas investigativos…

Enquanto isso, tem um estudante em cima de um carro, denunciando o corte de verbas nas universidades, o ataque aos povos indígenas e aos negros e a destruição da previdência como direito. Conclui então que uma vez que o governo fecha os olhos e delapida os cofres da nação, está na hora de sermos nós os justiçadores.

Macunaíma, no entanto, responde: ai que preguiça.


Mauro Iasi é professor adjunto da Escola de Serviço Social da UFRJ, pesquisador do NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas), do NEP 13 de Maio e membro do Comitê Central do PCB. É autor do livro O dilema de Hamlet: o ser e o não ser da consciência (Boitempo, 2002) e colabora com os livros Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil e György Lukács e a emancipação humana (Boitempo, 2013), organizado por Marcos Del Roio. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas. Na TV Boitempo, apresenta o Café Bolchevique, um encontro mensal para discutir conceitos-chave da tradição marxista a partir de reflexões sobre a conjuntura.

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