Venezuela: os fatos, nada mais do que os fatos

imagemJean Ortiz

A Venezuela acaba de revelar mais uma conspiração terrorista de grande escala, mas não é esse o tema principal deste artigo. O imperialismo conduz uma guerra em diferentes frentes, e todas elas têm caráter criminoso. Este artigo faz uma resenha da ofensiva no campo econômico: bloqueio, sabotagem, roubo de ativos do Estado (em que o Novo Banco português também participa), sanções sobre entidades e países terceiros fazendo tábula rasa do direito internacional. O governo português, reconhecendo o fantoche Guaidó, não só se torna seu cúmplice como fica na companhia da mais criminosa escumalha internacional.

Em 5 de outubro de 1971, o presidente Richard Nixon dirige-se seu secretário de Estado, Henry Kissinger: “Decidi derrubar Allende, esse filho da puta”. Admirem a elegância da linguagem. Nixon continua: “Não devemos deixar a América Latina pensar que pode tomar outro caminho sem sofrer as consequências”. E acrescenta: “faça-me uivar a economia” (chilena). A guerra econômica contra o regime da Unidade Popular foi implacável. Estas frases fizeram mil vezes a volta ao mundo, mas o “esquecimento” dos crimes e das patifarias do imperialismo permanece uma doença generalizada.

Hoje, os Estados Unidos queriam que Cuba, a fonte, a inspiradora, e aqueles que seguem o seu exemplo, como a Venezuela bolivariana, sofressem o mesmo destino do Chile de Salvador Allende. Trata-se de contextualizar, situar, estudar, o confronto de classe e os seus atores. Os meios de comunicação dominantes gostariam de nos impedir de desmascarar a mentira e a manipulação.

Permaneço solidário com o chavismo, porque desde a “Baía dos Porcos” (1961), a derrubada de Jacobo Arbenz (1954), o Setembro chileno (1973), aqueles que estão instalados do outro lado não mudaram; eles martirizaram o Chile, a Nicarágua, El Salvador, Guatemala, Argentina, Uruguai, Paraguai, Honduras.

Chávez parte

Em 5 de março de 2013, depois de lutar uma batalha difícil contra a doença, o presidente Hugo Chávez morre. Essa morte, inconcebível, traumatiza um povo e um continente. “Uh, ah, Chávez no se va! “. Chávez não podia ir-se. Força e fragilidade do processo revolucionário.

As classes dominantes, instrumentalizadas por Washington, decidem impedir a qualquer preço, que o seu sucessor, Nicolas Maduro, governe … Que os pobres permaneçam no seu lugar! Embora democraticamente eleito, portanto legítimo, Nicolas Maduro encarna o continuísmo chavista e “é apenas” proletário, portanto incompetente! Os golpistas desenterram os velhos clichês: “nunca mais uma nova Cuba”, a “ditadura” instala-se. A história gagueja.

Como o demonstra o investigador Romain Migus, nas suas recentes produções, “a guerra começou já”. Donald Trump deve gritar diariamente ao seu Pompeo de Secretário de Estado: “Faça-me uivar a economia venezuelana!” Donald Trump disse-o e repetiu-o: “Todas as opções estão sobre a mesa”, incluindo a opção militar.

D.Trump conduz uma guerra multiforme com várias frentes simultâneas: medidas coercitivas unilaterais (sanções, embargo comercial), ilegais segundo a lei internacional, ameaças, sabotagens industriais, atentados, penúrias organizadas, os ataques contra a moeda (o “bolívar”), estrangulamento da economia, comandos terroristas, provocações nas fronteiras.

VENEZUELA: a realidade do terreno

Conjugam-se todas as formas de agressão, destinada a sufocar de dentro a Venezuela chavista, provocando-se tentativas de golpe de Estado militar.

Chávez, 4 de fevereiro de 1992, erigia-se, quando do seu “golpe” bolivariano fracassado, em “voz do povo”. Todos temos ainda em mente o “caracazo”; o presidente social-democrata Carlos Andrés Pérez, confrontado com tumultos populares contra a política do FMI, chamada de “ajustamento estrutural”, mandou disparar sobre a multidão. Resultado: centenas, para alguns analistas milhares de mortes entre os mais pobres, o povo dos “ranchitos” (zonas desfavorecidas), no final de fevereiro de 1989. “A oposição” (da ex. Social-democracia à ultradireita), desde 2014 e continuamente depois hegemonizada pela extrema direita, conduz uma estratégia sediciosa.

Por que questionar hoje a incontestável eleição do presidente Maduro, quando de uma campanha presidencial boicotada por uma parte de uma oposição muito dividida? O próprio Chávez governou reclamando-se primeiro da “terceira via” blairista, mas as condições e formas de luta de classes e a ingerência imperialista (hoje frontal), a influência de Cuba levaram o líder, nascido entre os pobres, a politizar-se rapidamente no sentido da emancipação social e nacional: o “socialismo do século 21″, “a revolução”, uma semântica particularmente relegada no “ocidente”. Em Paris chama-se “populismo” a qualquer movimento que escape dos moldes europeus. Chávez torna-se uma espécie de batedor, um líder múltiplo, um formidável fermento. Um Chávez-povo, quase crístico. Lembro-me daquele dia 4 de outubro, quando sob uma chuva intensa prenunciou o que foi seu último discurso público, cantando, dançando com o “seu” povo.

Esta mesma oposição “democrática” tentou vários golpes de Estado, entre os quais o de 11 de abril de 2002. Chávez foi sequestrado por facciosos que elegeram de imediato como presidente o líder do MEDEF local: Fedecâmaras.

Uma guerra não declarada que quer fazer o povo sofrer para derrubar o regime

Libertado pelo povo quando do golpe de Estado, Chávez acelera … a revolução chavista radicaliza-se. Milhões de excluídos tornam-se finalmente “visíveis”, a saúde e a educação, agora gratuitas, progridem como nunca antes, a reforma agrária avança, os trabalhadores, camponeses, o povo dos “ranchitos” auto-organiza-se. Eis o que Washington não suporta, que Chávez não hesite em mandá-lo passear. A sua última aparição pública na televisão foi um último apelo a criar “comunas socialistas” em todo o lado. Como negar então o papel histórico de Chávez, de Castro, nas revoluções cubana e venezuelana? “Populistas,” rosnam os bem pensantes. Os populistas são aqueles que renegam as suas promessas, que se erigem como monarcas jupiterianos todo-poderosos, relegando o povo. Raramente um político foi assim atacado, insultado, opina Ignacio Ramonet.

Os fatos, os obstinados fatos

Às opiniões, politiqueiras e preconceituosas, é necessário se opor sistematicamente os fatos. Quaisquer discussões ou debates sobre o país caribenho devem necessariamente passar por uma análise das medidas de retaliação contra a economia da Venezuela. Depois, só depois, podemos falar da eficácia ou não das políticas do governo de Nicolas Maduro, das opções econômicas, ou das consequências sociais da situação atual. Esta opinião, compartilhada por R. Migus e M. Lemoine, traz consigo a única abordagem honesta.

Retomo a cronologia das sanções econômicas contra a Venezuela estabelecida desde 2014 por Romain Migus, especialista na Venezuela, e amplamente enriquecida depois. 22 de janeiro de 2010: o Instituto de Estudos Geológicos dos Estados Unidos anuncia que a faixa petrolífera do Orinoco pode contar com 513 bilhões de barris de petróleo, ou seja o dobro das estimativas mais sérias. A Venezuela é o país com mais reservas de petróleo do mundo. Olha, olha …

Então, partamos de algumas ideias muito simples:

Quem impõe o bloqueio? A quem? Por quê? Os Estados Unidos e os seus clubes de fãs tentam fazer parecer que se trata apenas de sanções “direcionadas”. Mas é todo o povo que é atingido. Por que esfomear um povo inteiro? Desde 1998, a Venezuela afastou-se do caminho liberal. Deve ser punida.

14 de abril de 2013: Maduro é reeleito Presidente da República. A oposição “vem para a rua”. Resultado: 42 mortos. A tentativa putschista falha e uma nova estratégia é instalada. Em dezembro de 2014, o Congresso dos EUA aprova a Lei 113-278, “lei pública de defesa dos Direitos Humanos e da Sociedade Civil na Venezuela”. A lei permite a tomada de medidas unilaterais coercivas contra a Venezuela. Washington aconselha trabalhar nessa direção com a OEA e a União Europeia.

Janeiro de 2015: a agência estadunidense de avaliação dos “riscos/país” baixa a nota da Venezuela, a fim de comprometer a reputação financeira deste país … Tudo isso restringe o acesso aos financiamentos internacionais.
Março de 2015: alerta! 3 agências de notação emitem alertas sobre suposto “calote” da Venezuela. Em 8 de março de 2015, Barack Obama assina a Ordem Executiva 13692. Declara: a Venezuela é “ameaça incomum e extraordinária à segurança nacional e à política externa dos Estados Unidos”.

Em junho de 2015, a entidade financeira francesa Coface qualifica o “risco/país” da Venezuela como o mais alto da América Latina. O objetivo: secar as fontes de investimentos. 28 de outubro de 2015, o general John Kelly, comandante do United States Southern Command declara que os Estados Unidos intervirão na Venezuela em caso de crise humanitária. Abril de 2016: o bloqueio financeiro, o estrangulamento, começa. Relatório do FMI sobre a “catástrofe econômica” da Venezuela legitima as ações de guerra econômica conduzidas por FEDECAMARAS, o patronato venezuelano.

Maio de 2016: a Assembleia Nacional (a oposição é aí majoritária) vota uma lei que anula todos os contratos petroleiros, os investimentos internacionais e a emissão de dívida. Pretende secar qualquer injeção de dinheiro novo na economia do país. Em julho de 2016, o banco norte-americano Citibank proíbe a sua rede de intermediários bancários do Wolsberg Group (que agrupa o Banco Santander, Credit Suisse, etc.) de tratar com o regime.
Em agosto de 2016: o encerramento unilateral das contas de administração obriga a Venezuela a operar a partir de outras moedas, quando a maioria das divisas que resultam da venda de petróleo são em dólares. As perdas devidas aos novos custos de transação, câmbio, etc., são muito pesadas. Deutsche Bank, Goldman Sachs e JP Morgan Chase deixam de poder negociar com instituições venezuelanas, incluindo o Banco Central da Venezuela.

Em maio de 2017, Julio Borges, presidente da Assembleia Nacional, reúne-se com o Conselheiro de Segurança Nacional da Casa Branca, general H.R. Mac Master, para coordenar as sanções financeiras e econômicas.
24 de agosto de 2017: o Presidente Trump assina a Ordem Executiva 13808 intitulada “Imposição de sanções adicionais a respeito da situação na Venezuela”. Este decreto proíbe toda uma série de transações com o Estado venezuelano e nomeadamente com a PDVSA e todas as entidades de propriedade do Estado venezuelano. Uma lista de restrições sobre operações financeiras é estabelecida. O Decreto 13808 visa sistematizar os ataques contra empresas públicas venezuelanas e as operações comerciais e financeiras do Estado venezuelano, a fim de desestruturar o país e precipitar o colapso.

O antigo embaixador dos EUA na Venezuela e na Colômbia, William Bownfield, declara: “A melhor solução é precipitar o colapso do governo venezuelano, mesmo que isso envolva meses e anos de sofrimento para os venezuelanos”. 13 de novembro de 2017: a União Europeia proíbe a venda de material de defesa ou de segurança interna na Venezuela.15 de novembro de 2017: o Deutsche Bank, principal intermediário do Banco Central da Venezuela, fecha definitivamente as suas contas, colocando em risco todas as operações bancárias. Dezembro de 2017: o Ministério dos Transportes constatou que 471.000 pneus, comprados no exterior, não puderam ser expedidos devido ao bloqueio financeiro.

29 de janeiro de 2018: o Departamento do Tesouro dos EUA afirma: “a campanha de pressões contra a Venezuela dá resultado (…) podemos assistir (…) a um colapso econômico total.” “A nossa estratégia funciona e vamos mantê-la”. 2 de março de 2018: os Estados Unidos renovam por um ano os decretos 13692 (Obama) e 13808 (Trump). Implementam medidas coercitivas para atacar a estabilidade financeira da Venezuela. 19 de março de 2018: o presidente Trump assina a Ordem Executiva 13827, que proíbe qualquer cidadão ou instituição de efetuar transações financeiras com a nova moeda, o “petro”. O decreto executivo de 25 de agosto de 2017 promove a asfixia financeira de Caracas.

Maio de 2018: 9 milhões de dólares do Estado venezuelano são “congelados”; eram destinados a pacientes em diálise (20.000 afetados). 25 de junho de 2018: o Conselho Europeu adota a decisão 2018/901, punindo os membros da administração venezuelana. 1º de novembro de 2018: O presidente Trump assina um novo decreto autorizando o Departamento do Tesouro a confiscar propriedades de operadores no setor aurífero. Trata-se de impedir a recuperação pelo Estado venezuelano da bacia mineira do Orinoco, quarta reserva de ouro do mundo.

28 de janeiro de 2019: os Estados Unidos decidem congelar os ativos da PDVSA num montante de 7 bilhões. O usurpador Guaidó anuncia o congelamento de todos os ativos do seu país no exterior. A companhia aérea espanhola Iberia recusa-se a enviar para a Venezuela 200.000 caixas de medicamentos destinados a tratar doenças crônicas. 23 de março de 2019: Washington propõe novas sanções. O conselheiro trumpista de segurança, John Bolton, declara: o que fazemos, é como Darth Vader em “Star Wars”, que estrangula seja quem for. É exatamente o que estamos a fazer. ”

“Bem real, a corrupção, endêmica, participa da anarquia na distribuição de bens essenciais e da pilhagem do Estado. No entanto, é aconselhável não fazer dela o alfa e o ômega da crise atribuída, por definição, ao falecido Chávez ou ao presidente Maduro” (LEMOINE, Maurice Venezuela. Crônica de uma desestabilização”, ed. Le Temps des cerises, Montreuil, 2019, p. 340). Esta opinião de Maurice Lemoine, durante muito tempo jornalista do “Le Monde Diplomatique”, que trabalha desde 1973 sobre a América Latina, mostra que podemos ser solidários e rigorosos. Maurice Lemoine combina trabalho de campo e análise com toda a lucidez nos seus artigos e reportagens. Estes últimos inscrevem-se muito frequentemente contra as produções dominantes sobre a Venezuela. Está ele melhor informado do que os seus colegas? Não acredito nisso. Ele simplesmente pratica o estudo dos fatos, no local, e confronta os pontos de vista. Com rigor, honestidade.

Trump: a obsessão venezuelana

22 de maio de 2018: Trump assina um novo decreto presidencial que reforça o embargo, desprezando o direito internacional; reconhece Guaidó como o único presidente “legítimo”. Na verdade, um fantoche nomeado por Trump, desafiando o direito internacional (Guaidó “autoproclama-se” “presidente” em 23 de janeiro de 2019). Desde então, numa situação sempre explosiva, o presidente Maduro continua a apelar à negociação. Será ela possível? “O grau de hostilidade atingiu já um nível que parece excluir qualquer verdadeira reconciliação” (Lemoine, Maurice, op. Cit., P. 371).

A batalha principal permanece a construção do “poder popular”, a aceleração do projeto socialista (50.000 conselhos comunais e 3.000 comunas). O objetivo anunciado com a morte de Chávez insiste na Reforma Agrária (distribuir dois milhões de hectares de terra para 500.000 camponeses). Os “cães de guarda” visam ganhar a batalha da opinião, mesmo que à custa da mentira. Os dadores de lições subestimam todo este contexto.

Os fatos, nada mais que os fatos.