E Sócrates foi novamente morto…

imagemLenina Vernucci da Silva[1]

Quando conheci o mito da musa Clio fiquei encantada com a estória. A filha da memória e de Zeus tem o poder de conceder imortalidade aos mortais. Narrar as ações humanas e suas obras, seus feitos e desfeitos. Para o bem e para o mal, a escrita deixa as marcas do tempo, mesmo no não tempo que é o tempo dos mitos. Registrar é conceder o dom dos deuses aos meros mortais. A morte, algo desconhecido pelos mitos e muito conhecido por nós, seres de vida curta, é menos assustadora quando se sabe que há algo além dela. A História é a vida eterna e por isso é a ciência por excelência.

A ciência. Essa criação tão humana e tão fundamental, nem sempre aceita por sua capacidade desmistificadora do real. Aprender é um ato difícil. São as contradições entre nossas crenças e supostas verdades ditas, ouvidas e vivenciadas em anos de vida, mas que não foram sistematizadas por nenhum conhecimento científico. E quando o senso comum e a ciência se encontram, o choque é inevitável. Aprender não é diversão, é suor, é sofrimento, é sair do conforto. É, também, um universo novo de possibilidades, de saberes, sabores e formulações. Um mundo se descobre, se recobre, se encontra e desencontra, assustador e inovador. Diferente da finitude da vida e a certeza da morte, o conhecimento é eterno.

Quem passa por isso? Todos aqueles dispostos a duvidar, perguntar, se aventurar. É para todos, ao mesmo tempo que é para poucos. Oportunidade e vontade são necessários. Conhecer e aprender é exercício de alteridade e empatia. Estranhamento, desnaturalização. Não há aprendizado na certeza. O aprendiz não é livre, não tem escolhas, como poderia? Só se escolhe o que se conhece. Se não há conhecimento, não há liberdade possível, não há como escolher sem saber o que se tem para ser escolhido, sem informações necessárias para entender o que se quer. “Quem não sabe o que procura, não reconhece o que acha”, já dizia alguém…

O papel da escola é esse: a transmissão do saber acumulado ao longo da existência da humanidade. Esse exercício é sofrido. Questionar nossas certezas, nos colocar em uma situação de distanciamento da realidade que se mostra para a gente como algo óbvio, ou ainda, tirar os óculos do dia a dia para, em troca, colocar as lentes do saber, da ciência, é uma tarefa ingrata. A realidade parecia tão simples. Agora é complexa.

“Se a realidade das coisas correspondesse a sua essência qualquer ciência seria supérflua”. Já dizia Marx, cujo conhecimento de uma vida intelectual é jogada ao vento como ideológico – conceito, aliás, estudado pelo filósofo – por pessoas que sequer leram seus textos. É a violência da ignorância posta como redenção.

Marx não foi o único, nem será o último filósofo e pensador crítico a ser perseguido. Muito antes dele, um grande mestre foi morto por suas ideias. Sócrates tinha um único compromisso: dizer a verdade e somente a verdade. Ele não estava preocupado com a beleza das palavras usadas descompromissadamente por sofistas para manipular e usadas para dominar. Essa é sua crítica aos que diziam muito saber. Falar bonito, falar bem não implica em falar a verdade. Como filósofo, atuando em uma das mais antigas e fundamentais áreas de saber, seu compromisso absoluto com seu interlocutor é ser entendido para provocar reflexões e “sair da caverna”. Ora, qual seria a função do professor se não justamente essa? O professor, diferentemente do sofista, não busca manipular o saber falando bonito, mas usa inúmeras didáticas para levar a verdade, ou o mais próximo dela. Ou, no mínimo, provocar por sua busca. A alegoria da caverna nos mostra o sofrimento causado pelo saber. A metáfora da luz é clara. O impacto, o incômodo, a dificuldade em abrir os olhos. Para depois ver um mundo livre, colorido, real.

Os defensores do tragicômico projeto “Escola sem partido” e movimentos conservadores supostamente defensores da “família, moral e bons costumes” alegam que o problema é não “trazer os dois lados” dos problemas apresentados. A verdade é que nem sempre há lados: a terra é redonda. Não há outro lado para mostrar! A teoria da evolução é consenso, e criacionismo não é ciência. Simples assim. A violência contra a mulher, a desigualdade racial, a desigualdade de classe, as injustiças sociais, são fatos. Desigualdade de gênero é fato. Não há ideologia de gênero, há o estudo científico das relações entre homens e mulheres, cujos papeis sociais culminam na dominação do segundo pelo primeiro. Os estudos de gênero são reconhecidos por todo o meio acadêmico e suas pesquisas têm auxiliado em políticas públicas de combate à violência de gênero, visando diminuir ou inibir os abismos sociais impostos pelo sexo. O governador retirar material das escolas alegando que eles estão errados por fazer “apologia à ideologia de gênero” da qual ele diz não concordar. É tão absurdo que fica difícil comentar seriamente!

A ciência trabalha com fatos, com critérios rigorosos de pesquisa, de anos observação, levantamento, fontes, debates. O consenso científico é o que deve ser transmitido. Se ele deve ser questionado? ÓBVIO. Afinal a ciência é a dúvida! Mas uma verdade que possa ser desvendada em outras possibilidades não é menos verdade.

Impedir o pensamento crítico, transformar o contraditório em inimigo e os pensadores contra-hegemônicos em ideólogos é assassinar nossa consciência. Retira-se a autoridade do pensador e do pensamento.

A escola é a caverna questionada. Assim como mataram o único que saiu da caverna, agora querem matar o professor. Platão não fez a metáfora à toa, ele denunciou o que virou a democracia ateniense, que, afogada na corrupção e nas vaidades dos “homens bons”, matou aquele que teve a audácia de questionar. Milênios depois, nossa democracia, também corrupta, mata novamente Sócrates. Dessa vez, não sei se ele retornará naqueles que buscam a verdade…

[1] Mestra em Sociologia pela Unesp de Araraquara. Professora da Rede Pública Estadual. Militante da Unidade Classista, atuando como Conselheira na APEOESP

Imagem: Morte de Sócrates, pintura de Jacques-Louis David (1787)