A força do desconforto

imagemCentro da cidade de Magdeburg nos anos 60

No domingo passado, dia 1° de setembro, em eleição estadual, dois estados da antiga Alemanha oriental deram a votação mais expressiva para um partido de extrema-direita desde o tempo do nazifascismo. Para entender os motivos desse fenômeno assustador, a jornalista e ensaísta alemã Irmtraud Gutschke, tendo por base o lançamento de um novo livro sobre o tema, faz uma imersão no passado e nos conflitos de um povo, cujo estado e forma de vida desapareceram da noite para o dia. No artigo a seguir tomam a palavra as pessoas que vivenciaram todo o período de deterioração da sociedade socialista alemã.

Tradução de Luciano Oliveira, exclusiva para o Partido Comunista Brasileiro.

Por Irmtraud Gutschke para o jornal Neues Deutschland (Nova Alemanha, antigo órgão oficial da Alemanha Oriental e atualmente um diário socialista)

Visões de dentro e de fora: Steffen Mau analisa em seu novo livro a “Sociedade de transformação do leste alemão”: da entrada no novo sistema até o avanço da extrema-direita.

“O braço quebrou” disse o médico e, para a minha própria surpresa, eu fiquei aliviada. Eu não devia exagerar assim, tinha dito a vizinha de nariz empinado, depois que eu havia caído sobre o gelo. O gesso, agora, era a minha satisfação.

Steffen Mau, sociólogo especializado em Macrosociologia na Universidade Humbolt em Berlim, gosta de usar o termo “sociedade fraturada” para descrever a situação atual no leste da Alemanha.

A expressão “reclamão”, tão usada no lado ocidental para se referir às pessoas do lado oriental, é recusada pelo autor como xingamento. Há muitos motivos para reclamar, afirma Steffen, que é descrito na aba do seu livro como um “autor da cidade de Lütten Klein“ porque ele nasceu e viveu na pequena cidade perto de Rostock (lado oriental). Será que a editora escreveria que Jürgen Habermas é um autor de Düsseldorf?

Essa é a realidade de quem teve que entrar em um sistema existente: nada, nem ninguém consegue apagar que “nós fomos – e continuamos a ser – aqueles que chegaram depois, depois que um estado se desmoronou”. Além disso, as pessoas do lado oriental também são claramente uma minoria do ponto de vista demográfico.

“Nós também viemos de baixo”, diz uma tia “simpática” de Berlim ocidental quando meu marido tinha perdido o emprego por causa da união monetária. Como ela, envolta em jornais sensacionalistas como o “Bild” poderia chegar a uma imagem justa de nossas reivindicações depois de 40 anos de República Democrática Alemã (RDA)? Certamente fazia bem a ela lançar olhares de superioridade sobre os “pobres parentes do leste“. Assim como soa acalmador que – mais um citado da aba do livro – “perceber que muito das tensões (…) que se observam hoje no lado oriental … tem suas raízes no tempo da RDA”.

Sem dúvida existem ligações entre o “antes de” e o “depois de” e, para tratar disso, o autor recorre, de um lado, às suas próprias experiências e, de outro, a inúmeras pesquisas – 34 páginas só de indicação bibliográfica – para fundamentar suas análises. Por isso, me parece bem apurada sua postulação de que a sociedade oriental era estruturada em torno do trabalho, mais fechada e etnicamente mais homogênea, enquanto a sociedade ocidental se deixava caracterizar mais por seu foco de classe média, pedante, com maior presença de imigrantes e mais individualista.

A informação de que na República Democrática Alemã quase um quarto da população vivia em prédios simples pré-fabricados (Plattenbau) foi uma descoberta para mim. A solução da “questão da moradia” era parte permanente da agenda social e política da RDA. Aluguel com subvenção estatal com preço variando entre 80 centavos e um marco e vinte centavos por metro quadrado. Infraestrutura planejada com “amplo atendimento de necessidades básicas e uma vívida vizinhança”: Para Steffen isso significa uma sociedade “nivelada para a base” que dava – principalmente em seus anos finais – pouco espaço para desejos de ascensão ou distinção social.

Uma outra coisa que eu também não sabia: Erich Honecker (por 18 anos presidente da RDA) tinha modificado a política educacional de Walter Ulbricht (antecessor de Honecker e por 13 anos presidente da RDA) diminuindo a expansão do colegial e ensino superior. Por isso havia na RDA em 1989 apenas a metade de estudantes universitários em comparação com o lado ocidental.

Plausível. Justamente porque muitos membros da direção e governo provinham de famílias simples, eles tentavam com isso evitar a aparência de um desnível social. Além disso, essa política tinha provavelmente por base o fato de que as posições de “cima” haviam sido preenchidas com a “elite” do período Walter Ulbricht, enquanto que, para as posições de “baixo”, cada braço era bom o suficiente.

Um precariado acadêmico como o da República Federal da Alemanha (RFA) a RDA não produziu. Esse plano, no entanto, entrou em algum momento em conflito com a meta socialista do “cada qual, segundo sua capacidade; a cada qual, segundo suas necessidades”. Steffen Mau reúne em seu livro muitos motivos do por que – mesmo no decorrer de gerações – a frustração pôde crescer. O fato de que no estado dos “trabalhadores e dos camponeses” havia características de uma sociedade normalizadora se justifica por sua estrutura fundamental. O termo “Estado totalitário” é no entanto refutado por Steffen e, ao invés disso, ele prefere falar em “Sociedade de Organização”, na qual havia muitos diferentes níveis de contato e aliança entre dirigentes e o “povo estatal” (Staatsvolk).

Olhando apenas para seu interior não é possível entender como a República Democrática Alemã conseguiu apagar-se a si mesma da história em outubro de 1989. Contextos geopolíticos não são no entanto aqui – como em muitas vezes – analisados.

Com tudo isso no fundo, como seria possível que as duas Alemanhas negociassem “uma trilha comum ao desenvolvimento” ? À sociedade que entrava foi imposta um completo espartilho institucional e político. Além da “liquidação das tradições socioculturais” e aceitação da dominação econômica da Alemanha ocidental que, com isso, pôde desmontar a economia da RDA. Steffen Mau não economiza nesse ponto em duras críticas e números convincentes. Dois terços da população economicamente ativa da RDA em 1989 tinham quatro anos mais tarde mudado de profissão original e, entre as pessoas que tinham função diretora, esse percentual sobe para 90%. O autor pôde acompanhar esse processo com seus próprios olhos em sua pequena cidade onde pessoas em poucos meses foram arremessadas do núcleo para a margem social.

O modelo da República Federal da Alemanha – já naquele tempo em vias de se despedir do período onde o capitalismo permitiu-se domar para a construção de um estado de bem estar social – atraía com sua promessa de consumo. Com desemprego e queda no nível social ninguém contava. Envoltos na névoa nacionalista da unificação, muita gente alimentava ilusões sobre a força do capitalismo.

“Em 2017 a média do valor do patrimônio líquido nas regiões da antiga RDA eram apenas 34,5% do nível dos estados do lado ocidental”. De acordo com um estudo de 2016, apenas 1,7% das posições de direção de destaque nacional eram ocupadas por pessoas oriundas das regiões do leste alemão. “Não se deve esperar que a mentalidade das pessoas do leste se modifique no silêncio ou com o tempo, pois a experiência da vida na RDA e a frustração do período de “transformação” seguem vivas na narrativa das pessoas e na desigualdade que se estabeleceu na região.”

“O quanto fundo dói a espora” pessoas socializadas no lado ocidental precisam de muita empatia para entender. E os políticos certamente jamais se interessariam por esse tema se não fosse o avanço de movimentos como a AfD (sigla para Alternative für Deutschland – Alternativa para Alemanha – Partido neofascista oriundo da União Democrática Cristã) e Pegida (sigla para Patriotische Europäer gegen die Islamisierung des Abendlandes – Europeus Patriotas contra a Islamização do Ocidente – é uma organização de extrema-direita que se opõe à imigração de muçulmanos na Alemanha).

A correta interpretação desse fenômeno e seus fundamentos é condição central para – a partir de um ponto de vista do leste – entender o que ocorre na Alemanha. Uma sentença fácil aqui não substitui o entender que, por sua vez, não pode servir como desculpa para tudo. Steffen Mau oferece nesse ponto reflexões bem diferenciadas. Para ele o motivo do sucesso da extrema-direita nos estados do leste alemão não é o problema com os imigrantes em si, que geralmente são percebidos como “representantes de um mundo que saiu do eixo”, nem tanto o medo – depois de um doloroso processo de integração – de uma segunda onda de desapropriação cultural, mas apenas de uma recusa geral em ser de novo, de cima para baixo, levado a ter que aceitar “mudanças” e “adaptações”. Steffen fala em um “desconforto emocional sobre o andamento das coisas”, onde se apegam os populistas.

Esse desconforto pode ser mais profundo nas regiões da antiga RDA, mas isso não significa que sua força também não tenha efeito no lado ocidental. Pois embora lá nunca tenha havido uma promessa de igualdade, houve uma promessa de prosperidade social com a qual muita gente também se sente decepcionada.

“Em todas as sociedades que foram revolvidas pelo neoliberalismo há uma raiva nas massas”. Essa frase de Wolfgang Engler (sociólogo cultural formado na RDA) não sai de minha cabeça. O tratamento desigual faz crescer a radicalização como expressão distorcida de um conflito de classes, cuja solução conforme o ideário de esquerda pode ser – como outras vezes – atrapalhada pelo populismo de direita. No fim das contas a questão não é entre a diferença ocidente e oriente, mas sim entre os de cima e os de baixo.

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