Bolsonaro não é novidade na ONU

imagempor André Ortega | Revista Opera

O discurso de Jair Bolsonaro na Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas gerou reações de indignação no mundo todo. Nada menos do que o esperado. Contudo, algumas reações chamam atenção por serem declarações de que agora o Brasil estaria rompendo com a comunidade internacional, se tornando um pária, desafiando a ONU em plena Assembleia Geral; que agora o Brasil se desgrudou de um universo dominado pelo direito e pela decência, e que tal brutalidade não tem precedentes, pois Bolsonaro seria um maluco excepcional.

Alguns falam que a situação é um absurdo por ter algo de “impossível”, como se Bolsonaro estivesse violando leis da natureza, ficando em um limbo fora da história, fora do mundo.

No livro “Carta no Coturno”, atacamos a fé ingênua em uma eterna e letárgica normalidade. Essa crença no domínio de uma normalidade – e a narrativa mitológica de que ela vem sendo violada por maldosos infernais – se repete também no plano internacional.

A Assembleia Geral da ONU teve momentos de glória como um espaço de causas progressistas, especialmente nos anos 70, quando servia de plataforma para o Terceiro Mundo, os Não Alinhados, além de ter sido um espaço de reprodução de uma ideologia humanitária em contraposição ao imperialismo. Provavelmente era a instituição internacional mais progressista em proporção ao seu prestígio. Ainda assim, é um lugar onde todos os estados membros podem fazer ouvir sua voz e afirmar suas posições políticas. É um espaço de disputa política – o que até é condizente com seu caráter de assembleia.

De forma alternativa, foram construídas estruturas de poder e influência internacionais e transnacionais. Diplomacia, realpolitik e empréstimos. E a assembleia não tem força para fazer valer suas deliberações. O tem o capital financeiro em instituições transnacionais, tecnocráticas, ligadas a comunidades epistêmicas restritas. O FMI, o Banco Mundial.

A própria ONU passou a ser uma das bases de construção de um projeto internacionalista liberal, globalista, que nasce de uma conjunção de fatores que colocam os países centrais – ocidentais e capitalistas – à frente desse projeto, a começar pela integração econômica e político-militar sob a égide dos Estados Unidos. O projeto tem expressões políticas importantes as posições internacionalistas liberais de Democratas norte-americanos que seguiam a tradição do wilsoniasmo. Concomitante a isso, surgem a União Europeia e instituições integradoras da Grã Bretanha e da França com suas ex-colônias. E, no mesmo ritmo, bancos e corporações se convertem em atores transnacionais na produção de políticas.

É certo que o discurso de Bolsonaro fortalece uma posição política. É verdade também que a fala foi excepcional nos padrões do estadismo brasileiro. O que não é certo é achar que Brasil comete uma ruptura sem precedentes com a “comunidade internacional” e que Bolsonaro não possui exemplos, nem ideais para seguir. Também não pulamos para fora do mundo.

Basta lembrar do histórico de conflito de Israel com a ONU: pegando somente uma questão sensível, é desde 1968 que a ONU produz resoluções acerca dos assentamentos judeus ilegais que colonizam terras árabes. Em 1969, a Resolução 2546 condenou violações israelenses de direitos humanos e de convenções de guerra a respeito do tratamento de civis nos territórios ocupados da Palestina, o que foi reforçado em três resoluções de 1970 (2628, 2727, 2728). E mesmo depois dos desastres de 1948 e 1968, a questão da Palestina só ganhou proeminência com a emergência da atuação de grupos palestinos armados no plano internacional.

Em 1973, a Assembleia Geral passou uma resolução sobre apartheid que condenava a “aliança entre o colonialismo português, o Apartheid e o sionismo”. Essa afirmação foi reutilizada no preâmbulo da Resolução 3379, “Eliminação de todas as formas de discriminação racial”¹.

Haveria de transformar esse artigo em um relatório técnico se citasse cada resolução das Nações Unidas contra Israel. Desde 1969 são dezenas, saídas dos relatórios do comitê especial para investigar violações de direitos humanos nos territórios ocupados, e isso ignorando as resoluções saídas do recém criado Comitê de Direitos Humanos (que são uma outra questão).

Não só a Assembleia Geral dos membros das Nações Unidas, mas o Conselho de Segurança, cujas deliberações possuem força, aprovou por unanimidade (e sem abstenções) a Resolução 242 que declara que a aquisição de terras por guerra é “inadmissível”, exigindo a retirada das forças israelenses dos territórios ocupados e reconhecendo o direito dos palestinos a um Estado.

Até hoje, no entanto, os israelenses não retiraram as tropas de ocupação e não existe um Estado palestino.

A mesma coisa ocorreu com o status internacional de Jerusalém, que o primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu declarou “capital de Israel”, movimento agressivo e unilateral que foi reconhecido por Trump e alguns outros países, além de ter tido o gesto de apoio de Jair Bolsonaro. O mesmo vale para a anexação dos territórios sírios das Colinas do Golã.

O sionismo segue desde 1948 a estratégia de impor fatos consumados; assim foi a expulsão de vilas inteiras, com as tomadas de território; assim foi nos ataques contra os projetos de pesquisa nuclear iraquianos nos anos 80 (o Conselho de Segurança exigiu que os ataques cessassem na resolução 487). Netanyahu seguiu com a estratégia, elevando-a para um novo patamar, adequado a um mundo onde a União Soviética já não existe (dentre outras mudanças).

A ousadia e as vitórias israelenses acabaram guiando até mesmo o discurso internacional que se pretende crítico, já que sua inflexibilidade causou a transição de um discurso que tratava a questão palestina como uma questão nacional para a predominância de um discurso que reduz a questão a abordagem de um problema humanitário. Na redução do léxico humanitário, o problema passa a ser uma questão israelense.

Eles entendem que os advogados não fazem as leis, mas só interpretam as leis que são impostas por soldados.

Conscientes disso, é absurdo dizer que Bolsonaro não possui precedentes, que Bolsonaro não segue exemplos.

Não se deve cair na narrativa fantástica em que existe uma “normalidade internacional” marcada pela decência dos burocratas e dos intelectuais, que está sendo violada por brucutus como Bolsonaro.

Alguns até compreendem que Bolsonaro possui seus precedentes, mas o problema é que preferem comparar Bolsonaro a “ditadores africanos” sem nome, ao invés de declararem que, por sua militância anticomunista e seu discurso conservador, ele se parece mais é com o tipo de política isolacionista da África do Sul do apartheid ou de Israel. Talvez para essas pessoas a figura de um homem negro com a cara fechada e uniforme militar pareça mais assustadora do que comitês de brancos de terno ligados a mineradoras transnacionais de um lado e israelenses cabeludos promovendo feiras intelectuais e concertos de música clássica do outro… ou talvez sejam pessoas muito iludidas com as imagens de regimes parlamentares desses países.

A África do Sul do apartheid é outro exemplo de país que enfrentou uma campanha internacional coordenada na ONU e reiterada condenação na “opinião pública mundial”, se agarrando aos Estados Unidos com discurso anticomunista e com apoio israelense (colaboração condenada nas resoluções 31/6-E de 1976, 33/183-D, 34/93-P de 1979, 35/206-H de 1980, 36/172-M de 1981, 38/39-F de 1983, 39/72-C de 1984, dentre outras e assim por diante até o ano de 1988).

No recente 15 de setembro completou-se 36 anos desde o massacre de Sabra e Chatila, perpetrado no Líbano contra refugiados libaneses e palestinos, que foram mortos em uma cifra que varia de 762 pessoas a 3.500 (responsabilidade israelense reconhecida na resolução 37/123 em 1982) – milícias que colaboravam com Israel cometeram uma série de brutalidades no campo de refugiados sob os olhos das forças de Israel. Do ponto de vista histórico, um massacre cometido em 1982 foi cometido há pouco tempo.

Com o conhecimento que a política externa sionista possui dos efeitos da campanha de boicote, desinvestimento e sanções (BDS) contra o regime racista do apartheid, não é de se impressionar que o sionismo faça de tudo para desmoralizar a campanha pelo BDS contra Israel chamando sua promoção de “racista e antissemita”, apesar de ser um pouco impressionante que Israel continue sendo o único voto na ONU que acompanha os Estados Unidos na votação anual que a Assembleia faz pedindo o fim do bloqueio econômico contra Cuba – como ocorreu no mais recente 1º de novembro de 2018, com direito à fala de um representante austríaco em nome da União Europeia condenando o bloqueio (vide documento A/73/L.3; a Ucrânia não votou contra Cuba no documento geral, mas acompanhou Israel e os Estados Unidos nas votações de emendas – o Brasil deve se juntar a esse seleto clube em 2019).

É verdade, não é só Israel. Os Estados Unidos adotaram posições muito unilaterais em momentos diversos, inclusive para apoiar o estado sionista (como fez Reagan nos anos 80, ignorando as resoluções que seu próprio Estado endossou no Conselho de Segurança no passado). Os ideólogos da Era Bush assumiram certas considerações dos internacionalistas liberais, como ideias de que a soberania nacional é condicional e não absoluta, mas renunciaram ao figurino do multilateralismo e da cooperação com os parceiros em prol de uma postura ativista unilateral, independente até mesmo do Conselho de Segurança da ONU. Trump, por sua vez, trás uma nova modalidade de isolacionismo com política de força.

Para todos os efeitos, sim, Bolsonaro quer ser um apêndice dos Estados Unidos e aplicar um programa político violento, ultrarreacionário, a partir dessa submissão, como forma de garantia.

Alguns temem sanções dirigidas contra o Brasil, especialmente ao agronegócio, em face das irresponsabilidades e arroubos de Bolsonaro, sua crença fanática no extrativismo primário e na acumulação violenta. Outros, mais sábios ainda, temem que os Estados Unidos, famosos pelo protecionismo agrícola, se aproveitem disso para tomar fatias do mercado ocupadas por interesses brasileiros. A maioria desses, no entanto, deposita sua fé na razoabilidade da tal “ala militar”, confusos pelo fato de que quase tudo é mais razoável do que o radicalismo de Bolsonaro. Pois saibam que o vice-presidente Hamilton Mourão, em um arroubo de pensador estratégico, acredita que a condição de “celeiro do mundo” faz com que o Brasil seja indispensável para os chineses, “se não eles morrem de fome”, como se fosse vantajoso para nós se posicionar no atual conflito entre Estados Unidos e China com uma atitude que lembra chantagem perante os chineses (isso ficou exposto em um discurso que ele fez na universidade adventista de Engenheiro Coelho, no interior paulista).

A associação política de Bolsonaro e a leniência do governo com grupos como os madeireiros, por exemplo, é reminiscente das relações do governo israelense com os militantes que colonizam terras ocupadas. A política do sionismo nas últimas décadas foi a seguinte: alguns colonizadores podem ser punidos, até mesmo alguns assentamentos desfeitos, mas no fim das contas a colonização deve continuar e ser maior do que nos últimos anos. É assim pelo menos desde os anos 80, mas Netanyahu iniciou um novo ciclo de radicalização e reconhecimento.

Assim, Bolsonaro intercala a leniência radical ou até o apoio com ações de queimadas, extração, expansão da fronteira agrícola e violência contra indígenas com pequenos recuos e até pequenas concessões. O governador carioca Wilson Witzel não precisou que fosse feito um ritual de suspensão da ordem constitucional para que ele aplicasse uma política de escalada violenta em seu estado.

Horrorizam-se quando Witzel diz que gostaria de bombardear, “usar míssil”, contra favelas. Rebelar-se é justo, mas alguns prosseguem achando que a barbárie não possui precedentes. Bombardear favelas: era isso que Israel fazia em Beirute, no Líbano. Bombardearam com mísseis, aviões e fizeram ataques com helicópteros. Tudo ao gosto Witzelano.

A guerra do Líbano mostrou a capacidade de sucessivos governos sionistas de resistir à comunidade internacional e a críticas de sua própria sociedade.

No dia 18 de abril de 1996, as Forças de Defesa de Israel (IDF) bombardearam um complexo da ONU que abrigava 800 refugiados libaneses (106 mortos, 116 feridos – conhecido como Massacre de Qana). Uma investigação da ONU, conduzida pelo Major-General holandês Frank Van Kappen, que cumpria a função de assessor militar da secretaria-geral, chegou à conclusão de que era improvável que as forças israelenses tivessem cometido algum erro técnico ou de procedimento², apontando especialmente para o fato de que elas haviam feito um reconhecimento com um drone logo antes do ataque. A posição foi assumida pela secretaria geral em uma carta para o Conselho de Segurança, que também expõe a posição dos israelenses (que através dos meios disponíveis negaram as acusações). Van Kappen poucos anos depois foi para a carreira política, atuando até hoje como político conservador e atlantista (em geral favorável às intervenções da OTAN na Ásia e no Oriente Médio).

A Assembleia Geral votou por uma punição contra Israel: 1,7 milhões de dólares do conserto das instalações deveriam ser pagos por Israel. A proposta venceu por 66 votos a 2, com 59 abstenções – os únicos votos contrários foram dos Estados Unidos e de Israel. Os Estados Unidos, membro permanente do Conselho de Segurança, argumentaram que resoluções financeiras deveriam ser adotadas por consenso e Israel se recusou a pagar em qualquer circunstância.

Nessa época, no 27º governo israelense, o primeiro-ministro, chefe de governo pela primeira vez, era Benjamin Netanyahu.

Ele, que acaba de vencer mais uma batalha pelo governo, pelo 35º governo – talvez a mais importante de todas, tanto pelo cenário internacional como pelo fato dele estar em uma linha de fogo jurídica por investigações de corrupção – é o “querido amigo” de Bolsonaro.

A mídia brasileira deu um pouco de atenção para um possível escândalo em Itaipu envolvendo a família Bolsonaro, mas deixou passar denúncias de jornais israelenses sobre os vínculos da Watergen (empresa promovida por Bolsonaro) com Netanyahu em um esquema de lobby.

É fundamental pensar se Bolsonaro não é um político de paróquia, daquele que troca favores até quando sua paróquia é o Brasil inteiro. E nós vamos achar que Bolsonaro é professor para o mundo, quando o mundo oferece uma escola como essa?

É o mesmo Bolsonaro que quer tocar em palavras como “colonialismo”, enquanto se ajoelha aos Estados Unidos e se faz de extensão de um assentamento gigante comandado pela extrema-direita israelense.

Um dos problemas da hipocrisia é que ela recorre a motivos justos. É dessa forma que alguns militares, Mourão e Bolsonaro foram de uma posição abertamente entreguista sobre a Amazônia para uma “patriótica”, que inclusive se informa da avaliação correta dos militares de que a bacia hidrográfica é um dos motivos para considerar a Amazônia uma prioridade estratégica.

Uma das razões que explicam o discurso de Bolsonaro, podemos escutar no rádio, é o seu “populismo”. Mais uma vez o populismo e, segundo o senhor do rádio, vivemos uma ameaça populista global!

O populismo foi de uma categoria que descreve uma ampla aliança das classes populares com setores da burguesia, um governante majoritário que vai contra um sistema oligárquico e para falar de momentos de transição em sociedades com o capitalismo menos desenvolvido, para ser usado como alcunha de alguma forma adequada para um faccionalista que logo no início do governo se entrincheirou numa minoria ideológica para servir de tropa de choque das elites econômicas.

Na história do Brasil, Bolsonaro deve mais ao antipopulismo do que ao populismo. Sua candidatura – e o apoio dos capitalistas a essa candidatura – é uma candidatura “contra o populismo”. Uma candidatura defensora do neoliberalismo econômico, contrária à mobilização popular, em nome da ordem e defensora das desigualdades.

Na ânsia de fazer um argumento esperto e chamar Bolsonaro de hipócrita, os nossos “pensadores” apontam os dedos para a Venezuela e ignoram o exemplo que Bolsonaro louva, cultua e reivindica: Israel.

Para Witzel e Bolsonaro, Israel é mais do que um modelo técnico na repressão, mas é um modelo ideológico onde vislumbram o casamento da violência com o messianismo conservador. É um ideal de mobilização.

O presidente reivindica o golpe de 1964 e a ditadura de Pinochet. Essas ditaduras nasceram para combater o populismo, com um discurso de “defesa da civilização ocidental” enquanto defendiam as muralhas da desigualdade econômica com seus fuzis. São parte da ideia ainda viva de que é necessário um “governo forte” para defender a ordem e a propriedade, e uma “política econômica racional” da “tentação populista” que vigora nos povos latinos, tentação que traz riscos para as classes dominantes, por suas transformações sociais e “reformas perigosas”.

Bolsonaro não grita neoliberalismo em seu discurso na Assembleia Geral? Vejamos:

“Em busca de prosperidade, estamos adotando políticas que nos aproximem de países outros que se desenvolveram e consolidaram suas democracias. Não pode haver liberdade política sem que haja também liberdade econômica. E vice-versa. O livre mercado, as concessões e as privatizações já se fazem presentes hoje no Brasil. (…) Estamos abrindo a economia e nos integrando às cadeias globais de valor. (…) Pretendemos seguir adiante com vários outros acordos nos próximos meses.”

Ainda assim, certos críticos se esforçam por associar Bolsonaro à palavra populismo, sem sequer situar comparações dentro de um “populismo de direita” (conservadores demagógicos e histriônicos), mas como contraposição a uma forma liberal. Assim, é realizada a operação absurda em que Bolsonaro é equiparado a qualquer um que desafie as convenções e aos que procuram realizar transformações sociais através da mobilização popular, populistas ou não. Mais estritamente, Bolsonaro é equiparado a populistas históricos que mobilizaram energias populares contra oligarquias, como Perón, Jango, Brizola, Cárdenas e Gaitán.

A expectativa desse discurso é que Bolsonaro atue segundo essa régua. Quando ele é chamado de populista em meios como a Folha ou o Estadão, a impressão que fica é que ele está sendo acusado de não corresponder às exigências da “causa sagrada” da luta contra o populismo. Na verdade, Bolsonaro é filho dessa cruzada tanto quanto é filho dos liberais: os pais, nas manchetes, o renegam.

Quando esse discurso de “crítica ao populismo” se mistura com a questão do discurso de Bolsonaro na ONU, encontramos o perigo.

É por esse caminho – por essa estrutura de pensamento – que a ingenuidade sobre a ordem internacional se transforma em apologia de um projeto globalista de exercício de poder, em que domina o capital financeiro através de um “clero” transnacional composto por tecnocratas e alguns ideólogos responsáveis por sustentar os valores dessa ordem. É a ideologia de um “tipo ideal” de uma classe média “de esquerda” cosmopolita, marcada por um complexo de inferioridade devido ao atraso brasileiro, comparando o “nosso” barbarismo ao que seriam as elites esclarecidas expostas em revistas, almanaques e filmes estrangeiros. A turma que não compreendeu a soma de fatores que sustentaram o bem-estar social europeu na segunda metade do século XX, que acreditava na Europa e, hoje, acredita também no globalismo.

É um gerencialismo liberal que acredita que essas instituições transnacionais e a “decência liberal”, o bom mocismo à Macron, vão resolver os problemas do mundo de maneira evolutiva e sem rupturas. É uma utopia tecnocrática pseudoinclusiva, acima da política.

Mas não existe um gerenciamento transnacional, neutro, técnico e científico acima das divisões políticas do mundo – incluindo as contradições e antagonismos de classe.³

O intelectual do terceiro mundo Samir Amin descreveu essa globalização como unificação de um bloco imperialista, um projeto político único e global para o capital igualmente globalizado, acertando também quando disse que exigências nacionais das potências causariam rachaduras nesse processo, que é o que estamos vendo com clareza na ascensão de Donald Trump.

Tanto Bolsonaro como esses liberais reconhecem e fortalecem a supremacia das mesmas instituições transnacionais. A diferença é que a marcha histórica do neoliberalismo, que exige sacrifícios no mundo todo – lembrando o que Karl Marx disse sobre a internacionalização do capital já no século XIX, os povos sendo sacrificados no altar de Mammon – generaliza o fenômeno do transformismo nos políticos nacionais, isto é, diferentes facções e projetos de poder local tentam negociar sua posição perante esse processo, aplicando o programa global enquanto preservam certas posições.

Assim como os socialdemocratas tentam reduzir o amargor dos remédios da austeridade e das exigências do financismo, os conservadores querem aplicar a doutrina de choque capitalista enquanto tentam estancar a sangria cultural da aceleração que eles promovem da dissolução social, preservando a aparência de alguns valores e principalmente certas posições de privilégio social. Os militares, por sua vez, tentam se tornar profetas desse apocalipse que de outra maneira pode devorar a própria existência de uma instituição militar (tornada “obsoleta” na visão globalista).

Bolsonaro ou a decência liberal são duas formas de amarrar a nossa independência e declarar a supremacia do capital. São duas etiquetas de veneno com consequências parecidas. Os dois querem impor a todos nós uma inevitabilidade, um fato consumado. Imposições independentes de nossos valores, nossas escolhas e nossa verdadeira autonomia nacional.

Nossa infelicidade é que os figurões da oposição, os porta-vozes que chamam Bolsonaro de jumento ou o que for por sua postura no palco internacional, são eles mesmos inconsequentes e cegos para o papel geopolítico do Brasil do mundo, acreditam no gerencialismo liberal. Para os políticos só faz sentido aquilo que diz respeito a um mundo de negócios, trocas, o que eles confundem com “concreto” – eles não compreendem e não querem entender o significado concreto do Brasil ser uma massa de terra que se projeta no atlântico sul e penetra na floresta amazônica e num planalto central sul-americano. Não compreendendo isso, são incapazes de compreender nossa relação com os Estados Unidos e portanto incapazes de compreender o fenômeno Jair Bolsonaro.

E depois de tudo, feitos os discursos e babadas as irritabilidades liberais, os tiros e as bombas seguem voando e caindo dos helicópteros, na Palestina ou na Maré.

Notas:

¹ – No texto da resolução:

“Relembrando que na resolução 3151 G (XXVIII) de 14 de dezembro de 1973, a Assembleia Geral condenou, inter alia, a aliança profana entre o racismo sul-africano e o sionismo.

Levando em consideração a Declaração do México sobre a Igualdade das Mulheres e sua Contribuição ao Desenvolvimento e a Paz, proclamada pelo Conferência Mundial do Dia Internacional das Mulheres, realizado na Cidade do México de 19 de junho a 2 de julho de 1975, que promulgou o princípio de que ‘cooperação internacional e paz requerem a realização da libertação nacional e independência, a eliminação do colonialismo e neo colonialismo, ocupação estrangeira, sionismo, apartheid e discriminação racial em todas suas formas, assim como o reconhecimento da dignidade dos povos e o seu direito a autodeterminação’. ”

Em seguida a resolução da ONU relembra a resolução 77 (XII) adotada pela assembleia dos chefes de estado e governo da Organização de Unidade Africana em sua 12ª sessão ordinária, que condenou em termos iguais o “regime racista da Palestina ocupada e os regimes racistas do Zimbabwe e África do Sul”, que compartilhavam “da mesma estrutura racista”, “com uma origem imperialista em comum” e uma política de repressão da “dignidade e integridade do ser humano”. Também fez referência a Declaração Política adotada pela Conferência de Ministros do Exterior dos Países Não Alinhados realizada em Lima em agosto 1975, que condenou o sionismo com uma “ameaça a paz e segurança mundial”, chamando todos os países a se opor a essa “ideologia racista e imperialista”. Com isso, a resolução adotada com voto majoritário determinava o sionismo como uma forma de racismo.

² – Em maio de 1996, Kol Ha’ir, um jornal semanal israelense, publicou os relatos de soldados envolvidos – anônimos – e eles confirmavam que o ataque foi proposital e que os comandantes encorajaram os soldados. Um dos entrevistados até disse que “fizemos nosso trabalho, ninguém via como um erro, estamos em paz com isso, era só um monte de árabes”.

³ – Para recuperar mais um exemplo, a ênfase no suposto caráter positivo e na emergência da intervenção internacional em Rwanda no ano de 1994 mascara o papel das potências ocidentais na preparação do desastres (de várias maneiras: o Acordo Internacional do Café, as pressões da Comunidade Econômica Europeia, as reformas do FMI, a democratização feita sob encomenda pelos ocidentais que liberou as amarras das contradições sociais e do nacionalismo hutu) e mascara os desastres que seguiram (em Rwanda e no Congo).

André Ortega é fundador do site Realismo Político e coapresentador do programa Posto Sul. Leitor ávido, foi correspondente da Revista Opera junto aos rebeldes no leste da Ucrânia em 2015 e escreve na “Coluna do Ortega.”

Ilustração: Presidente dos Estados Unidos da América, Donald Trump. cumprimenta o presidente da República, Jair Bolsonaro, durante encontro na sede da ONU. (Foto: Alan Santos/PR)