Educação: o projeto autoritário e privatista

imagemEDUCAÇÃO BRASILEIRA: DO ATRASO DA EMPRESA COLONIZADORA AO OBSCURANTISMO TERRAPLANISTA ATUAL

Alex Santos

Militante da Unidade Classista – Fração ANDES-SN

Ao olhar pelo retrovisor da história da educação escolar pública no Brasil não há muito do que se orgulhar. Da herança jesuítica no início do século XVI à fase da redemocratização nos meados dos anos 80 do século XX, esteve presente um “modelo dualista”[1] que, salvaguardando suas diferenças ao longo do tempo, representou a “cultura do atraso”, condenando filhos/as da classe trabalhadora à ignorância e sem acesso ao conhecimento produzido e acumulado historicamente pela humanidade. Durante o Brasil Colônia, a empresa educativa ficou sob a tutela da Igreja Católica e dos padres jesuítas. Com surgimento do Império, a elite e seus valores retrógrados, no intuito de priorizar os seus interesses egoístas, começou a construir o edifício educacional pelo teto, sem pensar nos alicerces e na base que lhe dariam sustentação. Dessa forma, as instituições de ensino mantidas pelo Estado ofereciam alguns cursos superiores isolados na capital e, como consequência, o Erário abandonou à própria sorte os ensinos primário e secundário, a ponto de o pensador liberal Anísio Teixeira[2], que influenciou fortemente o pensamento pedagógico nacional, criticar os índices alarmantes de analfabetismo e a total ausência da população pobre ao acesso à escolarização. Fato que não causava assombro, dadas as características sociais de uma nação que há pouco tinha abolido a escravatura, não por vontade própria, mas por pressões externas, principalmente da Inglaterra. Essa herança maldita continuou pesando sobre os ombros do povo brasileiro ao longo do tempo, tendo havido redução, mas jamais sua erradicação como demonstram os dados da tabela 1.

imagemOutros exemplos da tragédia que se abateu sobre a história da educação brasileira dariam para encher páginas e páginas, mas serão citados apenas a tardia criação das universidades, que tem como marco o ano de 1925 (Universidade do Brasil), passando pela recente universalização do ensino fundamental e a oferta, ainda limitada, da educação infantil nos anos de 1990, o que, em comparação a países desenvolvidos da Europa e outros em desenvolvimento na América Latina, tornam evidente o atraso educacional do Brasil. Muito embora seja preciso reconhecer as iniciativas liberais, no âmbito da educação nacional, que começam nos anos 1930 com a intensificação das campanhas fundadas nos princípios iluministas, os quais tinham como base a valorização do conhecimento científico, as formas de democratização da escola e a modernização dos métodos pedagógicos.

No entanto, a situação atrasada de antes passa a ser diminuta se comparada ao obscurantismo que tomou conta do Ministério da Educação – MEC, no primeiro ano de (des)governo bolsonarista. Administrado por personagens esdrúxulas e grotescas, as quais se aproximam do que é caricatural, o MEC transformou-se em uma nau à deriva num mar revolto e tempestuoso. Dominado por “olavistas” associados ao terraplanismo, a principal política desse grupo de lunáticos para a educação básica é o combate a um inventado “kit gay” para as escolas públicas, somada à fantasiosa “ideologia de gênero” e ao monstruoso “marxismo cultural” (obra do “nosferatu” Paulo Freire e seu comparsa italiano Antonio Gramsci), que, de acordo com os/as terraplanistas, são práticas que representam uma grande ameaça para a manutenção do núcleo familiar tradicional. Esse núcleo nada mais é do que o modelo de família patriarcal, fundado na figura masculina como a referência a ser seguida e obedecida. Algo que não mais se sustenta dadas as condições da realidade contemporânea com uma diversidade na constituição familiar. Essa cominação que não passa de uma fantasia da paranoia anticomunista, desenvolvida pelo astrólogo Olavo de Carvalho, na visão de seus seguidores instalados no MEC, precisa ser banida do contexto escolar. Por isso, a equipe liderada, de janeiro a abril de 2019, por Ricardo Vélez (filósofo sem nenhuma filosofia, com exceção dos “ensinamentos de seu guru”) e de abril até então por Abraham Weintraub (economista de baixo escalão com atuação no mercado financeiro e com a pecha de professor universitário de caráter duvidoso), tem adotado sua “cruzada” contra o que um raciocínio sensato e racional considera inexistente no contexto da escola pública, pois suas três frentes de ataque não passam de ilusões elaboradas pela mente insana do “mestre guru”. Esse é o primeiro ato da cena obscurantista que envolve a educação com a névoa do absurdo.

No segundo ato, há a fatídica militarização de um conjunto de escolas como projeto piloto de envergadura nacional. Com essa filosofia recheada de autoritarismo, a gestão das escolas e os problemas educacionais referentes à disciplina, aos valores e comportamentos devem ser assumidos por militares, deixando à margem o trabalho de pedagogas/os e impedindo que psicólogas/os e assistentes sociais entrem em cena, profissionais com formação e conhecimento especializados para lidar com tais situações. Inclui-se aqui a interferência de policiais no trabalho pedagógico de professoras/es em sala de aula, as/os desautorizando diante das/os estudantes quando considerarem ser pertinente a intervenção. Um cenário insalubre para a transmissão dos conhecimentos acumulados e altamente danoso para a construção coletiva de novos conhecimentos. Caso esse projeto siga em frente, a escola pública brasileira e a formação da população infantojuvenil estarão em queda livre na direção de um abismo sem fim.

Como terceiro ato, surge no horizonte dos/as terraplanistas instalados/as no MEC, o “FUTURE-SE”, uma invencionice que, caso seja aprovada pelo Congresso Nacional, liquidará de uma vez por todas o que resta daquilo que foi um dia a estrutura da universidade pública do país e sua perspectiva humboldtiana – sustentada pelo tripé ensino, pesquisa e extensão. A primeira fratura resultante do “FUTURE-SE” será na produção da pesquisa científica, atividade que atualmente tem 95% de sua realização e desenvolvimento concentrada nas universidades públicas. Ao repassar a gestão universitária para Organizações Sociais (entidades com personalidade jurídica de direito privado, sem fins lucrativos, cujas atividades são dirigidas ao ensino, à pesquisa científica, ao desenvolvimento tecnológico, à proteção e preservação do meio ambiente, à cultura e à saúde) estas entidades negociarão com investidores do mercado de ações o futuro das IES públicas. Eis que tal modelo de gestão pode eliminar a autonomia administrativa, de gestão, didático-científica, patrimonial e de aplicação dos recursos, o que resultará na mercantilização das atividades acadêmicas. A pesquisa, o desenvolvimento tecnológico e a inovação estarão comprometidos, as atividades de extensão praticamente deixarão de existir, inclusive o ensino na oferta de cursos de graduação e pós-graduação, isso porque o que for avaliado como não rentável para os investidores, dentro do modelo proposto correrá o risco de ser cancelado ou não autorizado a entrar em funcionamento.

A segunda fratura será na autonomia patrimonial. Ao se tornar possível a efetivação do programa, o patrimônio que envolve todo o complexo parque universitário brasileiro deixará o controle da esfera federal pública e passará a fazer parte de fundos imobiliários de investimentos, o qual será lançado para a disputa das “hienas” na “selva” do mercado financeiro. Isto é, as IFES adotarão um “programa de integridade, mapeamento e gestão de riscos corporativos, controle interno e auditoria”, o que faz crer ser um modelo gerencial inspirado nos Fundos de Pensão. Como terceira fratura, pode-se adotar a desregulamentação da carreira docente com

a descaracterização da dedicação exclusiva (Art. 18), a rigor, esvaziando o seu nexo com o conceito de universidade pública, estabelece o notório saber à revelia de toda discussão sobre a carreira docente (Art. 29) e cria condições para que docentes possam ser agentes em busca de lucros e benefícios pessoais, algo como um redirecionamento dos professores como empreendedores. (LEHER, 2019).[3]

A quarta fratura compreende a transferência de recursos públicos para a inciativa privada e a descaracterização do caráter público, gratuito e laico do ensino superior ofertado pelas universidades e demais instituições federais de ensino. De acordo com análise da assessoria jurídica do ANDES-SN, no anexo à circular n. 293/19[4]:

a pretensão do FUTURE-SE de fortalecer a autonomia financeira das universidades e dos institutos federais é desassociada da intenção de se “criar formas de financiamento outras que não o repasse necessário regular” (Freire). A propagada autonomia financeira está atrelada ao fomento à captação de recursos próprios, o que, segundo a apresentação do Programa, gerará “maior autonomia de gestão das receitas próprias, flexibilização de despesas e maior interação com o setor empresarial para atividades de inovação”. Mas o que se percebe é que teremos, na verdade, a transferência de recursos e bens públicos para entidades privadas.

Dada a complexidade das mudanças sugeridas pelo PL que contém o programa FUTURE-SE, suas possíveis lacunas de ordem jurídica e o ataque frontal às instituições de ensino superior públicas e gratuitas, as fortes manifestações por todo o país após seu anúncio paralisaram temporariamente seu avanço no Congresso Nacional. No entanto, aquilo que o PL não tratou claramente em termos de autonomia universitária já se manifestou na Medida Provisória de n. 914/19, que dispõe sobre o processo de escolha dos/as dirigentes das universidades e institutos federais e do Colégio Pedro II. Com essa medida, às vésperas do fim de 2019, o presidente a partir de então irá nomear quem lhe aprouver para o cargo de reitor/a, mesmo que não seja o mais votado da lista tríplice, caso que já se repetiu em várias universidades federais do país; poderá, ainda, fazer nomeação pro tempore “em razão de irregularidades verificadas no processo de consulta” e os/as reitores/as escolhidos/as terão o poder de nomear diretores/as de centro ou campi.

Os excrementos do poder obscurantista têm se agigantado no contexto educacional brasileiro com o prenúncio do acirramento das lutas de classes já para o início do ano de 2020. Os desafios para as entidades vinculadas aos interesses da classe trabalhadora nos seus diferentes matizes alargam cada vez mais as suas margens. Diante de tal quadro de acirramento do autoritarismo e de medidas políticas com acentuado nível de negacionismo do que é racional e científico é necessário seguir na costura de alianças e buscar construir a unidade na ação entre as forças que não se renderam às artimanhas do capital imperialista e sua acomodação no “estado de exceção”, sem nenhuma pretensão democrática. É preciso coragem e disposição para os novos enfrentamentos que se avizinham, caso o desejo da classe trabalhadora não seja sucumbir, mas resistir e atacar na construção do socialismo. Mesmo diante das adversidades é preciso ânimo para reagir.

Avante camaradas!

[1] Instrumento de cimentação da divisão social de classes no âmbito de capitalismo dependente. As instituições de ensino adotam uma postura reprodutiva das condições estruturais de produção e do poder institucionalizado, em que a escolarização conduz os/as filhos/as da elite dominante aos postos de dominação, enquanto àqueles/as que pertencem à classe trabalhadora são condicionados/as a assumirem as funções de subserviência. Essa relação não é mecânica e direta, havendo um conjunto de mediações na sua efetivação, mas grosso modo, esse é o sentido do dualismo educacional.

[2] A crítica de Anísio Teixeira está contida na obra “Educação não é privilégio” publicada pela primeira vez no ano de 1957.

[3] Texto preliminar, escrito em virtude do anúncio do FUTURE-SE, analisando seus 45 artigos. Disponível em < https://esquerdaonline.com.br/2019/07/25/leia-a-analise-de-roberto-leher-da-ufrj-sobre-o-future-se/> Acesso 27 dez 2019.

[4] O parecer da assessoria jurídica do ANDES-SN com análise sobre o FUTURE-SE, encontra-se disponível em <https://www.andes.org.br/sites/circulares/circular-no-293-19-encaminha-nota-tecnica-acerca-do-programa-institutos-e-universidades-empreendedor> Acesso 27 dez 2019.