Capitalismo em guerra sobre os escombros da Líbia

imagemForças aliadas do governo de Tripoli, apoiado pela ONU, em Sirte, Líbia, em 12 de março de 2019. Créditos: Ayman Al-Sahili / Reuters

Por José Goulão

ABRIL ABRIL

A herança caótica deixada pela agressão da OTAN contra a Líbia e que se aprofunda há quase nove anos está degenerando numa situação aterradora de guerras cruzadas, motivadas por múltiplos interesses, capaz de fazer explodir alianças político-militares, afinidades religiosas e relações institucionais – com repercussões em todo o panorama internacional. O início, no dia de Natal, da transferência de terroristas da Al-Qaeda da Síria para território líbio, de modo a reforçar as forças do governo de Tripoli reconhecido pela ONU e a União Europeia, é apenas um dos muitos movimentos em curso na sombra dos holofotes midiáticos. E a Turquia acaba de aprovar o envio de tropas regulares para a Líbia.

A realidade da situação da Líbia está para lá do que possam conceber as imaginações mais treinadas em tentar perceber os sentidos dos desenvolvimentos na arena internacional. Habituada às notícias quase rotineiras relacionadas com os movimentos migratórios nas costas líbias e aos altos e baixos da guerra das tropas do governo de Benghazi contra as forças do executivo de Trípoli, a opinião pública mundial não faz a menor ideia do que está acontecendo. E do que pode vir a suceder de um momento para o outro.

A Líbia deixada pela guerra de destruição conduzida pela aliança entre a OTAN e grupos terroristas islâmicos do universo Al-Qaeda/Isis tem atualmente três governos, além de um xadrez de zonas de influência controladas por milícias armadas correspondentes a facções tribais, tendências religiosas ou simples negócios de oportunidade, à cabeça dos quais estão o contrabando de petróleo e o tráfico de seres humanos.

Os três governos em atividade são: o chamado Governo de Unidade Nacional, com sede em Trípoli, chefiado por Fayez al-Sarraj, apoiado pela Irmandade Muçulmana e reconhecido pela ONU e a União Europeia; o governo de Benghazi, apoiado pela Câmara dos Representantes – única entidade eleita no país – e cujo homem forte é o agora marechal Khalifa Haftar, à frente das tropas do chamado «Exército Nacional Líbio»; e um governo instalado no hotel Rixos, em Trípoli, formado pela Irmandade Muçulmana e do qual se diz que ninguém reconhece mas tem muitos apoios.

Nos últimos meses, a ofensiva das tropas do marechal Haftar chegou às imediações de Trípoli mas não conseguiu tomar a capital, apesar dos sangrentos bombardeios. Nos bastidores desta guerra diz-se que nenhum dos beligerantes está em condições de levar a melhor, esgotando-se num conflito sem solução à vista.

Uma guerra internacional
A guerra está num impasse, o caos e a ingovernabilidade agravam-se, mas não existe qualquer esforço de entendimento entre as facções líbias. Pelo contrário, cada centro de poder tem vindo a ser reforçado no quadro das perspectivas de continuação do conflito – porque não se trata de uma guerra civil, mas de uma guerra internacional.

No dia de Natal, como já se escreveu, começou o deslocamento de grupos terroristas filiados à Al-Qaeda, da província de Idlib, na Síria, para a Líbia. A movimentação é patrocinada pela Turquia, que deixou claro aos mercenários islâmicos que a única possibilidade de se salvarem da ofensiva final das tropas governamentais sírias é abandonarem as posições que ainda ocupam e, de certa forma, regressarem às origens. Recorda-se que grande parte dos terroristas que combateram na Síria contra o governo de Damasco foram transportados da Líbia, onde estiveram a serviço da coligação com a OTAN.

A operação iniciada no Natal foi montada pela Turquia com a colaboração da Tunísia: o presidente Erdogan acordou com o seu homólogo tunisiano, Kais Saied – apoiado pela Irmandade Muçulmana – a utilização do porto e do aeroporto de Djerba para transporte dos grupos armados e material militar em direção a Trípoli e Misrata, onde irão engrossar as fileiras do Governo de Unidade Nacional (GUN).

Em 15 de dezembro, o presidente turco recebeu em Istambul o chefe do GUN, al-Sarraj, a quem prometeu a entrega de drones e blindados ao exército às ordens do governo reconhecido pela ONU e a União Europeia; o legislativo turco acaba de aprovar o envio de forças militares regulares para a Líbia. Ao mesmo tempo, a Turquia acelerou o processo de produção de seis submarinos militares, encomendados à Alemanha.

Choques petrolíferos
A Turquia foi um dos países aos quais o governo de Trípoli pediu auxílio quando se iniciou a ofensiva das forças de Khalifa Haftar. Al-Sarraj dirigiu-se também à Argélia, Itália, Reino Unido e Estados Unidos. Sabe-se, entretanto, que Washington está de bem com todos os governos da Líbia e vê com muito bons olhos a continuação do conflito.

Não existem dúvidas, porém, de que foi a Turquia quem mais rápida e concretamente respondeu aos apelos do governo instalado em Trípoli.

Há razões que explicam por quê. Erdogan revelou que assinou um acordo de princípio com al-Sarraj para exploração conjunta de petróleo no Mediterrâneo, podendo para isso dispor de instalações portuárias líbias – que se juntam assim às que a Turquia já utiliza em Chipre, onde ocupa militarmente o norte do país.

Como a Turquia tomou conta, em termos de exploração petrolífera, das águas territoriais de Chipre que confinam com o setor ocupado, o acordo com o governo de Trípoli proporciona uma combinação de Zonas Econômicas Exclusivas que atingem águas cipriotas e gregas. A atuação de Ancara parece violar a Convenção do Direito Marítimo (UNCLOS), que aliás a Turquia ainda não assinou.

Em 22 de dezembro, exatamente uma semana depois do encontro entre Erdogan e al-Sarraj em Istambul, o ministro grego dos Negócios Estrangeiros, Nikos Dendios, foi diretamente a Benghazi encontrar-se com o próprio Khalifa Haftar e outros representantes do governo local. Depois viajou para o Cairo e para Chipre. Atenas exige ao governo de Trípoli que se retire do acordo de incidência petrolífera e militar com a Turquia, num quadro em que as relações greco-turcas estão no nível mais elevado de agressividade de há muito tempo a esta parte.

Sabe-se ainda que a Grécia pretende acionar a OTAN e a União Europeia para que cancelem o reconhecimento do governo líbio de Trípoli. Em suma, a guerra internacional com epicentro na Líbia passa pelo meio da OTAN e da União Europeia.

Acresce que esta dança política, diplomática e militar decorre em simultâneo com os movimentos norte-americanos para usar a Grécia como antídoto à degradação das relações com a Turquia e no âmbito de um novo quadro de segurança regional para bloquear a Rússia no Mar Negro.

Isto é, Washington usa um membro da OTAN contra outro membro da OTAN e dá um novo passo na estratégia de quebrar as relações entre Atenas e Moscou originalmente assentes em afinidades religiosas que têm vindo a ser deterioradas por conspirações dentro da Igreja Ortodoxa iniciadas na Ucrânia.

Não é difícil confirmar o ecumenismo dos Estados Unidos em relação aos governos líbios. Se está ao lado do executivo de Trípoli, juntamente com a União Europeia, a ONU e a OTAN, também aposta em Benghazi, como se percebe através da estratégia montada com a Grécia.

O xadrez dos gasodutos
São amplos os cenários de confrontação a partir da situação líbia. Mais amplos ainda porque os acordos entre Ancara e o governo de Trípoli vêm potencializar a crise aberta com a exploração ilegal de petróleo pela Turquia na Zona Econômica Exclusiva de Chipre.

Em causa não estão apenas interesses cipriotas, mas também da Grécia e de Israel, parceiros na exploração de hidrocarbonetos no Mediterrâneo e respectiva distribuição através do eixo Griscy (de Grécia, Chipre e Israel) – ideia fortemente encorajada pelos Estados Unidos para criar vias que permitam à Europa ter mais alternativas às fontes russas de energia. Trata-se de uma opção contra a Rússia que atinge também a Turquia, porque põe em causa o gasoduto turco-russo Turkish Stream.

Deste modo, não é surpreendente que a Turquia tenha procurado patrocinar o governo líbio de Trípoli. Surpreendente, em termos abstratos, deveria ser a declaração do marechal Khalifa Haftar segundo a qual o governo de Benghazi tem todo o interesse em fazer entendimentos com Israel.

Na realidade, aprofundando a leitura desta declaração à luz da guerra internacional em torno da Líbia iremos encontrar países como a Arábia Saudita e o Egito – muito próximos de Israel – ao lado de Khalifa Haftar em termos financeiros, políticos e militares; não espanta que Israel se junte ao grupo por estas afinidades e pelas explicadas razões energéticas. Através das quais iremos encontrar Estados Unidos Israel, Grécia e Chipre em oposição a um governo reconhecido por ONU, União Europeia, OTAN e… Estados Unidos.

Sinal dos tempos
As frentes em confronto nesta guerra da Líbia são um sinal dos tempos. Os tempos em que os conflitos de interesses intercapitalistas começam a dissolver linhas que definem alianças político-militares, coligações de países, associações regionais, afinidades religiosas, políticas e sistêmicas que têm formatado o mundo desde a queda do Muro de Berlim. Com a particularidade de entidades como a OTAN e a União Europeia não estarem a salvo da turbulência.

Tomemos como exemplo o assustador caso líbio. Do lado do governo de Trípoli, cuja legitimidade representativa do país é reconhecida pela ONU e a União Europeia, estão a Turquia, a Tunísia, o Qatar e terroristas islâmicos do universo Al-Qaeda e Estado Islâmico defendendo interesses econômicos que coincidem com os da Rússia.

Do lado de Khalifa Haftar e do seu governo de Benghazi estão os Estados Unidos, Israel, Egito, Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, países da União Europeia como Chipre e Grécia, além de forças de reação rápida sudanesas, mercenários russos e grupos terroristas próprios de uma região, a Cirenaica, considerada das mais fortes no abastecimento do extremismo islâmico internacional. Saif Khaddafi, filho do dirigente líbio assassinado pela OTAN, juntou-se igualmente a Haftar1.

São dados a ter em conta quando a nova tragédia da Líbia explodir, então já sob os holofotes midiáticos.

1. Ayesha Khaddafi, irmã de Saif, apelou aos líbios para repelirem a invasão turca, em declarações à Jamahiriya Satellite TV: «quando as botas dos soldados turcos profanarem a nossa terra, adubada pelo sangue dos nossos mártires, se não houver entre vós que alguém para repelir esta agressão, então deixem o campo de batalha às mulheres livres da Líbia, e eu estarei entre as primeiras». Ver Almarsad, 3 de Janeiro de 2020.

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