Sionismo e capitalismo

imagemAs empresas vinculadas aos assentamentos ilegais na Palestina

por João Melato | Revista Opera

Na quarta-feira (12) o Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas divulgou uma lista de 112 empresas ligadas a assentamentos israelenses ilegais na Palestina. Aguardado há anos, o relatório aparece no contexto da “proposta de paz” de Donald Trump, que não exige o desmantelamento de nenhum assentamento por parte de Israel. Em novembro, Washington havia anunciado que não consideraria mais esses assentamentos como ilegais.

Após a Guerra de Junho de 1967, as conquistas territoriais israelenses não reconhecidas pela comunidade internacional tornaram-se assentamentos ilegais, que desde então não têm parado de crescer e se expandir. Segundo a ONU, as empresas mencionadas no relatório facilitaram a construção de assentamentos e forneceram equipamentos de vigilância ou serviços de segurança para empresas operando na área. Também constam no relatório empresas que forneceram equipamentos para a demolição de moradias palestinas ou que participaram em práticas cujo objetivo é impedir o crescimento de negócios palestinos por meio de estratégias para restringir sua capacidade de locomover.

Ambos são expedientes do apartheid israelense em cidades que o governo ou os colonos querem tornar exclusivamente judias. No primeiro dia de janeiro de 2020, uma família palestina retornou de uma audiência judicial que dizia respeito à legalidade ou não da casa onde moravam na Jerusalém oriental, para descobrir que as autoridades haviam se antecipado e a demoliram enquanto estavam fora. Em dezembro, Israel aprovou a criação de um novo assentamento e ordenou a demolição do tradicional mercado palestino em Hebron, cujos comerciantes já sofriam com várias proibições de locomoção.

Na lista divulgada pelo relatório se destacam bancos e empresas de construção, a maioria com sede em Israel. Existem porém 18 empresas cuja sede é no exterior, incluindo as famosas Airbnb, Alstom, Booking.com, Expedia, Motorola Solutions e TripAdvisor. A lista completa pode ser conferida aqui. O apartheid israelense declarou, através de seu primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, que o relatório é o produto de um organismo “tendencioso” que, “em vez de lidar com direitos humanos está tentando manchar o nome de Israel”.

O colonialismo israelense
A criação do Estado de Israel em 1947 por decisão do mandato britânico foi o casamento de duas interpretações exclusivistas do processo de colonização, aquela do império britânico e aquela da tradição sionista. Não que as outras potências coloniais fossem famosas pela inclusão dos povos colonizados, mas os ingleses foram os primeiros colonos na América a declarar que “era melhor expulsar os pagãos a fazer as pazes com eles” e os que menos se esforçaram por evangelizá-los [1].

Em 1940, o administrador da colonização judaica pré-estatal na Palestina, Yosef Weitz, escreveu em suas anotações que não havia perspectiva para a independência judaica se duas nações existissem num país pequeno, e que era necessário “transferir os árabes daqui para os países vizinhos”. Suas palavras não davam espaço a segundas interpretações: “todos eles, não deve sobrar nenhuma cidade ou tribo” [2]. Haviam gradações entre os sionistas, é claro: alguns queriam soluções de compromisso com os árabes, outros queriam massacrar aldeias árabes inteiras e fazer os poucos sobreviventes desfilarem como cativos por Jerusalém.

Nem todos os colonos judeus eram sionistas reclamando o direito à Terra Prometida. A novela palestina O Retorno a Haifa (1969) menciona um cidadão judeu que se refugiara na Palestina para fugir da Shoah (holocausto) e das perseguições antissemitas e que, apesar de ouvir constantemente os barulhos de tiros, “não imaginava que algo horrível estava acontecendo (…) pois nunca encontrara um árabe em toda sua vida”. Esse não é um fenômeno atípico na história do colonialismo mundial: colonos que não compartilhavam dos valores nem das ambições do projeto colonial, mas que buscavam oportunidades que já não possuíam na metrópole.

Mas isso não torna a colonização mais palatável ao colonizado. Segundo Jello Biafra, mais conhecido por ser ex-vocalista da banda punk Dead Kennedys, “um músico sueco amigo meu passou um mês em Hebron com o Movimento de Solidariedade Internacional. As pedras que ele viu não foram atiradas por palestinos em soldados, mas por colonos israelenses em crianças palestinas indo para a escola. Ele também viu pixações que diziam ‘morram árabes, negros da areia’ e ‘vamos estuprar todas as mulheres árabes’”.

A estatal Mekorot bombeia água para os colonos judeus e para os aldeãos palestinos de maneira cada vez mais desigual. Assentamentos israelenses se apropriam de estradas que unem vilarejos palestinos a grandes cidades e eventualmente proíbem tráfego palestino na área.

O projeto de Weitz parece ter sido bem-sucedido. A maioria da população palestina vive hoje em campos de refugiados ao redor do mundo árabe. Os vestígios arqueológicos de sua cultura são brutalmente vandalizados por projetos de escavação israelenses, que utilizam métodos datados que tornam impossível distinguir os artefatos de diferentes épocas. Até mesmo seu cinema, largamente produzido no exílio, está agora sob posse do colonizador sionista. Quando Israel invadiu o Líbano em 1982, confiscou o maior acervo de filmes palestinos, que era mantido pela OLP, e até hoje o mantém guardado a sete chaves. A Palestina enquanto nação parece inviabilizada.

Isso não é apenas força de expressão. Apesar de distando apenas dois quilômetros do mar, os palestinos da Faixa de Gaza não têm acesso a ele devido a uma faixa de assentamentos israelenses. Assim, não conseguem desenvolver suas próprias indústrias de dessalinização, e Israel não os permite importar as suas tecnologias (que são referência mundial) nem permite aos palestinos da Cisjordânia enviar-lhes água. Não resta aos gazanos alternativa senão usar em excesso um único aquífero que abastece mais ou menos dois milhões de pessoas.

Em 2012, uma pesquisa publicada pela ONU previu que, graças à deterioração do aquífero, a região se tornaria inabitável até meados de 2020. A ocupação e o bloqueio continuam, e consequentemente a dependência do aquífero também. Hoje, apenas 3% da água é potável. A catástrofe ambiental chegou mais cedo na Faixa de Gaza.

Um “policial” no Oriente Médio
Os anos 60 e 70 viram surgir um otimismo irresistível. A revolução cubana, o fim das leis de segregação racial nos Estados Unidos, as revoluções de liberação nacional na África, o fim do fascismo português, a expulsão dos norte-americanos do Vietnã, etc. Mesmo com algum atraso, o fim do apartheid sul-africano em 1994 parecia confirmar que, de uma maneira ou de outra, o mundo caminhava para um tempo melhor. Mas o apartheid israelense não só sobreviveu, como começa a servir de modelo inspirador para os reacionários da Índia.

Uma das explicações possíveis é que regimes como o da Rodésia e da África do Sul não contavam com um apoio tão incondicional por parte dos EUA. Na época do capital financeiro, não existe unidade produtiva sem o seu financiamento bancário. E os assentamentos israelenses recebem milhões de dólares de empresários norte-americanos todos os anos [4]. Para além dos superlucros, existe uma razão teológica: muitos desses empresários são cristãos protestantes que acreditam que o retorno do “povo escolhido” à Terra Prometida é um pré-requisito para o retorno de Jesus Cristo. Alguns evangélicos norte-americanos resolveram até contribuir pessoalmente com a causa e tornaram-se colonos na Palestina.

A Frente Popular para a Libertação da Palestina define o sionismo como um “movimento racial agressivo conectado ao imperialismo que explorou o sofrimento dos judeus como forma de promover seus próprios interesses [do sionismo] e os interesses do imperialismo nessa parte do mundo (…), que fornece uma testa-de-ponte para os países da África e da Ásia”. Em suma, os imperialistas – primeiro ingleses, depois norte-americanos – veem na ocupação da Palestina uma região privilegiada, onde suas tropas e tropas amigas podem acampar à espera da necessidade de fazer valer pela força os interesses do imperialismo no Norte africano ou no Ocidente asiático.

É como se o imperialismo houvesse colocado um “policial” naquilo que chama de Oriente Médio. Um policial que possui uma das maiores capacidades bélicas do mundo, e não hesita em utilizá-la contra as populações civis árabes na Palestina, no Líbano ou na Síria, e por cujo bem-estar zelam boa parte dos capitalistas do mundo. Não à toa, o movimento palestino Boicote – Desinvestimento – Sanções (BDS) afirmou que a lista divulgada pela ONU é “significante” mas “incompleta”: importantes multinacionais que financiam assentamentos ilegais na Palestina, como a Hyundai e a Volvo, ficaram de fora.

Haverá Palestina?
Em seu novo filme O Paraíso Deve Ser Aqui o diretor e ator palestino Elia Suleiman (interpretando um personagem de mesmo nome) consulta um cartomante e lhe pergunta: “Vai haver Palestina?”. O cartomante em um primeiro momento sorri e diz: “sim, vai haver Palestina!” mas, ao puxar outra carta, procede com mais cautela: “meu amigo”, diz, “vai haver Palestina… mas eu não viverei para vê-la, e nem você”.

A resposta pessimista do cartomante parece confirmada pelo “Acordo do Século” de Donald Trump, que reconhece os assentamentos israelenses, não diz nada sobre o Direito ao Retorno dos refugiados e coloca Jerusalém como a capital indisputada de Israel. Trump retirou em 2018 o apoio dos EUA ao programa de ajuda humanitária aos campos de refugiados palestinos. As tentativas de diversos governos – França, EUA, Alemanha, Inglaterra, etc. –, de igualar o apoio ao BDS e o antissionismo ao crime de antissemitismo adicionam outro mar de dificuldades.

Mas o “acordo do século” oferece também uma oportunidade ao povo palestino. Ele invalida na prática os Acordos de Oslo, aos quais a OLP capitulou em 1993, que dividiram assim a liderança palestina entre a Autoridade Palestina e o Hamas (que rejeita Oslo). Alguns veem no BDS justamente a esperança da rearticulação de um discurso universal palestino e secular, capaz de unir o povo palestino em torno da tarefa inadiável de derrubar a ocupação estrangeira. Mas os desenvolvimentos recentes forçarão os setores capitulacionistas a reconhecerem que o sionismo não está disposto a negociar, diminuindo sua margem de vacilações, e, com certeza, aumentarão a disposição do povo palestino a resistir, já que a vida sob a ocupação israelense está se tornando literalmente insuportável.

Quanto a nós, apesar de insuficiente, a lista divulgada pela ONU pode servir de base para lançar um forte movimento de boicote ao apartheid israelense no Brasil, seu mais novo aliado. Além do governo, algumas das empresas mencionadas são bastante famosas e seus serviços bastante utilizados pelos brasileiros. É a oportunidade para lançar uma campanha de boicote, cujo objetivo prioritário não é econômico (mesmo que alguns assentamentos individuais possam ser prejudicados), mas político: trata-se de minar a imagem do apartheid israelense, aproveitar-se da campanha de boicote para denunciá-lo ao maior número possível de pessoas e constranger assim os governos que buscam apoiá-lo. E nisso o movimento de boicote tem sido bem sucedido.

A caracterização do boicote antissionista como uma forma de antissemitismo se baseia principalmente na comparação entre ele e as sanções impostas pelos nazistas aos comerciantes judeus. Além de rejeitada por organizações judaicas como a Jewish Voice for Peace ou a Union Juive Française pour la Paix, essa comparação foi completamente refutada pelo filósofo Domenico Losurdo, que mostrou que o BDS segue a mesma tradição de boicotes anticoloniais do Movimento 4 de Maio (1919) na China, onde estudantes clamaram pelo boicote a produtos japoneses, ou o boicote a tecidos ingleses na Índia, chamado por Gandhi, e o próprio boicote às mercadorias alemãs puxado pela comunidade judaica internacional nos anos 30.

Ao contrário do sionismo, o movimento de libertação da Palestina não é um movimento racial nem busca a expulsão de nenhum povo. A destruição do sionismo objetiva dar lugar à amizade entre os povos árabe e judeu, tendo a Palestina como sua casa.

Em vez da cena do cartomante, talvez devêssemos nos apegar mais a uma outra cena do filme de Elia Suleiman. Um palestino aproveita que um soldado israelense está distraído procurando alguma coisa em seu binóculo para urinar em suas botas, e foge na própria bicicleta do soldado antes de ser notado. Enquanto os imperialistas, os sionistas e os reacionários do mundo inteiro pensam que impõem a derrota final ao povo palestino e aos povos oprimidos de todo o globo, nós devemos minar suas bases de apoio pouco a pouco e, assim, contribuir para um mundo livre da exploração, do racismo e das guerras. Começaremos por suas botas.

Notas

[1] – Anthony Pagden, Lords of All the World: ideologies of Empire in Spain, Britain and France (1500 – 1800). Londres: Yale University Press, 1995. p. 31-37.

[2] – Adel Safty, Might over Right: how the zionists took over Palestine. Garnet Plushing, 2009. p. 177.

[3] – Ghassan Kanafani, Palestine’s Children: Returning to Haifa and other stories, 2000. p. 167.

[4] – Além do hiperlink, Jello Biafra também comenta o tema.

https://revistaopera.com.br/2020/02/14/sionismo-e-capitalismo-as-empresas-vinculadas-aos-assentamentos-ilegais-na-palestina/