Coronavírus, agronegócio e estado de exceção

imagemSILVIA RIBEIRO

O DIÁRIO.INFO

Muito se fala sobre o coronavírus Covid-19, e todavia muito pouco. Existem aspectos fundamentais que permanecem na sombra. Quero citar alguns deles, diferentes mas complementares.

O primeiro refere-se ao perverso mecanismo do capitalismo de ocultar as verdadeiras causas dos problemas, a fim de não fazer nada sobre eles, porque afeta os seus interesses, mas fazer negócio com a aparente cura dos sintomas. Enquanto isso, os Estados gastam enormes recursos públicos em medidas de prevenção, contenção e tratamento, que também não agem sobre as causas, de modo que esse modo de lidar com os problemas se torna um negócio exclusivo para as transnacionais, por exemplo, com vacinas e medicamentos.

A referência dominante a vírus e bactérias é como se estes fossem organismos exclusivamente nocivos que devem ser eliminados. Prevalece uma abordagem de guerra, como em tantos outros aspectos da relação do capitalismo com a natureza. No entanto, devido à sua capacidade de saltar entre espécies, vírus e bactérias são parte fundamental da coevolução e adaptação dos seres vivos, bem como do seu equilíbrio com o meio ambiente e a saúde, incluindo os seres humanos.

O Covid-19, que agora é manchete mundial, é uma linhagem da família dos coronavírus, que causam doenças respiratórias geralmente leves, mas que podem ser graves para uma muito pequena percentagem das pessoas afetadas devido à sua vulnerabilidade. Outras cepas de coronavírus causaram síndrome respiratória aguda severa (SARS na sigla inglesa), considerada epidemia na Ásia em 2003, mas desaparecido desde 2004, e a síndrome respiratória aguda do Médio Oriente (MERS), praticamente desaparecido. Tal como o Covid-19, são vírus que podem estar presentes em animais e humanos e, como sucede com todos os vírus, os organismos afetados tendem a desenvolver resistência, o que, por sua vez, faz com que o vírus volte a sofrer mutações.

Existe um consenso científico de que a origem desse novo vírus – tal como todos os que se declararam ou ameaçaram ser declarados como pandemia nos últimos anos, incluindo a gripe aviária e a gripe suína originária do México – é zoonômica. Ou seja, vem de animais e depois sofre mutações, afetando os seres humanos. No caso de Covid-19 e SARS, presume-se que seja proveniente de morcegos. Embora se culpe o consumo destes em mercados asiáticos, na realidade o consumo de animais selvagens de maneira tradicional e local não é o problema. O fator fundamental é a destruição dos habitats das espécies selvagens e a sua invasão por assentamentos urbanos e / ou expansão da agropecuária industrial, o que cria situações próprias para a mutação acelerada de vírus.

A verdadeira fábrica sistemática de novos vírus e bactérias que se transmitem aos seres humanos é a criação industrial de animais, principalmente aves, porcos e vacas. Mais de 70% dos antibióticos em escala global são usados ​​para engordar ou prevenir infecções em animais não doentes, o que causou um problema muito sério de resistência a antibióticos, também para os humanos. Desde 2017, a OMS pede que as indústrias agropecuária, piscicultora e alimentar deixem de usar sistematicamente antibióticos para estimular o crescimento de animais saudáveis. A esse caldo, grandes empresas agrícolas e de alimentos adicionam doses regulares de antivirais e pesticidas dentro das mesmas instalações.

No entanto, é mais fácil e conveniente apontar alguns morcegos ou civetas – dos quais foi certamente destruído o seu habitat natural – do que questionar essas fábricas de doenças humanas e animais.

A ameaça de pandemia também é seletiva. Todas as doenças que foram consideradas epidemias nas últimas duas décadas, incluindo Covid-19, produziram muito menos mortes do que doenças comuns, como a gripe – da qual, segundo a OMS, até 650 mil pessoas morrem anualmente em todo o mundo. No entanto, essas novas epidemias motivam medidas extremas de vigilância e controle.

Como afirma o filósofo italiano Giorgio Agamben, afirma-se assim a crescente tendência de usar o estado de exceção como paradigma normal de governo.

Referindo-se ao caso do Covid-19 na Itália, Agamben sublinha que “o decreto-lei imediatamente aprovado pelo governo, por razões de saúde e segurança pública, dá lugar a uma verdadeira militarização dos municípios e zonas em que a fonte de transmissão é desconhecida, fórmula tão vaga que permite estender o estado de excepção a todas as regiões. A isto, acrescenta Agamben, soma-se o estado de medo que se espalhou nos últimos anos nas consciências dos indivíduos e que se traduz na necessidade de estados de pânico coletivo, aos quais a epidemia oferece novamente o pretexto ideal. Assim, num círculo vicioso perverso, a limitação da liberdade imposta pelos governos é aceita em nome de um desejo de segurança que foi induzido pelos mesmos governos que agora intervêm para o satisfazer.

(https://tinyurl.com/s5pua93).

* Investigadora do Grupo ETC

O Grupo ETC, criado na Espanha, se dedica à promoção da diversidade cultural e ecológica e à luta pelos direitos humanos.
Fonte: https://www.jornada.com.mx/2020/02/29/opinion/019a1eco

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