Pré-história, pós-pandemia e o que virá

imagemO Brasil e o mundo que virão depois da pandemia serão os mesmos que deixamos lá atrás quando tudo isso começou: um país e um mundo que precisam de uma revolução.

Por Mauro Luis Iasi

Quando o mundo rodopia em torno de seu eixo e vemos trevas assustadoras se imporem sobre as idílicas visões de futuro projetadas pela euforia ultraliberal, saem de seus esconderijos os alarmistas e os otimistas. Ambos são muito perigosos em tempos difíceis, pois nos impedem de ver com mais precisão os caminhos e descaminhos de um devir nublado pela incerteza.

A oscilação abrupta faz com que aqueles que afirmavam que tudo ia bem – seja no paraíso democrático popular da conciliação de classes, seja na barbárie pós-golpe – agora mergulhem pelas bordas do mundo a denunciar teorias da conspiração. Não falo de delírios “fakenewsrobotizados” que imaginam que um certo complô comunista, possivelmente iniciado na China, teria provocado o cancelamento das finais da Champion’s League, os shows da Broadway, a NBL, as Olimpíadas, o fechamento de vários países, uma quebra dos EUA e a morte de milhares de pessoas só para atrapalhar o excelente governo de Bolsonaro. Não.

Tratam-se de dois blocos alinhados de acordo com esperanças distintas. De um lado, há aqueles que esperam todo um mundo novo, cheio de possibilidades e insights incríveis sobre nossa vida e nosso planeta: de como sairemos mais conscientes dos limites do capitalismo selvagem e da sociedade de consumo sem freios, críticos de um individualismo exacerbado e defensores de laços mais humanos e de um capitalismo light. De outro, um cenário catastrófico, um Estado total controlando os indivíduos em suas casas como as sombrias previsões articuladas na literatura de George Orwell, desabastecimento e saques, cidades em chamas, pessoas disputando o último pacote de miojo, semizumbis vagando por ruas desertas ao som de Tina Turner aquecida nas fogueiras inflamadas por um cara com maquiagem branca, cabelo verde e terno roxo.

Otimistas e catastrofistas se irmanam para dizer que o mundo não será o mesmo. Bom, para começar, o mundo nunca é o mesmo. Como o velho rio de Heráclito, o mundo flui em seu devir sem pedir licença às pequenas ilusões humanas. As ilusões de um mundo melhor e o medo da catástrofe são meios de racionalização que ocupam o lugar do entendimento. É conhecido o fato registrado por historiadores que o final do feudalismo foi um momento de crenças no fim do mundo e previsões catastróficas, assim como mitos salvadores e desfechos redentores. Pragas, guerras e crises acompanham o percurso da humanidade e a lembram que as épocas históricas acabam em trágicas rupturas através das quais o velho mundo rui dando lugar às novas formas – nem melhores nem piores em si mesmas, mas distintas daquelas dentro das quais a humanidade acostumara-se a viver até então.

Os astrofísicos sabem que este pequeno planeta pode acabar em alguns bilhões de anos quando nosso sol se consumir cedendo à sua própria gravidade, quando parar de fundir átomos de hidrogênio e começar a fundir hélio, transformando-se em uma gigante massa vermelha (sem nenhuma conotação ideológica). Ou, ainda, a qualquer momento se um corpo celeste cruzar nosso caminho e se chocar com as previsões de recuperação do PIB.

Excluídas essas alternativas, seja pela dimensão do tempo ou da imprevisibilidade aleatória, restamos nós mesmos e a dinâmica da história humana. Uma forma social sobrevive enquanto as relações sociais que a constituem não se antagonizem com a produção e a reprodução da vida, como no argumento central de Marx em 1859 em seu famoso prefácio à Contribuição à crítica da economia política, no momento em que as relações sociais de produção, dentro das quais a humanidade se desenvolveu até então, se convertem em obstáculos ao desenvolvimento das forças produtivas.

Tal afirmação, aparentemente num grau muito elevado de abstração, apresenta-se didaticamente em nossos dias. Uma sociedade existe, ora, até que acabe. As forças produtivas, isto é, os fatores que uma vez combinados tornam possível a vida – a natureza, os seres humanos e o que eles aprenderam e sabem fazer – encontram formas através das quais operam formas sociais, econômicas, culturais, políticas e outras que constituem uma determinada sociedade, nos nossos termos, um modo de produção.

Ocorre que um modo de produção, ao se desenvolver, atinge tal ponto em que começa a destruir forças produtivas a fim de se manter. Vejamos o caso desta deplorável forma de vida chamada capitalismo em seu maior grau de desenvolvimento. Como estão os recursos naturais? Como está a força de trabalho, em particular, e a população, em geral? Encontrando forma de continuar a desenvolver sob as condições dadas das relações sociais de produção capitalistas, ou sendo destruídas e saqueadas a cada dia à beira da catástrofe?

Mesmo a chamada tecnologia – que nada mais é que o conjunto dos saberes, práticas, técnicas, ferramentas, instrumentos e tudo aquilo que se utiliza para produzir a vida na forma atual de sociedade em que nos encontramos –, acaba assumindo a forma de uma antitecnologia uma vez que se coloca a serviço da tautologia da valorização do valor e não da satisfação de necessidades básicas, o que Mészáros chamou de taxa decrescente do valor de uso. Um carro tem que durar menos, um celular e sua bateria têm uma vida útil pensada para realizar os ciclos de produção e consumo das empresas, os alimentos não alimentam, os remédios causam doenças, e a ciência abençoa a barbárie desde que continue sendo financiada pelos monopólios.

A base material da crise se expressa nos ciclos de crescimento e recessão, e estes em períodos cada vez maiores de destruição que acabam por atingir todo o edifício social e suas formas políticas, jurídicas e as formas de consciência social em cada época. Tudo que é sólido se desmancha no ar.

Ora, ora, ora… lá vem o cara com seu “discurso marxista”. Estamos falando de um vírus… uma coisa acelular nanomilimétrica, desprovida até de organelas ou ribossomos como uma célula, quanto mais conhecimentos de economia política! Sim, é verdade, um vírus pode causar uma pandemia, mas não destruir uma sociedade que já não estivesse pronta para isso. Guardada as devidas proporções, o vírus se inclui entre os asteroides que podem destruir a terra, isto é, situam-se no campo da natureza e não da história. No entanto, como os vírus precisam de hospedeiros, eles acabam por se manifestar nas condições sociais de seus portadores.

Um vírus não pergunta quem está no governo, se há ou não um sistema público de saúde eficiente, condições de higiene ou abismos sociais, se o mundo está unificado pelo mercado mundial ou apartado em aldeias. Quem produz essas condições nas quais o vírus se manifestará é o ser social. O vírus se manifestou no capitalismo altamente desenvolvido, onde reina a mercadoria e o capital, em uma sociedade de classes na pré-história da humanidade.

Os seres humanos debatiam se era necessário um sistema de saúde público, universal e gratuito, ou se podíamos sucatear tal atendimento e dar um cartão de plástico e um boleto para pagar no banco que gerava a sensação de estar coberto por um serviço de saúde privado que daria conta de tudo, menos da doença que você tem no momento. Aí vem o vírus na sua objetividade natural e diz: vou contaminar multidões em uma dimensão que não dará lucro às empresas de saúde, e aqueles que desenvolverem quadros graves exigirão cuidados médicos sem os quais morrerão.

O vírus não está nem aí, mas as tais condições para o tratamento envolvem equipamentos, pesquisas, testes, reagentes, para não falar no demorado processo de desenvolvimento de vacinas. Os sucessivos governos (Collor, Itamar, FHC, Lula, Dilma, o vampiro lazarento do Temer e o desqualificado do Voldemort) investiram entre 0,23 e 0,24% do PIB em ciência e tecnologia – para não falar no descaso com as Universidades e a Saúde no geral. Em 2014, representantes da ciência no Brasil afirmavam que, para nos manter nas condições científicas e tecnológicas de nosso tempo, seria necessário um investimento de 2% do PIB por 20 anos. Façam as contas.

O chamado saneamento financeiro, segundo vem denunciando há muito tempo a Auditoria Cidadã da Dívida, consome algo em torno de 48-50% do orçamento do Brasil (em 2019 foram 38,7% só com o pagamento de juros e amortizações), enquanto o saneamento básico ficou, em 2015, com 0,01% destes recursos, a saúde pública com 9,2%, em 2019.

A pandemia não pode criar uma crise, mas pode escancarar as contradições existentes. E é isso que ela está fazendo.

Para esta forma de sociedade o problema do vírus não é de saúde, mas econômico. Não é que pessoas (principalmente, mas não só) de idade corram o risco de morrer como se estivessem se afogando no seco, mas que, se as pessoas ficarem em casa, os capitalistas não terão como extrair seu mais valor explorando o trabalho alheio. Nada mais didático do que observar os argumentos de seres deploráveis como os sanguessugas conhecidos como gente da nossa melhor sociedade (Justus, Mr. Madero et caverna) sobre o quanto seria aceitável alguns milhares de mortes para que seus negócios não parem. Assim como pastores externando, de dentro a proteção de suas mansões assépticas, suas preocupação com a arrecadação de seus dízimos.

Não, o mundo não será melhor se voltarmos ao normal. O “normal” é o problema que apenas foi revelado em cores mais nítidas pela calamidade de um vírus.

As formas políticas se degradam, fazendo derreter a grossa camada de maquiagem ideológica que encobre suas feições deformadas e podres. O interesse geral é a vontade dos capitalistas, a vontade popular tem que engolir a aprovação das reformas que tiram direitos dos trabalhadores e poupam fortunas. Os três poderes conspiram e encobrem seus acordos enquanto as Forças Armadas fazem o que sabem fazer de melhor: jogar para debaixo do tapete e esconder seus cadáveres, desresponsabilizando-se pela tragédia de governo que avalizam e defendem.

A humanidade resiste na solidariedade, nos profissionais de saúde na linha de frente, nos trabalhadores dos serviços essenciais que seguem funcionando, nos poetas poetando, nos músicos cantando, nos verdadeiros religiosos trazendo conforto, nos professores e cientistas, pesquisadores e garis, amigos e familiares bolinhos de chuva, amantes sem máscaras e amores descarados.

A pandemia vai passar. O Brasil que emergirá dela será um país capitalista em crise com uma ordem burguesa em conflito interno e uma nação fraturada. Uma sociedade de classes na qual os 10% mais ricos detêm mais de 74,2% da riqueza do país, com o SUS ameaçado e as universidades desprestigiadas. Uma sociedade na qual os preconceitos, o irracionalismo e o obscurantismo foram liberados, e onde o racismo, a homofobia, o machismo e a violência colonialista mata diariamente, violenta a infância e despreza a velhice.

Com sorte, teremos um país que resistiu e cultivou na espera a ira que poderá nos salvar. Esperamos que seja um país que terá aprendido verdades simples: que a ciência é importante e a educação essencial; que saúde não é mercadoria e o SUS deve ser respeitado e fortalecido; que o único saneamento que salva vidas é aquele que traz atendimento médico, água limpa e tratamento de esgoto e não o que produz superávits primários; que é o trabalho que gera riqueza e que sem trabalhadores os vampiros secam ao sol inclemente da verdade da produção do valor; que aquilo que é verdadeiramente importante para a vida somos nós, nossos amigos, camaradas e familiares, aqueles que produzem alimentos, poemas, músicas, filmes e livros; e por fim, que nós sobrevivemos em casa sem eles, mas eles não sobrevivem sem nós.

Nosso programa há de ser como está descrito no cartaz italiano: trabalhar menos, trabalhar todos, produzir só o que é essencial e distribuir tudo.

O Brasil e o mundo que virão depois da pandemia são, portanto, os mesmos que deixamos lá atrás quando tudo isso começou: um país e um mundo que precisam de uma revolução.

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Em edição extraordinária do Café Bolchevique da TV Boitempo, Mauro Iasi discute a pandemia do COVID-19 e o pandemônio político e econômico do país, em uma análise quente da conjuntura brasileira e mundial.

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Mauro Iasi é professor adjunto da Escola de Serviço Social da UFRJ, pesquisador do NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas), do NEP 13 de Maio e membro do Comitê Central do PCB. É autor do livro O dilema de Hamlet: o ser e o não ser da consciência (Boitempo, 2002) e colabora com os livros Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil e György Lukács e a emancipação humana (Boitempo, 2013), organizado por Marcos Del Roio. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas. Na TV Boitempo, apresenta o Café Bolchevique, um encontro mensal para discutir conceitos-chave da tradição marxista a partir de reflexões sobre a conjuntura.

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