Coronavírus e pobreza em Sergipe

imagemFoto [Rovena Rosa/Agência Brasil]

Uma rota de amplificação da barbárie?

Paulo Felix*

“Não é fácil viver essa vida
Não é fácil viver essa vida, não…”
(Não é fácil. Banda Reação)

Como nos convida a reflexão da banda sergipana Reação, certamente não é fácil viver essa vida, sobretudo quando se faz parte dos estratos mais pauperizados da população, em um país cuja estrutura periférica e dependente tem suas mazelas sociais expostas de modo visceral na agonia do enfrentamento a uma pandemia como a do novo Coronavírus, a Covid19. É fato que essa crise pandêmica, de proporções planetárias, não é a causa da crise do padrão de relações socioeconômicas que temos vivido. É, antes, um sintoma de uma sociedade já adoecida, pela desigualdade, pela violência cotidiana, inclusive do aparelho estatal, e da submissão da vida à necessidade de lucratividade do capital.

O que esse cenário traz à tona, em sua forma mais bárbara, é a resultante da própria crise capitalista. Diante da gestão inepta da presidência da república, que revela seu sadismo e governabilidade da morte, uma “necropolítica à brasileira”, as principais alternativas vêm se concentrando no andar debaixo, em como os entes federados têm buscado efetivar medidas de controle epidemiológico em seus estados. Mas como estamos em Sergipe? Qual o cenário que nos aguarda?

Bem, seguindo o óbvio, e nos faz necessário defendê-lo, como dizia o dramaturgo alemão Brecht, o governo Belivaldo Chagas (PSD) e a gestão Edvaldo Nogueira (PDT), em Aracaju, buscaram sustentar, desde o início, o chamado #fiqueemcasa, na defesa do isolamento horizontal, com o fechamento de vários estabelecimentos públicos e privados, ressalvando-se as atividades consideradas essenciais. A manutenção de tal estratégia é a medida mais adequada, ante às dificuldades que o quadro tem apresentando e considerando os riscos que uma exposição em massa pode causar à nossa população.

A pressão do empresariado sergipano, sedento pela retomada de lucros, entretanto, parece começar a surtir os seus primeiros efeitos, a partir de uma abertura gradual de outros setores da economia que não estariam alocados naquele segmento de atividades essenciais1, demonstrando uma nítida inflexão, apesar da afirmação inicial do Governador de: “Não vou flexibilizar, apesar das pressões que estamos sofrendo”2. É sintomático percebermos que boa parte do empresariado local, ao manifestar a sua “preocupação” pela economia sergipana, o faça vociferando das janelas entreabertas de seus carros de luxo, com suas máscaras 100% algodão, com galões de álcool em gel e devidamente protegidos de um vírus que, vejam(!), “não seria tão perigoso assim”, e que o mais importante seria salvar a economia. A quem, de fato, interessa a reabertura do comércio sergipano? E quais as suas consequências, hoje?

Nessa mesma arena da luta de classes, verificamos uma imensa massa de trabalhadores(as), que vêm sendo compelidos(as) ao sacrifício cotidiano, na busca da preservação de seus postos de trabalho e da manutenção das taxas de lucro do patronato local. Para isso, esses segmentos espremem-se diariamente no já antes precário transporte público em nossa capital, agravado com a redução de 30% de sua frota, resultando no descumprimento de medidas de segurança, na atenção ao limite do número de passageiros(as) pela quantidade de vagas disponíveis nos assentos de cada ônibus, com a pornográfica conivência da prefeitura de Aracaju, que insiste em pôr panos quentes, em uma situação que se agrava. Afinal, onde está a tão combativa SMTT, que faz voz fina diante do poder do baronato monopólico do transporte de Aracaju? Como atestou outro alemão, que viveu no século XIX, “o capital não tem, por isso, a menor consideração pela saúde e duração da vida do trabalhador” (MARX, 2013, p.342)3.

Não é fácil viver essa vida…

Pois bem, em permanecendo essa tendência, estamos diante de uma tragédia anunciada, sem precedentes, mesmo que o Estado já comece a se preparar para a volta à “normalidade”. Normalidade para quem? De fato, já antes da pandemia, seria errôneo falarmos em uma normalidade em Sergipe. Os dados mais recentes são reveladores do agravamento das nossas mazelas sociais. Ou seria normal a convivência com o quinto pior IDH, dentre os estados brasileiros? E nossa vergonhosa 6ª colocação como pior Índice de Vulnerabilidade Social? Em 2018, alcançamos o 6º maior percentual de pobres, dentre todos os estados da federação, como nos revelam os dados do Anuário Socieconômico de Sergipe de 20194. São “títulos” que alçam o Estado a um patamar de uma barbárie permanente, e de uma condição significativa de profunda pobreza. O que é o normal? Certamente, a crise do coronavírus não cria esse quadro catastrófico, mas tende a agravá-lo!

Os dados, por si, são reveladores de nosso abismo social e dos alvos do alastramento da pandemia, que afetará fundamentalmente a população negra e pobre. Vale lembrar que, na própria capital, onde se concentra quase metade da população sergipana, as diferenças de renda não são nada substanciais. Se no bairro Jardins, “área nobre”, o valor do rendimento médio dos(as) moradores(as) era de R$ 6.925,13, o Japãozinho, periferia da cidade, tinha uma média de R$515,07, ou seja 13 vezes menor, segundo os dados da Mapografia Social do Município de Aracaju5, com base no último Censo/IBGE. Registra-se que 66% de sua população possuem perfil étnico/racial de cor preta/parda, residindo, majoritariamente, nos territórios mais periféricos da cidade, sendo a maior parte mulheres, possuindo baixos níveis de renda, de acordo com o mesmo levantamento. Nos municípios do interior não encontramos uma realidade bem diferente. Óbvio está que serão esses sujeitos os mais afetados pelo desastre social em curso, e com a menor possibilidade de acesso a recursos, capazes de prevenir ou mitigar os efeitos da pandemia, demonstrando uma distribuição econômico-espacial, étnico-racial e de sexo, absolutamente desigual de exposição e contaminação pelo vírus.

O cenário atual reúne, preocupantemente, elementos explosivos: junte uma grande massa de trabalhadores(as) voltando aos seus locais de trabalho, comércio reabrindo a todo o vapor, shoppings centers lotados e um volume crescente de consumidores(as) retomando as suas atividades…“normais”. Adicione a essa mistura explosiva a ausência de testes em massa, o alto grau de subnotificações e, para completar, a baixa presença de leitos hospitalares para comportar uma demanda que, tendencialmente, deverá crescer. Convergem, nesse cenário, duas obviedades que parecem ser subdimensionadas. Primeiro, se ainda não atingimos o chamado pico pandêmico é porque a severidade das medidas adotadas até aqui têm contribuído para postergar os níveis de disseminação e um consequente achatamento da curva de contaminação. Mas o fato é que essa conta chegará, como já demonstram os últimos dados. De acordo com o Boletim Epidemiológico, divulgado em 21 de abril de 2020, pela Secretaria Estadual de Saúde, em 1 mês (de 21 de março a 21 de abril) saltamos de 10 casos registrados para 117, representando um aumento de 117%.

Por outro lado, a flexibilização das regras de isolamento social e a provável abertura gradual das atividades econômicas tendem a agravar os níveis de exposição, amplificando o número de pessoas submetidas à contaminação pela Covid-19, exaurindo a capacidade do sistema de saúde do Estado. O resultado também é óbvio: o aumento significativo do número de mortes. Mas quanto vale a vida? E quais vidas estão em disputa? Por aqui, nosso profundo fosso social também terá o seu preço, em que os cortes de classe, de raça e de gênero, funcionarão como atravessadores que exporão a nu nossas desigualdades. O vírus, enquanto tal, não é racista, tampouco odeia os pobres, mas o que a sua disseminação avassaladora traz à tona é a estrutura orgânica de um capitalismo que articula, em seu desenvolvimento, um complexo enredo de exploração, de racismo e de sexismo. Não se trata de uma falsa polarização entre a saúde ou a economia, mas de quantas e quais vidas estão em jogo. Mais que uma série de números e de cálculos estatísticos, que se avolumam dia e noite, ao sabor da velha econometria burguesa, estamos diante da vida de sujeitos sociais, com suas trajetórias, suas famílias que, não tendo outra solução, atiram-se à própria sorte, de modo a preservar sua sobrevivência.

Garantir a vida da população sergipana exige das gestões estadual e municipais o afastamento de sua completa submissão aos interesses do capital, ultrapassando a tática conciliatória, exigindo a ousadia de não simplesmente contar os(as) seus(uas) mortos(as). Hoje, são alguns, amanhã não saberemos. Estariam dispostos a de fato enfrentar as pressões da burguesia sergipana? Ao que tudo indica, não! Com o aumento da contaminação pela Covid19 é nítido que o sistema de saúde sergipano passa a ser mais pressionado e exigido. O número de leitos ainda disponíveis atesta que, apesar da débil política do governo do Estado, a alternativa da quarentena e do isolamento horizontal tem dado certo, ao diminuir o fluxo de pessoas e reduzir o grau de exposição. Disso decorre que se torna arriscado e irresponsável um recuo, ainda que tímido, de uma estratégia que vem, em alguma medida, dando certo.

Estamos preparados(as) para uma carnificina? Frente à chantagem do empresariado junto às autoridades locais e a submissão da vida dos(as) trabalhadores(as) sergipanos(as) aos interesses do lucro, certo é que só a luta social será capaz de fazer frente a esse quadro, de onde nos demandará a firmeza necessária em pautar exigências fundamentais à sobrevivência da nossa população. O cenário exige que seja adotada a manutenção do isolamento social horizontal; a ampliação do número de leitos; a contratação emergencial de maior número de profissionais de saúde e de assistência social; com a garantia da disponibilização de EPIs para as equipes que estão na linha de frente no combate ao avanço do vírus; a viabilização de testes em massa; além de um maior monitoramento e proteção sócio-sanitária dos segmentos mais “vulneráveis” da população pobre.

Torna-se fundamental, em outra frente, a adoção de medidas emergenciais que permitam a preservação do emprego e da renda aos(às) trabalhadores(as) sergipanos(as); a proibição de redução salarial e de benefícios de servidores(as) públicos(as) e de trabalhadores(as) da iniciativa privada; a imediata suspensão da cobrança do pagamento das contas de luz, água, IPTU, o congelamento de preços dos alimentos e das medicações de primeira necessidade; a disponibilização para uso de prédios públicos e privados sem utilização, para atendimento à população em situação de rua, e outros segmentos que vivem em precárias condições de moradias; a viabilização de uma renda mínima, pelos municípios sergipanos e, no âmbito estadual, a ampliação dos insuficientes R$ 100,00 até agora disponibilizados; além do direcionamento do Banco do Estado de Sergipe (BANESE) para a abertura de linhas de crédito para pequenos(as) empresários(as), e com outras faixas específicas que atendam, de igual modo, aos(às) trabalhadores(as) informais, dentre outras medidas que possam preservar a vida da classe trabalhadora sergipana no enfrentamento à nossa barbárie social.

Em um contexto em que as instâncias governamentais, como era de se esperar, mostram-se vacilantes na defesa das condições de vida e de trabalho da população sergipana, é fundamental uma articulação pela base, com a tarefa da organização urgente da construção do poder popular, a partir de um permanente diálogo com os diversos movimentos sociais e as associações de moradores, na articulação com as entidades sindicais e na capacidade de diálogo com moradores(as) residentes das periferias das nossas cidades, para os quais “não é fácil viver essa vida, não é fácil viver essa vida…”

*Prof. do Departamento de Serviço Social da UFS e Militante da Unidade Classista-Sergipe

1 – https://www.se.gov.br/noticias/Governo/governador_flexibiliza_medidas_de_combate_ao_coronavirus

2 – https://www.se.gov.br/noticias/Governo/_nao_vou_flexibilizar_apesar_das_pressoes_que_estamos_sofrendo_di sse_belivaldo_apos_registro_de_duas_mortes_por_coronavirus

3 – MARX, K. O Capital. Crítica da Economia Política. Livro 1. São Paulo: Boitempo, 2013.

4- Refere-se à publicação anual do Grupo de Pesquisa em Análise de Dados Econômicos, vinculado ao Departamento de Economia da UFS, que tem por objetivo traçar um panorama de Sergipe através de indicadores do Estado e de seus 75 municípios.

5 – https://www.aracaju.se.gov.br/userfiles/observatorio/arquivos/OSERVATORIO-Mapografia-Social-de-Aracajupara-o-Observatorio-Social-final.pdf