O tiro que saiu pela culatra

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Imagem – capa do Le Monde Diplomatique, Brasil. Ano 9, n. 102, jan. 2016

DO APOIO AO GOLPE DE 2016 À REJEIÇÃO DO PRESIDENTE BUFÃO

Alex Santos

Professor, poeta, militante da Unidade Classista e do PCB-CE

Setores da grande mídia brasileira associados ao establishment, por exemplo, Rede Globo, Folha de São Paulo, Rede Bandeirantes, que constituem uma fração da burguesia nacional, articularam o golpe operado pelos setores dominantes e reacionários em 2016, junto com o Congresso Nacional, o Poder Judiciário e instâncias da Polícia Federal, atendendo a interesses do capital imperialista yankee e do mundo das finanças. E por entenderem que a política de conciliação de classes adotada pelos governos Lula e Dilma não satisfazia mais às necessidades do sociometabolismo destrutivo do capital.

A liga golpista expressou sua síntese na “Operação Lava-Jato”, coordenada pelo ex-juiz e ex-ministro Sérgio Moro. As estratégias de consumação do golpe, até o ano de 2018, pareciam ter atendido a todos os cálculos e equações planejados nos bastidores do poder político, econômico e midiático. Para tais frações da burguesia, era quase certo que se sairia do slogan “Ordem e Progresso” e haveria uma continuidade do programa “Ponte para o Futuro” (características centrais do governo golpista e ilegítimo de Michel Temer), para o slogan “Para Unir o Brasil”, lema de campanha de Geraldo Alckmin. Eis que o disparo foi dado, mas o tiro saiu pela culatra.

Errado o alvo, prospera, portanto, o ovo chocado pela serpente de pele fascistizante. Aquecido pelas fake news sua casca rompe nas eleições de 2018.Ddesta surge Jair Messias Bolsonaro e, junto com ele, a ascensão do bolsonarismo. No acidente de percurso, o slogan que irá representar o Governo Federal é “Pátria Amada Brasil”, reforçado pelo lema “O Brasil acima de Tudo e Deus acima de Todos”.

As frações burguesas associadas ao establishment esqueceram de combinar com a serpente qual ovo deveria ser chocado e, no lugar de Alckmin, quem realmente recebeu o calor necessário para desabrochar foi Bolsonaro, com um agravante: trouxe junto consigo as hordas bolsonaristas que infestam o país do Oiapoque ao Chuí, tonando-se uma ameaça real à democracia liberal burguesa.

Depois de eleito, o ex-capitão do Exército adotou a estratégia do ataque e do recuo e, apesar dos desafetos e do jeito tosco de governar, com uma crise planaltina a cada 50 dias, continua se sustentando no poder até agora. Com tais elementos, o atual Governo Federal vem fazendo a banda tocar de acordo com sua empáfia grosseira, autoritária, violenta, genocida, teocrática e de traços protofascistas. Seu comportamento de bufão tem desafiado cientistas políticos, e seu plano de governo de estabelecer o caos social tem enfrentado dificuldades, mas continua em curso e se intensificando com a pandemia de COVID-19.

Essa intensificação tem suas contradições e funciona como uma faca de dois gumes, tendo a possibilidade, por um lado, de ser favorável ao plano genocida e eugenista de Bolsonaro, o que fica claro pela sua insistência recorrente de contrariar as determinações da OMS para o distanciamento social e o uso de medicações que não possuem protocolos recomendados pela medicina no tratamento das pessoas infectadas pelo coronavírus, como, por exemplo, a adoção indiscriminada de cloroquina, o que se tonou obsessão do presidente bufão.

Por outro lado, o aumento da curva de mortes e de contágios de brasileiras(os) pode desencadear um desgaste político do falso “mito”. O crescimento de óbitos que provavelmente está relacionado às campanhas inflamadas de Bolsonaro pela reabertura da economia e a circulação das pessoas nas cidades, somadas à participação do mesmo em atos antidemocráticos, podem indicar a premência de sua queda.

Tal postura política do Governo Federal tem criado atritos com governadoras(es) e prefeitas(os), em virtude de as(os) últimas(os) seguirem a linha política favorável ao distanciamento social. Esse comportamento também tem ampliado os desafetos do presidente dentre os meios de comunicação, principalmente, Rede Globo e o grupo Folha de São Paulo. Tática arriscada e perigosa que poderá desaguar no impedimento de Bolsonaro continuar à frente do executivo da União. Estas são possibilidades que só a história poderá dar uma resposta mais à frente.

Sabemos que os momentos de guerra e de peste que têm como consequências o medo e o pânico, podem ser aproveitados com eficácia por tiranos e formas políticas regressivas, também é verdade que tais momentos estão grávidos de insurreições e movimentos revolucionários por parte de quem é oprimido. O momento atual no Brasil e no mundo está atravessado pela peste e por guerras de várias naturezas, inclusive, a híbrida e a ideológica.

Nesse caso a classe trabalhadora deve se reorganizar urgentemente para combater as cabeças da Hidra tirânica e fascistóide que cresce com a peste e a guerra. A atitude política de trabalhadoras(es) deve ser semelhante à de Iolau – sobrinho do herói Héracles – na cauterização dos pescoços, após as cabeças decepadas da Hidra, para que outras não surjam sobre o pescoço do monstro pestilento e mortífero. Na luta contra o bolsonarismo são muitas as cauterizações a serem realizadas, exigindo um esforço hercúleo das(os) oprimidas(os) no intuito de acabar com a Hidra.

Diante da tarefa histórica que precisa ser assumida pela classe trabalhadora com aspirações socialistas e comunistas, a esta fica o impedimento de desenvolver expectativas ilusórias em relação ao conteúdo midiático que Rede Globo, Folha de São Paulo, a Rede Bandeirantes e afiliadas vêm apresentando com mais força no ano de 2020 como contraposição aos interesses de Bolsonaro e setores do seu governo. Esse aparato da mídia brasileira está atuando em causa própria e a favor dos interesses das frações da burguesia insatisfeitas com a forma de Bolsonaro governar, principalmente, porque no atual momento, rompeu-se a aliança entre o falso “mito” da “moral” e dos “bons costumes” e o falso “super-herói” da operação “Lava-Jato”. A sensação é de que estamos diante de mais uma encenação do que Gui Debord nomeou de “Sociedade do Espetáculo”.

Nos quase 17 meses do governo que tem como projeto estabelecer o caos social para justificar uma intervenção militar com matizes fascistizantes, esses grupos de comunicação ligados ao establishment, uns mais outros menos, têm feito uma inglória escalada para o afastamento de Bolsonaro da cadeira da presidência, pela via da denúncia e da legalidade institucional, jogando fichas também num possível impeachment. A tônica do denuncismo se ampara, nesse momento, nas acusações feitas pelo ex-ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro, às quais acresce-se a entrevista de Paulo Marinho concedida ao Jornal Folha de São Paulo em 17 de maio de 2020. Todavia, a movimentação no STF, PGR e Congresso Nacional sinaliza que as denúncias tenderão a acabar em pizza e virarão fumaça no meio da nuvem sombria deixada pela crise sanitária, causada em parte pelo coronavírus, mas também, pela profunda desigualdade social, resultante da incontrolabilidade da ordem sociometabólica do capital.

Ao apostar na possível queda de Bolsonaro, tais aparatos da burguesia midiática nacional, partidários da política ultraliberal de Paulo Guedes que atua para resguardar o capital financeiro e especulativo da crise permanente do capitalismo tardio, buscam fabricar um nome no interior da direita que tenha musculatura política e que dispute as próximas eleições com chances reais de eleger-se à presidência da República em 2022. A expressão teleológica de tal desejo, até então, tem dado com os burros n’água, já que nenhum dos nomes projetados para disputar o pleito presidencial tem recebido a empatia acachapante das(os) telespectadoras(es) e leitoras (es) eleitoras(es). O possível fracasso tem feito os referidos setores da grande mídia reacionária operar no limbo.

Começamos pela aposta em Geraldo Alckmin, talvez, a mais infeliz na história recente da República pós ditadura burgo-militar para a fração burguesa rival de Bolsonaro. Um estrondoso tiro foi dado, mas saiu pela culatra, deixando o atirador estonteado e sem rumo. Depois houve um balão de ensaio com Luciano Huck, mas a chocadeira em que o apresentador tucano foi colocado esfriou e o ovo gorou, antes mesmo de aquecer. Depois do duplo desastre, os flertes miraram-se para João Dória e Wilson Wietzel. Com o último, parece que o momento paquera não passou de um impulso adolescente, nada consistente e evaporou; com os escândalos de corrupção no governo fluminense, expostos recentemente, fica evidente Wietzel já se tornou uma carta quase fora do baralho da disputa eleitoral de 2022, no que se refere ao Palácio do Planalto.

Na sequência, foi a vez de Sérgio Moro que, ao pedir demissão do Ministério da Justiça e Segurança Pública, equivocou-se com a crença de que sua saída derrubaria Bolsonaro. Nos parece que a estratégia não funcionou com tanta eficácia como a adotada à frente da “Lava-Jato” na derrubada de Dilma Rousseff e condenação de Lula. Diante dos fatos, Moro entrou numa saia justa e, caso não consiga provar as acusações feitas a Bolsonaro de tentar interferir no trabalho da Polícia Federal, corre o risco de ser condenado por falso testemunho, calúnia e ficar completamente desmoralizado perante a opinião pública. Com esse complicador o ex-juiz marreco está na berlinda, e o bufão segue seu curso ameaçador e genocida. Depois de toda essa celeuma de apostas fracassadas, os holofotes buscam focar em João Dória, já anunciado pela Folha de São Paulo, nos 500 dias de governança, como um “governo ‘transformado’ em presidenciável na pandemia” (FOLHA DE SÃO PAULO, 15 DE MAIO DE 2020).

A luz ainda não foi ajustada e no vácuo existente parece respingar, também, em Rodrigo Maia que, nas duas últimas semanas, tem dado entrevistas e feito pronunciamentos públicos com a ideia velada de primeiro ministro. Nas suas falas públicas, o canastrão assume uma postura de mediador e articulador do diálogo entre os poderes, faz uma média de garoto tranquilo e equilibrado ao passar a imagem de que, por meio de sua liderança e do DEM, o Congresso Nacional tem feito muito para resolver a crise sanitária e econômica do país. Sua postura político-ideológica desafinada com os interesses da classe trabalhadora, torna-se melodiosa para os ouvidos e as expectativas vampirescas do mercado. Isso porque reforça em suas declarações que irá pautar as reformas administrativa e tributária na Câmara dos Deputados. No caso da reforma administrativa, suas insinuações são direcionadas para a transferência do ônus da dívida e da crise estrutural do capital para o serviço público.

Vindo a se confirmar as pretensões de Maia, abre-se espaço para a apropriação quase total do fundo público pelo capital financeiro e especulativo, deixando, assim, a sociedade brasileira a amargar o pão amassado pelo diabo do capitalismo que segue em queda livre para os braços da barbárie. Atentemos para o que está subentendido nas entrelinhas das falas feitas recentemente pelo atual presidente da Câmara dos Deputados. Com esse discurso, Rodrigo Maia busca garimpar capital político para uma possível candidatura à presidência em 2022, tenta se aproximar do governo Bolsonaro para abocanhar parte dos recursos que está sendo disponibilizada para capturar o chamado “centrão”. Atitude da velha política do toma lá dá cá que o moralismo bolsonarista tanto critica.

Dessa forma, Maia, por um lado, vende a imagem de grande articulador político, o homem do “diálogo”, ao mesmo tempo em que se nega a responder perguntas espinhosas de jornalistas, incididas sobre os altos e baixos de sua relação conflituosa entre Bolsonaro e Paulo Guedes. É muita contradição num único período frasal e que me perdoe a língua portuguesa, mas tratar da política brasileira em tempos de pandemia suscita esse cabedal de estranhezas e contradições. Por outro, sinaliza para o desejo central do financismo especulativo em relação ao Estado, ou seja, a apropriação a qualquer custo do fundo público, única fonte de recursos que o capital, ainda, não conseguiu usurpar por completo. Essa sinalização vem do anúncio sobre a pauta prioritária da Câmara para o período pós-pandemia. Uma dura reforma administrativa, sob a esdrúxula justificativa de que o serviço público precisa contribuir com a amenização da crise, fazendo esse sacrifício pelo bem do Brasil e de uma recuperação econômica robusta.

Essa é a segunda opção que parte da grande mídia, já mencionada anteriormente, desenha uma segunda opção, para ser fabricada pela via da espetacularização de um sucessor para a presidência em 2022. Diante das incertezas aqui expostas, o certo é que as apostas de frações da burguesia brasileira em apoiar o golpe de 2016 acabaram criando um monstro que, inicialmente, acreditava-se ser possível controlar. Houve um erro de cálculo e de lá até aqui o establishment encontra-se no vácuo quanto à figura mais acertada para colocar na cadeira de presidente(a) que possa servir de marionete do capital financeiro, no maior país da América Latina. Será que diante de todas essas apostas frustradas, a escolha vai desaguar na permanência de Bolsonaro, mesmo a contragosto de algumas das frações dominantes do capitalismo em crise? O desenho ainda não está com os traços claros e com os pontos todos ligados. A situação é ambígua e, enquanto Rede Globo e Folha de São Paulo buscam fabricar uma alternativa viável para o establishment nas próximas eleições federais e planejam nos seus porões a derrubada de Bolsonaro, este, em virtude da índole de bufão e miliciano, procurar se manter no cargo.

Diante desse contexto de crises e incertezas, alguma saída autoritária vem sendo matutada nos encontros palacianos com a chancela dos militares. Caso contrário, o ex-capitão genocida, com traços onde se misturam inédita tolice, ignorância teórica e inconsequência ética, não proferiria em um de seus discursos que só sairá do governo em 1º de janeiro de 2027. Esta afirmação, apesar de leviana, só se torna possível porque existe alguma confiança em pronunciá-la, e a confiança está justamente na possibilidade de fechar o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal com o apoio de suas hordas milicianas. Assim governaria como um tirano, o que facilitaria a aplicabilidade do seu plano genocida contra a classe trabalhadora preta, pobre, periférica, o funcionalismo público, comunidade LGBTTQI+ e comunistas.

O Poder Popular, nesse cenário de caos, onde a mídia burguesa corre contra o tempo para fabricar um sucessor ao Palácio do Planalto para 2022, tem que se afirmar nas ações de reorganização da classe trabalhadora e se fortalecer para fazer o embate via ação revolucionária contra a “peste” e a “guerra” que se estabeleceram no país. Essa é a nossa única esperança enquanto oprimidas(os) e exploradas(os). Caso a revolução não seja construída por nós para interromper a escalada bolsonarista, o genocídio seguirá o cortejo fúnebre sobre aquelas(es) mais pauperizadas(os). É com base nessa compreensão que não podemos aceitar e conviver em paz com as projeções da esquerda reformista que também aposta no caos social promovido pelo capitalismo tardio e intensificado com as políticas bolsonoristas, pensando exclusivamente nas disputas eleitorais, seja no âmbito municipal, previstas para o final o segundo semestre de 2020, seja no âmbito federal dois anos depois.

Ousar lutar, ousar vencer! Todo poder às comunas e à revolução da classe trabalhadora que há de derrotar a burguesia parasitária.

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