Da análise às tarefas: por onde começar?

imagemCaio Andrade[1]

“Os filósofos apenas interpretaram o mundo de diferentes maneiras; porém, o que importa é transformá-lo” 2. Não é necessário ser especialista na obra de Marx para capturar o sentido da famosa tese onze. Longe de subestimar a importância da teoria, o que seria um contrassenso vindo de um dos maiores pensadores de todos os tempos, trata-se de compreender a atividade intelectual como momento de um movimento mais amplo: a História, impulsionada pelas lutas de classes.

O postulado em tela, porém, não evitou que, mesmo acreditando-se legítimos herdeiros do pensador alemão, muitos marxistas tenham recorrido ao que Losurdo chama de “Fuga da História” 3. Não são poucos os intelectuais que, especialmente em momentos de crise aguda, estão mais preocupados em salvar a pureza de suas consciências do que em pensar como os trabalhadores podem se mover em uma realidade carregada de contradições para, de alguma forma, avançar na luta. Para estes “marxólogos autônomos”, pouco importam as sucessivas derrotas dos trabalhadores, desde que consigam demonstrar o quanto têm razão e, portanto, nada têm a ver com elas.

Lamentavelmente, o Brasil de hoje, afundado em uma das maiores crises de sua história, não está imune a este fenômeno. Compreender isso, contudo, não significa que devemos desconsiderar os aportes mais relevantes para entender o complexo cenário político brasileiro. Ao contrário, temos a obrigação de ler criticamente as mais sofisticadas avaliações da conjuntura, extraindo suas consequências para a ação organizada da nossa classe, identificando seus limites e, sobretudo, possibilidades de curto, médio e longo prazo.

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Já se tornou lugar comum nas análises da conjuntura nacional afirmar que três crises sobrepostas estão em curso no país: uma crise econômica, uma crise sanitária e uma crise política. Algumas análises mais aprofundadas vão além e revelam que, apesar das tensas disputas entre suas diferentes expressões políticas nas instituições da República e na imprensa, a burguesia conserva um elemento de coesão nada desprezível: uma agenda macroeconômica de ajuste fiscal e contrarreformas que, no essencial, vem sendo mantida desde o segundo governo Dilma e, a partir do golpe de 2016, radicalmente aprofundada.

As melhores análises também nos informam que o governo Bolsonaro-Mourão escancara cada vez mais seu desprezo pelas regras do assim chamado Estado Democrático de Direito e se impõe como um governo explicitamente calcado na ameaça e na força. Além disso, não podemos esquecer que, muito antes de ser revelado o vídeo da famigerada reunião ministerial, não se poderia esperar outra coisa de uma chapa que, composta por indivíduos assumidamente golpistas, violentos e autoritários, chegou ao Planalto pela fraude.

Os mais atentos lembram ainda que mandatos presidenciais que começam e terminam nos prazos legalmente previstos são exceção na história republicana do Brasil e, ademais, estamos na América Latina, região marcada por numerosos golpes que atravessam o século XX e continuam ocorrendo em pleno século XXI.

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Uma questão central, no entanto, é ainda pouco debatida no seio do nosso movimento: que fazer? Aqui nos deparamos com três grupos. Como já fizemos alusão aos “marxólogos autônomos”, mais preocupados em exibir sua erudição, evidenciar a falência de toda a esquerda e conservar seus ares de superioridade do que com questões mais prosaicas como a luta dos trabalhadores e suas tarefas políticas para o atual momento, passemos ao segundo grupo.

Trata-se de uma conhecida esquerda liberal que, apesar das inúmeras evidências contrárias nos últimos anos – desde o golpe que usurpou o mandato de Dilma Rousseff até a eleição de Bolsonaro em uma campanha alimentada por fake news, passando pela condenação e prisão de Lula – continua apostando todas as fichas em uma única trincheira, a institucionalidade burguesa.

Inscrevendo suas ações nos marcos da (des)ordem estabelecida, as divergências internas desse campo se restringem a questões como quem serão os candidatos nas próximas eleições. Alguns valorosos companheiros, profundamente bem intencionados, acreditam até que retirar candidaturas específicas em nome de alianças mais amplas para o pleito municipal que se avizinha é a grande resposta encontrada para fortalecer o movimento dos trabalhadores e conter o avanço do fascismo. O fato de que os trabalhadores precisam lutar desde já para sobreviver contra um governo genocida em meio à maior pandemia dos últimos cem anos e que, sem essa luta, as próprias liberdades democráticas que ainda restam podem não resistir até o final do ano, é solenemente ignorado.

Porém, temos também um terceiro grupo, ainda minoritário no interior dos movimentos dos trabalhadores. Este campo defende basicamente que é necessário combinar a luta no terreno institucional com a luta de massas. Mais do que isso, as próprias iniciativas institucionais só têm sentido se contribuírem concretamente para colocar os trabalhadores em movimento e elevar a consciência política de toda uma classe, considerando sua heterogeneidade.

Como afirmara Lênin,

De tudo isso se depreende imperiosamente a necessidade – uma necessidade absoluta – que tem a vanguarda do proletariado, sua parte consciente, o Partido Comunista, de recorrer a manobras, acordos e compromissos com diversos grupos proletários, com os diversos partidos dos operários e dos pequenos patrões. Toda a questão consiste em saber aplicar essa tática para elevar, e não para rebaixar, o nível geral de consciência, de espírito revolucionário e de capacidade de luta e de vitória do proletariado. 4

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Afinal, quais devem ser as prioridades da classe trabalhadora na atual conjuntura? Sem nenhuma pretensão de esgotar esta questão, trazemos alguns apontamentos que, se não ajudarem a resolver o problema, pelo menos poderão servir para provocar o debate:

Apesar das graves contendas políticas, jurídicas, ideológicas e sanitárias em curso na sociedade brasileira, a burguesia preserva um núcleo macroeconômico capaz de manter seu bloco coeso para continuar conduzindo uma agenda de destruição total do estado social; a crise e o desemprego que têm castigado os trabalhadores nos últimos cinco anos estão diretamente ligados à radicalização dos pressupostos macroeconômicos neoliberais. Portanto, não faz sentido contar com qualquer setor da burguesia, seja para derrotar o atual governo, seja para construir uma saída da crise que atenda às demandas dos trabalhadores.

Os fascistas estão gostando de ocupar as ruas. Se isso não for parado imediatamente, as consequências serão certamente nefastas. As instituições do Estado já deram suficientes demonstrações de complacência com estas hordas da barbárie. Logo, se faz urgente construir a mais ampla unidade de ação com todos aqueles que estiverem dispostos a organizar brigadas para expulsar os fascistas das ruas, como já tem ocorrido em algumas cidades, a exemplo de São Paulo e Porto Alegre.

Alguns dias não serão suficientes para que a esquerda compense décadas de negligência em relação ao necessário trabalho político junto aos militares e policiais antifascistas. Todavia, todos os esforços para dialogar com esse setor e fortalecer suas posições devem ser realizados com a maior celeridade possível.

A essa altura dos acontecimentos, já está suficientemente claro que o governo federal sabotou as principais orientações da OMS e o pagamento da renda emergencial para colocar em marcha um plano de “imunização por contágio”, que não passa de uma medida para multiplicar o número de pobres mortos por dia e, após se livrar dos mais vulneráveis, apressar a retomada das atividades econômicas. Nesse sentido, a solidariedade militante, a auto-organização dos trabalhadores, a criação de comitês contra o desemprego e a realização de atos políticos nas filas da Caixa Econômica, respeitando os cuidados sanitários, são imprescindíveis.

O novo coronavírus não afetou a política de extermínio da juventude negra nas favelas. Ser negro e favelado no Brasil significa estar permanentemente no “grupo de risco”. Com a pandemia, essa população, que há décadas já vem sendo dizimada pelos tiros disparados pelos mais diferentes governos, vê suas expectativas de vida serem ainda mais reduzidas pela mais completa ausência de condições sanitárias mínimas, como, em muitas casos, o próprio acesso à água. A luta contra a violência e o racismo do Estado é central. O apoio e o fortalecimento dos coletivos que erguem essa bandeira nas favelas e periferias é um dever de todo aquele que se pretende de esquerda.

No momento atual, as demandas mais urgentes do conjunto da classe trabalhadora convergem para uma consigna: FORA BOLSONARO E MOURÃO. Todas as instituições, partidos, entidades e setores políticos que se colocam como obstáculos para essa pauta, se apresentam como cúmplices dos crimes contra a humanidade que este governo vem cometendo. Assim devem ser denunciados o TSE que não cassa a chapa presidencial, o Congresso Nacional que não abre o processo de impeachment, os generais que se vendem por cargos no governo, os delegados que transformam a polícia federal em milícia federal, entre outros.

É necessário construir um Dia Nacional de Lutas em unidade de ação com todos as forças que, não tendo ajudado a elegê-lo, se contrapõem ao atual governo genocida. Como tem estado na moda usar Lênin para justificar posições sectárias e doutrinaristas, deixemos o dirigente bolchevique falar novamente: “Só receiam alianças temporárias, mesmo com elementos inseguros, aqueles que não confiam em si próprios; e nenhum partido poderia existir sem essas alianças”.5

Por detrás de todos os segmentos que alçaram Bolsonaro e Mourão ao Planalto, continuam sustentando este governo ou evitam o confronto com ele, estão os “CNPJs”, ou, simplesmente, as velhas classes dominantes. É com elas que, cedo ou tarde, os trabalhadores precisam acertar as contas. Para que essa hora chegue, boas análises são importantes, mas não são suficientes. Temos que saber quais são nossas tarefas e, sobretudo, cumpri-las.

Uma simples comparação entre as políticas de combate à pandemia do COVID-19 dos países capitalistas e dos países socialistas ou de economia planificada comprova que, mesmo com menos recursos que as grandes potências, é possível proteger a vida acima dos lucros. Cuba, China e Vietnã, por exemplo, estão entre os países que desenvolveram os melhores modelos de contenção do coronavírus e atendimento às suas populações. Está cada vez mais claro para quem quiser ver e não devemos ter timidez em dizer: a saída da crise é anticapitalista. A tomada do poder político pelos trabalhadores é a única forma de salvar a humanidade da morte e da barbárie.

Além do mais, são esses países que mais enviam ajuda humanitária, médicos e suprimentos às nações afetadas pela pandemia. Enquanto isso, os imperialistas realizam exercícios militares, roubo de suprimentos médicos, bloqueios econômicos e tentativas de golpe, como mais uma vez ocorreu na Venezuela recentemente. Mesmo assim, a Venezuela tem os menores números de vítimas por COVID-19 da América do Sul. Já os Estados Unidos, com o maior PIB do mundo e um presidente que recomenda a ingestão de detergente, é o epicentro da pandemia, com o maior número de mortos e contaminados do planeta. Portanto, temos que dizer em alto e bom som: não existe futuro para os povos do mundo que não seja anti-imperialista.

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Não é preciso dizer que tais tarefas não são nada simples. Nas palavras de Rosa Luxemburgo,

A marcha para frente, de importância mundial, do proletariado até a vitória final, não é, com efeito, “coisa tão simples assim”. Toda a particularidade desse movimento reside precisamente no fato de deverem as massas populares, pela primeira vez na história e contra todas as classes dominantes, impor uma vontade própria que só irão realizar passando por cima da sociedade atual, saindo dela. Mas, por sua vez, só podem as massas formar esta vontade numa luta constante contra a ordem existente, nos quadros desta. 6

Algumas de nossas tarefas, as mais difíceis, permanecerão, por algum tempo, impossíveis aos olhos de muitos. Até que a classe trabalhadora, educada em suas experiências concretas de luta, se dê conta de que já houve ocasiões em que ações até então consideradas impossíveis foram realizadas e que impossível mesmo é continuar vivendo sob os pés dos capitalistas.

1 Professor da rede estadual de educação do Rio de Janeiro e membro do Comitê Central do PCB.

2 MARX, K. e ENGELS, F. A Ideologia Alemã: crítica da mais recente filosofia alemã em seus representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e do socialismo em seus diferentes profetas. São Paulo: Boitempo, 2007, p. 539.

3 LOSURDO, Domenico. Fuga da História? A revolução russa e a revolução chinesa vistas de hoje. Rio de Janeiro: Revan, 2004.

4 LENIN, V. I. Esquerdismo, doença infantil do comunismo. São Paulo: Escriba, 1960, p. 83.

5 LENIN, V, I. Que Fazer? Problemas candentes do nosso movimento. São Paulo: Expressão Popular, 2010, p. 71.

6 LUXEMBURGO, Rosa. Reforma ou Revolução? São Paulo: Expressão Popular, 1999.