Tempos atrozes: a dominação de classes no Brasil

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Marcos Corrêa/PR
Empresários saem de reunião com Bolsonaro e vão juntos ao STF

Por: Virgínia Fontes

ESQUERDA ONLINE

Tempos atrozes (1): fios históricos da dominação de classes no Brasil e contradições

Este é um texto para debate e não possui o formato acadêmico, desprovido das clássicas notas de rodapé. Foi redigido às pressas, diferente do tempo da escrita refletida, em função de conversa com o grande amigo Roberto Leher. Resulta porém de muitos anos de pesquisa e de reflexão e se nutre da convivência com pesquisadores aguerridos do Grupo de Trabalho e Orientação-GTO. Está aberto à crítica e é mais permeável ao erro. Esse é o tempo em que vivemos, temos pressa.
Desde a década de 1990 – não por acaso coincidindo com a chamada redemocratização – o empresariado brasileiro começou um trabalho de ‘modernização’ de suas formas de atuação social e política, continuando sua ação já clássica, setorial, junto ao Estado brasileiro, mas ampliando o escopo de sua intervenção, através de APHEs (aparelhos privados de hegemonia empresariais) voltados para convencer e capturar segmentos das classes trabalhadoras. Tiveram a bênção externa, como da AMCHAM-Br (Câmara Americana de Comércio-Brasil). Contavam com a experiência anterior do Instituto de Pesquisas Sociais e do Instituto Brasileiro de Ação Democrática-IPES-IBAD, polos centrais do golpe empresarial-militar de 1964. Essa modernização pós-Constituinte apresentava-se como ‘democratizadora’ da vida social brasileira, pela dinamização da ‘sociedade civil’ que a mídia corporativa ecoava. Muitos integrantes das esquerdas, com baixos teores críticos e enorme fascínio pelo institucionalismo, simplesmente fecharam os olhos para o fato de que a sociedade civil é âmbito – e dos mais sérios – das lutas de classes e que, portanto, não está nem fora nem acima do mercado ou do Estado. Os críticos que desconfiavam das formulações midiáticas – e com razão – muitas vezes se barricaram atrás unicamente da análise de dados econômicos, recusando-se a analisar esse âmbito estranho e complexo. Perdiam de vista parcela fundamental da atividade das classes dominantes.

As entidades da sociedade civil – ou aparelhos privados de hegemonia – se enraízam nos interesses materiais das classes dominantes e das dominadas, penetram o Estado por diversas modalidades e atuam como formadoras de sociabilidades, sobretudo reforçando os setores hegemônicos, mas também contestando e criando contra-hegemonias. Podem ser clubes, jornais, escolas, grupos de estudos, partidos, associações diversas, religiões, etc. Esse é um aporte fundamental de Antonio Gramsci para a compreensão do Estado capitalista. Ora, desde a década de 1990 no Brasil o setor empresarial está no ataque e é preciso reconhecer que venceram. Mas também foram derrotados. Vejamos de perto.

O primeiro ataque aos setores populares, iniciado sobretudo ao longo dos governos Fernando Henrique Cardoso, se deu exatamente nos âmbitos onde fermentavam mais lutas populares. Ocorreu pela implementação de políticas compensatórias semiprivadas (cujo maior exemplo foi o Comunidade Solidária) e pela contrarreforma do Estado, abrindo as porteiras para as práticas privadas maquiadas de públicas, financiadas por recursos públicos, como as Parcerias Público-Privadas, as PPPs. Do lado da base material, reestruturações produtivas contaram com apoio resoluto ao setor privado e aprofundaram o desemprego, o que enfraqueceu as organizações clássicas sindicais e outras. Tais práticas vieram recobertas pelo pós-modernismo, que com muitos passes de mágica pretendia eliminar a verdade dos processos sociais, desvinculando a economia e, sobretudo, a existência de classes sociais das reflexões da população. O resultado? Plugar a economia de forma direta ao empresariado, blindando-a.

Desgraçadamente, parcela das entidades populares acreditou na mágica apregoada pela mídia corporativa e por muitos ‘intelectuais’ de uma ‘sociedade civil angelical’. Do lado do convencimento, os APHEs incidiram diretamente sobre:

– infância e juventude, e pulularam APHEs voltados para ‘mudar a vida’ da juventude brasileira, contrapondo-se às propostas de políticas universais. Na sua ponta mais prática – e pragmática – investiram pouco em dinheiro, mas bastante em propaganda para abrigos, adoção de crianças, cuidados de crianças e adolescentes, até chegarem nas escolas públicas. Doravante não apenas realizariam convencimento, mas também capturariam uma parcela crescente dos recursos públicos através da venda de sistemas, de materiais diversos, de telecursos, etc.

– mulheres e feminismo; lutas antirracistas – outros APHEs mais experimentados no cenário internacional (como as Fundações Ford e Rockefeller, mas se criaram inúmeras entidades brasileiras para isso) tomaram a iniciativa nos dois focos fundamentais de lutas contra opressão, e traziam a novilíngua dos empoderamentos de maneira a contornar a luta pela igualdade, impondo o tema da diferença. Agiram como se fosse possível haver diferença na ausência da igualdade. A desigualdade gera hierarquia subordinação, enquanto o terreno da verdadeira diferença precisa da igualdade. Tratava-se de elaborar e implantar políticas semipúblicas para que tais recursos pudessem ser capturados, além de abocanhar parcela dos recursos de APHEs internacionais através de entidades intermediadoras. São temas explosivos, e não podiam sufocá-los, pois pretendiam ‘convertê-los’, transformando-os de lutas reivindicativas em formas de ‘solicitação e demandas’, apassivando-os. Muitos movimentos aprenderam, na própria luta, o quanto tais ‘amigos’ podem dar abraços de urso; aprenderam a também ‘reconverter’ o sentido da novilíngua, recolocando-a no terreno do enfrentamento ao capital, mas é uma tarefa permanente e cansativa;

– questão ambiental – novamente, terreno de acirradas lutas de populações locais em processo de expropriação e da criação de novas modalidades de valorização do capital através da apropriação das terras ou do aparentemente discreto mercado de carbono. As lutas aqui eram múltiplas, locais, nacionais e internacionais. Outra novilíngua, a da ‘sustentabilidade’;

– por fim, mas não menos importante, parcela não desprezível dos ‘novos intelectuais’ entraria agora a serviço de tais APHEs, nova área de empregos precários para os ‘voluntários’, mas melhor remunerados para suas direções e franqueadora de contatos nacionais e internacionais. A sociedade civil, ou os aparelhos de hegemonia não são apenas empresariais, e muitas organizações se originaram na luta das classes trabalhadoras. Neste texto, destacamos sobretudo a atuação empresarial e seu ataque de longa duração às conquistas populares no Brasil.

Evidentemente essa atuação burguesa não se limitava a convencer a população. Ela também formava seus quadros e lideranças e uma série de APHEs de formação burguesa se consolidou e se expandiu – Instituto de Estudos Empresariais (1984) e seu filhote, o Instituto Liberdade (2003); GIFE – Grupo de Institutos e Fundações Empresariais (iniciado em 1989,formalizado em 1995); Instituto de Estudos do Desenvolvimento Industrial-IEDI (1989); Millenium (2005); Instituto von Mises (2009); Instituto de Estudos de Política Econômica – IEPE/Casa das Garças (2003); dentre centenas de outros, inclusive entidades educativas sem fins lucrativos, como o Insper. Esse ativismo, é sempre bom não esquecer, se soma às entidades mais diretamente setoriais (como as ‘associações brasileiras’ de diversos setores, tal como a Associação Brasileira do Agronegócio-ABAG) e sindicais patronais, como os sindicatos, federações e confederações, cujas precursoras existem há mais de um século. À sombra dessa atuação que se autoproclamava ‘solidária’, cresciam entidades de extrema-direita, muitas financiadas inclusive por empresários que apoiaram o governo PT.

Já nos finais da década de 1990 e na perspectiva da vitória do PT, se intensifica a ação de ‘APHEs de APHEs’, ou agregadores de entidades sem fins lucrativos empresariais, tais como o GIFE – Grupo de Institutos e Fundações Empresariais (1995), seguido pelo Todos pela Educação (2006), etc., procurando atuar como pólos direcionadores da dispersão causada pela fragmentação das atividades de tais APHEs empresariais.

A própria nomenclatura se modificará e deixaram de ser entidades ‘filantrópicas’ para se autodenominarem Investimento Social Privado, ou pelas áreas de Sustentabilidade das empresas e de suas Fundações. Esse conjunto de entidades empresariais sem fins lucrativos revelou-se extremamente engordativo e deu margem a uma extensa criação de novos filhotes – também sem fins lucrativos – voltados para a gestão, para a confecção de programas de educação para todos as áreas, de advocacia e consultoria, vendendo serviços umas à outras. Todas com imunidade fiscal, o que permitia pagar muito mal a seus trabalhadores – preferencialmente voluntários, remunerados a conta-gotas – e assegurar bons rendimentos para seus dirigentes e bons contratos para elas próprias ou suas mantenedoras.

Parecem startups? Não é mera coincidência. O ponto de união ideológico foi o empreendedorismo, que todos os APHEs pregavam e exigiam. Mas é sua prática o ponto nodal: fomentar pelo desemprego, pela legislação e pelo exemplo ‘voluntário’ uma classe trabalhadora desprovida de direitos, de um lado; de outro, transformar recursos e políticas públicas em processos de enriquecimento e lucratividade. Não por acaso, essas práticas os aproximaram das variadas teologias da prosperidade (católicas e protestantes), onde a fé tornou-se empreendimento altamente lucrativo e gerou um empresariado extremamente ativo, inclusive na comunicação, com redes de TV e jornais.

O resultado, porém, foi mais ‘moderno’ do que gostariam. Essa atividade frenética empresarial deslocou os recursos públicos para áreas privadas, impôs a gestão privada no próprio Estado, quando estabelecia parcerias ou pelo convencimento de que era a ‘única alternativa’ e rapidamente aprofundou o desmantelamento das estruturas públicas herdadas da Constituição, assim como devastaram os partidos políticos – inclusive aqueles nos quais se reconheciam. Como o fizeram? Pela aniquilação do papel desses partidos na definição das políticas a adotar após as eleições, o que já estava pré-determinado tanto por contratos passados por governos anteriores, como por redes de relações criadas nos processos eleitorais e nos primeiros momentos pós-eleitorais. APHEs com forte assessoria jurídica sabiam como fazer as leis, que leis precisavam, com quem se coligar no país e contavam com o beneplácito – sob o manto filantrópico – do empresariado local.

Venceram, mas a custa de abalarem as estruturas burguesas de agregação e de concertação entre interesses diversos e contraditórios. Só eram admitidas as variações da mesma música, em defesa do capital em todas as suas dimensões (brasileiro ou estrangeiro). As decisões se deslocavam para as cúpulas dos Executivos (também no nível infranacional, em estados e municípios), como acertos entre ‘empresários’: os da política, os das empresas e aqueles dos APHEs, inclusive religiosos. Restava à boa parte dos parlamentares fisiológicos empreenderem de maneira similar, e aprofundarem iniciativas de apropriação privada de setores públicos, prática que já caracterizava de longa data boa parte dos partidos políticos oficiais, haja visto o clássico ‘Centrão’. Infelizmente, empurrados pela onda empreendedora, acalentados pela aura da filantropia empresarial e pela própria tradição brasileira de apropriação privada do âmbito público, quase todos os partidos enveredaram pelo mesmo caminho, inclusive alguns da assim chamada esquerda.

Em que pé ficava o chão material? Sob os governos Lula e Dilma, prosseguia o livre trânsito dos APHEs no Estado, que chegaram a formular muitas de suas políticas. Não obstante, o grosso dos recursos públicos destinou-se a um projeto de desenvolvimento que envolvia diretamente o mega-empresariado (não por acaso também patrocinador de vários APHEs), especialmente aquele voltado para a exportação de capitais, que, sem nenhum pejo, replicou as práticas internas históricas de truculência em outros países e outras culturas. Isso aprofundou tensões intra-burguesas, pela enorme desigualdade de distribuição de recursos governamentais.

Os resultados da precarização massiva começaram a aparecer. As manifestações populares de 2013 exigiam padrão Fifa nas políticas públicas. Não havia partido que as representasse, e desconfiavam dos partidos existentes – não sem razão. As esquerdas se animaram e se assustaram. Com razão. Mas também as direitas se davam conta de que não tinham os instrumentos clássicos patronais para contenção daquele tipo de massas populares, desprovidas de contratos, sem expectativas outras além de direitos sociais (hospitais, escolas, transporte). Direitos que continuariam negados por definição, aliás.

Se aprofundava o papel da extrema-direita, que de coadjuvante antiga passaria a pautar as direitas seja no embate físico, seja nos slogans antipetistas (anticomunistas, na verdade) e a tentar direcionar o comportamento dessa conjunto múltiplo e disperso de APHEs empresariais (setoriais, think tanks, de políticas públicas, etc.). Arribavam também as congêneres estrangeiras e seus recursos, bases da ascensão da extrema direita internacional, europeias e principalmente estadunidenses. O foco da reorganização empresarial foi a Rede Globo, coparticipante de inúmeros APHEs, assim como sua entidade Fundação Roberto Marinho. Não houve reação política do Partido dos Trabalhadores, que ainda era o maior partido de ‘esquerda’, e sua passividade contribuiu para afastá-lo ainda mais das massas endividadas por suas políticas (consignados, FIES, etc.) e horrorizadas pelo espetáculo da corrupção, submetidas às violências militares, policiais e milicianas… Começava a naturalização do horror.

A Lava-Jato operaria a divisão cirúrgica entre os diferentes setores burgueses, segmentando os megaempresários sob risco (investigação) dos demais, cujas práticas corruptas não estavam investigadas e satanizando a Petrobras. O megaempresariado, que até então nadava de braçada entre a compra eleitoral de partidos inteiros ou de candidatos, se viu enredado e não contaria com o apoio de suas congêneres concorrentes. Nem suas entidades associativas nem as empresas de mega concentração de capitais desapareceram, como parecem supor os que imaginam que só a Odebrecht era multinacional de origem brasileira. Apenas tornaram-se mais discretas para o grande público. Alguns APHEs continuam a reagrupá-las, como o IEDI e a Fundação Dom Cabral. O peso crescente da aliança Sergio Moro-Rede Globo e a ascensão da pauta da extrema direita calcada no tema da corrupção redirecionava o conjunto da política brasileira.

A meu ver, o golpe de 2016 não resulta de uma programação prévia, mas de um embate de forças desencontradas. É claro, toda a parafernália ‘legisferante’ e o próprio golpe tiveram o aval dos EUA de Barack Obama, então em campanha por Hillary Clinton. A vitória de Trump levou Temer a realizar cenas explícitas de subalternidade e humilhação, por ter apoiado Hillary. A ascensão da extrema direita nos EUA teria impactos no Brasil, por canais diversos. Vale observar que os contatos desses diferentes setores empresariais, do universo político, jurídico, militar e policial com o cerne do imperialismo estadunidense parecem ser muito variados (diferentes setores e órgãos dos Estados Unidos), intensos e de longa duração. A crise econômica se tornou explícita desde 2014 e acelerou em 2015 – era pequena ainda, mas suficiente para que as exigências de recursos públicos para o andar de cima se tornassem mais imperativas. Todos os setores e escalas empresariais queriam as mesmas benesses até então reservadas aos maiores. Megaempresários amordaçados e com os bolsos contidos; parlamentares mergulhados até o pescoço em múltiplas denúncias, da corrupção à violência; Lava-Jato a pleno vapor para atingir o PT. Todos estes apoiaram a ascensão pública da extrema direita e sua intensa disseminação. Entre os militares das Forças Armadas, o coração batia do lado da extrema direita e o bolso (inclusive institucional) estava ainda em dúvida quanto ao que seria a melhor oferta.

O golpe sobre Dilma resulta da tentativa de estancar a sangria, pavimentando a estrada para a entrada triunfal do PSDB de Aécio Neves. Não foi entretanto o que ocorreu. Foi um golpe e todos sabiam. Isso significa que burguesias, parlamentares, legislativos, forças armadas e partidos nos impuseram trilhar uma estrada sem retorno. Como uma bola de neve lançada de uma montanha, sabe-se que direção nela imprimiram – o ataque concertado aos fundos públicos e aos trabalhadores. Mas, bolas de neve facilmente se transformam em avalanches, onde a direção segue a mesma, mas a devastação é crescente e não há quem controle.

Praticamente todos os APHEs de convencimento silenciaram. Toda a sua verborragia novilíngua de ‘mudar tudo’, de contribuir para uma ‘mudança’ servia agora como a velha língua autocrática, onde o que macaqueavam antes tornava-se uma face temível. Restava uma casca institucional. A moeda de adesão megaempresarial foi coparticipar da bola de neve: extorquir direitos dos trabalhadores, conter qualquer veleidade de manifestações massivas, reprimir a fundo (e isso foi visível nos pós-2016, com o aumento brutal da violência nos Estados, onde as lutas não cessavam). Mas foram mais longe, assegurando o avanço da expropriação de bens públicos (privatizações) e da natureza (sobretudo tentando a legalização da grilagem– feita de maneira incompleta sob Temer), a garantia da manutenção do pagamento da dívida pública e do austericídio, na expectativa de que assegurariam o jorro de dólares do exterior e, enfim, o crescimento econômico e maiores lucros. Tampouco foi o que aconteceu.

A eleição de Bolsonaro é resultante dessas contradições, e não parece resultar de um projeto longamente maturado. O fascismo de Bolsonaro resultou dessa avalanche. Não era o desejado, mas o possível para o andar de cima. Sem dúvida, tinha apoiadores antes e, também sem dúvida, sua base social crescia exatamente no mesmo compasso do capitalismo brasileiro: de um lado a extrema concentração de renda e de capitais inaugura uma filantropia empresarial destinada a jugular as políticas sociais; de outro, enorme quantidade de braços armados, com ou sem hierarquia, prontos para trucidar os setores populares: militares, milícias, policiais militares, civis, seguranças armados urbanos e rurais, madeireiros, garimpeiros, etc.

A mobilização anti-corrupção de uma massa de pequenos capitalistas corruptos é impressionante. A avalanche seguia seu curso e os que apostavam em controlar Bolsonaro se dariam conta de que não era possível, pois não havia retorno. Isso vale, por exemplo, para a Rede Globo, que pretende ainda controlá-lo, e silenciou sobre suas práticas e suas intervenções de cunho fascista durante a campanha eleitoral. Não havia sequer polarização de fato, pois o voto no PT não expressou desde os anos 1990 nenhum contestação ao capital, mas a tentativa de amansá-lo, de humanizá-lo. A novilíngua do ‘mudar tudo isso aí’ dos APHEs chegava enfim à sua face trágica: convertera a fala popular da necessidade de mudar o capitalismo em sustentação do fascismo.

Jair Bolsonaro teve apoio eleitoral aberto (e discreto) do empresariado, da mídia proprietária em sua integralidade, das FFAA, de sua base social armada (milicianos e policiais), dos setores mais conservadores das igrejas (católica e protestantes), de setores das classes médias e de setores populares.

Tempos atrozes (2): as contradições atuais

Como afirmamos na parte 1 deste artigo, o fascista Jair Bolsonaro teve apoio eleitoral aberto (e discreto) do empresariado, da mídia proprietária em sua integralidade, das Forças Armadas, de sua base social armada (milicianos e policiais), dos setores mais conservadores das igrejas (católica e protestantes), de setores das classes médias e de setores populares.

Os empresários apoiavam de fato o fascismo ou a trajetória de mão única que entraram não permitia alterações? Impossível ter certeza, e há muitas interpretações. Sua base empresarial inicial era composta sobretudo por burguesias grandes e médias, enquanto as megaburguesias, com escassas exceções estavam ausentes, ao menos publicamente. Seus apoiadores eram principalmente oriundos do comércio varejista, como Localiza, Havan, Coco Bambu, etc. Alguns megacapitalistas o apoiaram publicamente, como Rubens Ometto, da Raízen-Cosan, associação entre grande empresa brasileira e a multinacional Shell. Rapidamente Bolsonaro teve o apoio da UDR e, com ela, da Frente Parlamentar da Agropecuária, mas não teve o endosso explícito da Abag. Os bancos foram os últimos a entrar na procissão empresarial bolsonarista. Uma vez eleito, toda a burguesia brasileira passou a fazer bloco com Bolsonaro, mas não a fazer declarações explícitas de apoio.

Bolsonaro teve ainda apoio da extrema direita brasileira e estadunidense, especialmente aquela ligada a Donald Trump. Teve apoio de grupos internacionais para a montagem de sua ‘comunicação’ e formação das bolhas pelo whatsapp, mantendo o sequestro de milhares de informações à venda por variadas empresas de telefonia e outras. Sua fonte intelectual? Olavo de Carvalho, que rapidamente passou a oferecer cursos gratuitos para os policiais no Brasil, além de lançar filmes, jornal e programas de TV. Está em ativismo frenético. Soma-se a ele o ranço militar truculento de 1964, que se conservou e jamais foi desalojado de seus nichos. E o apoio aberto e interessado de Donald Trump, sobretudo com olhos para o petróleo e a Venezuela.

E finalmente, e o mais importante, teve apoio popular – Gramsci lembra que, quando os subalternos perdem sua direção, ficam desnorteados e são presas exatamente dos ensandecidos que apregoam ser ‘contra tudo’… e falsificam a ira popular (parafraseando Francisco de Oliveira, quando denunciou Collor de Mello).

Todos imaginávamos que imediatamente após a posse (e muitos, até mesmo logo após a eleição) começaria a perseguição imediata a toda a esquerda. Não foi o que ocorreu. O que houve foi a devastação sistemática e frenética – por mudanças constitucionais, leis, medidas provisórias e o intenso uso de medidas administrativas para devastar por dentro toda a institucionalidade vigente. A casca perdurava, seu conteúdo e teor já são outros. Legislativo e Judiciário parecem lutar apenas pela casca, desdenhando completamente de seu conteúdo. Ou pior, concordando com o novo baixo teor, em especial a desidratação democrática promovida por Paulo Guedes.

Numa das primeiras medidas, Bolsonaro fechou conselhos – e aqui, houve pequena reação de alguns APHEs. Em mais de 3 mil assinaturas de entidades associativas populares em abaixo assinado contra o fechamento dos conselhos por Bolsonaro, figuravam mais ou menos 60 APHEs, dos quais uns 10 eram significativos (como o Instituto Alana ou o Instituto Ethos, ambos integrantes do GIFE). De resto, notícias divulgadas pelo GIFE fazem discretas críticas ao comportamento de Bolsonaro, sempre silenciando totalmente sobre seu projeto econômico.

A revista Piauí escancarou a crítica. Ela é de um dos irmãos artistas da família Moreira Salles, o outro sendo o criador da Serrapilheira, APHE criadora de Fundo Patrimonial para a produção de ciência básica, que é uma as formas de privatizar a decisão sobre a produção científica. A Serrapilheira atualmente apoia a divulgação dos vídeos de Atila Iamarino. Mas os irmãos artistas não participam da gestão do Unibanco-Itaú… e é difícil deduzir de suas posições algo sobre o andar de cima.

Quais as contradições mais imediatas?
1) A fraqueza de Bolsonaro – fraqueza de sua sustentação institucional, de ausência de partido, incapacidade de entregar o crescimento econômico prometido, etc. – se converte na principal força de impulso do movimento da avalanche iniciada há 4 anos. A conversão de fraqueza em força aumenta com a pandemia, que passa a ser responsabilizada pela crise, como se o vírus não atingisse outros países e ‘esquecendo’ que o crescimento econômico rasteja há vários anos. A demissão de Mandetta, que caíra no gosto popular, e a de Sergio Moro, o ‘paladino lavajatista’ não provocaram o repúdio imediato a Bolsonaro e levaram a uma divisão entre seus apoiadores que, entretanto, continuam a sustentar Bolsonaro. Por outro lado, os bandos armados díspares da base bolsonarista não tiveram até aqui atividade política relevante explícita (salvo o motim dos policiais em Fortaleza e o recente e caricato grupo dos 300, acampados em Brasília sob barracas padronizadas vendidas pela Havan, de propriedade do véio da Havan, fervoroso adepto de Bolsonaro). Seguem comprando e traficando armas e têm direito – apesar da tentativa de controle do Exército, vetada por Bolsonaro – a uma grande quantidade de munições. As informações são escassas nesse terreno. Jagunços e milícias continuam atuando principalmente nos campos e cidades, aumentando a truculência proprietária no país. Sob a pandemia, mostrou-se cruamente a incapacidade de coordenação nacional do governo Bolsonaro, levando-o à exasperação da convocação de seus aliados e ao desgaste dele decorrente.

2) Sua base social – familícia e bandos armados, incluindo as FFAA – segue a seu lado. Essa é sua força real, sua base efetiva. Diferentemente de 1964, quando a hierarquia militar atacou o próprio Exército, amputando sua base legalista, dessa vez um capitão poderia subordinar a alta hierarquia, pela adesão ou… pela violência. Ao que tudo indica, as FFAA aderiram e se mantém próximas do ideário bolsonarista – como visto pelo texto do vice-presidente Mourão divulgado dia 15/5/20 no Estadão, que reafirma seu compromisso com todas – TODAS – as linhas principais de enfrentamento que Bolsonaro está realizando. É essa base social de proposta, teor e comportamento fascistas – engordada por comerciantes e alguns empresários bolsonaristas – que promove carreatas da morte. Barulhentas, desagradáveis, não são muito numerosas. Não temos pesquisas mais claras da composição desses grupos, e muitos se vestem e se apresentam como militares, mas não sabemos a que setores pertencem, pois tendem a ocultar a informação.

Sob a pandemia, essa base social é incompetente, preparada que está apenas para atacar e não para assegurar solidariedade. Milícias atuaram no Rio de Janeiro nas carreatas da morte e promoveram ameaças às populações, para impor a retomada das atividades econômicas. Defrontaram-se, em alguns casos, com comandos do tráfico, que ao contrário, chegaram a impor toque de recolher em algumas regiões.

3) O empresariado está construindo novas entidades, provisórias, a cada dia, como o Conselho Superior Diálogo pelo Brasil, substituto bolsonariano do CDES do governo Lula, montado às pressas em março de 2020, filhote do ativismo bolsonarista de Paulo Skaf na FIESP que lançou em finais de 2019 o Diálogo pelo Brasil. Ou ainda o Coalizão Brasil constituída por entidades associativas (APHEs) de defesa dos interesses setoriais, aparentemente em disputa com a FIESP, que esteve com Bolsonaro na semana passada e foi com ele ao STF, para lamentar a morte de CNPJs e despreocupar-se com os CPFs… Na semana seguinte, dia 14 de maio de 2020, outra visita espalhafatosa de empresários a Bolsonaro, dessa vez em nome direto de suas próprias empresas (e não de entidades associativas), acompanhados de Skaf, sempre para exigir mais e mais recursos e atenção pública para seus interesses particulares.

As declarações empresariais, entretanto, foram de apoio a Paulo Guedes, à sua política e, sobretudo, à retomada do trabalho em curto prazo e ao austericídio anterior. Há diferenças entre eles? Seguramente e há declarações com posições diversas vindas de personalidades ligadas a banqueiros e a setores econômicos, como Armínio Fraga ou Pérsio Arida. Também a campanha levada adiante pela Rede Globo ou pelos jornais Folha e, com menor ímpeto, Estadão, mostra severas divergências com Bolsonaro e… apoio à sua política econômica. Nas organizações empresariais setoriais não estão imediatamente visíveis maiores diferenças e, até onde é possível enxergar, ainda estão com Bolsonaro. Há diferenças no agronegócio, que há muitos anos não é mais apenas agro, mas reunião de indústrias diversas (mecânica, química, produção alimentar), proprietários de terra e grandes investidores. De um lado, a Abag representa os mega e conta com a Globo e, de outro, a UDR, que expressa o lado mais atrasado e clássico da truculência rural brasileira, na figura de Nabhan Garcia. Mas, apesar das diferenças, seguem juntos na Frente Parlamentar da Agropecuária…

Há aqui uma característica a a ressaltar: nos anos recentes o empresariado apoiou abertamente movimentos de mobilização popular de extrema direita, de um anticomunismo primitivo e feroz, antidemocráticos na forma e no conteúdo. Historicamente, sua tendência era evitar sequências de manifestações. Em 1964, a Igreja Católica liderou a marcha das mulheres e, após o golpe, houve a campanha de doação ‘ouro para o Brasil’ e, em seguida, a ditadura empresarial-militar evitou mobilizações e manifestações, como fizeram os empresários entre 2015 e 2016 e como prossegue fazendo Bolsonaro. Sua histórica truculência, mesmo se envelopada de filantropia, aproxima parcela do empresariado na atualidade de manifestações fascistas.

A crise econômica aprofundada pela pandemia abre enorme incógnita pela frente, uma vez que o isolamento social impossibilita as manifestações populares e deixa a suposição de que somente bolsonaristas se expõem à contaminação, por não acreditarem nela. No entanto, amplos setores de trabalhadores estão à frente do enfrentamento à covid-19, a começar por todos os trabalhadores da saúde e pelos que asseguram produção essencial e abastecimento.

4) E as entidades empresariais sem fins lucrativos, de teor mercantil-filantrópico? Esses APHEs continuam a fazer o mesmo de antes, agora intensificadamente com a pandemia – já recolheram, em campanhas de doação, mais de 4 bilhões de reais, que não se sabe exatamente ao que se destinarão. Estão atuando, junto com algumas prefeituras, governos de Estado, igrejas e entidades populares, no miolo dos bairro populares, fazendo doações de cestas básicas, máscaras e álcool gel. Prosseguem, portanto, devastando o que ainda resta de possibilidade de uma política unificada para os setores populares, fragmentando e dispersando os recursos que amealham de grande parte da população, para garantir suas bases específicas de atuação (muitos atuam no entorno de suas empresas ou em regiões próximas da moradia de seus trabalhadores) e tentar impedir que saques e rebeliões ocorram. Numa mão, a filantropia interessada que se nutre de fundos públicos e devasta políticas universais; na outra mão, a pressão genocida da volta rápida ao trabalho, da rapina sobre direitos, sobre a propriedade pública (especialmente a terra) e sobre os fundos públicos.

5) GOLPE? É possível um golpe, seja de Bolsonaro, seja das FFAA, com ou sem Bolsonaro? Sim. No entanto, o golpe retiraria exatamente esse elemento de fraqueza convertida em força de Bolsonaro, caso seja desencadeado pelas FFAA contra Bolsonaro. Caso seja desencadeado por Bolsonaro, ao que tudo indica por enquanto, contaria com o apoio das FFAA e introduziria elementos fascistizantes no próprio regime, e não apenas em suas declarações de intenções. Todas as previsões serão vãs, embora trágicas, neste caso. Assim, o mais provável é a continuidade da devastação da democracia e dos direitos de toda a sociedade através da associação Bolsonaro+FFAA. Tudo dependerá das condições de saída da pandemia e da impossibilidade já evidente de que este governo – e Paulo Guedes – de assegurar o crescimento e o mundo mágico dos investimentos e do crescimento dos lucros.

6) A base eleitoral de Bolsonaro segue alta – não foram desmontados os esquemas de convencimento via bolhas e via whatsapp, apesar de intensas campanhas contra fake news, não se desmantelaram as redes e contida a replicação automática. Os debates parlamentares continuam agindo na “casca”, sem atacar o cerne do problema. Pior ainda, a familícia montou eficiente esquema de divulgação, com lives semanais, encontros na porta do Planalto, reuniões e cultos com pastores e padres que mantêm a proximidade de Bolsonaro com boa parte de seus eleitores. A pandemia, ao trazer a exigência de recursos para os vulneráveis, torna Bolsonaro o “pai” dessa nova renda… Não obstante, há mudanças importantes no cenário político, uma vez que grande parcela dos governadores desconsiderou as pregações genocidas de Bolsonaro e tentou agir para enfrentar a pandemia, apesar da descoordenação federal. Rupturas importantes, como a do governador-empresário João Dória (SP), e do candidato a fascista substituto Wilson Witzel (RJ) indicam reposicionamentos empresariais não explícitos. O governo Bolsonaro declarou guerra aos dois, seja no plano eleitoral e econômico, caso de SP, seja acrescido do uso de milícias efetivas, com digitais judiciárias, no caso do Rio de Janeiro. Crescem tensões no interior das direitas políticas, e há de incluir o comportamento de Ronaldo Caiado (GO), explicitando diferenças mesmo sem romper abertamente com Bolsonaro. Ainda aqui, os programas econômicos se mantêm similares.

7) O apoio popular – nazismo e fascismo não cresceram por serem os alemães e italianos especialmente inclinados ao racismo e ao horror, mas porque encontraram solo devastado, em que períodos de intensa crise econômica e social ocorreram em paralelo à destruição violenta da esquerda ou de seu transformismo, quando grupos inteiros mudaram de posição na guerra de classes, como mostrou Gramsci. O nazifascismo excita a que os subalternos, em vez de enfrentarem as condições que criam a desigualdade, atuem como aqueles que os violentam no cotidiano. Tortura e assassinatos de jovens, negros e mulheres populares jamais foram efetivamente enfrentadas. Ainda que persista apoio popular não desprezível a Bolsonaro, ele não se elevou ao longo do seu governo e a resistência a ele cresceu em todos os setores sociais. A proposta genocida de Bolsonaro atinge duramente os setores populares, que têm seus familiares e próximos atingidos (e mortos) pela covid, além de ficarem inteiramente desprovidos de serviços de saúde nas capitais com superlotação de hospitais e enormes filas. Vivem na pele o crescimento das crises sanitária, funerária e dos cemitérios. E não contam com um política ágil e consistente de apoio econômico. O pós-pandemia provavelmente trará intensas lutas sociais.

8) Tampouco os partidos de esquerda conseguem se tornar verdadeiros partidos, com atuação social intensa como os tempos exigem, e atuação parlamentar consistente. Os bons parlamentares com que contam os partidos têm de enfrentar praticamente sozinhos o bolsonarismo, sem trabalho coletivo, resultando em excesso de atividades parlamentares que os devora. Mesmo assim, movimentos sociais e partidos de esquerda desenvolvem intensas atividades de solidariedade, premidos pelas urgências. Já a direita e extrema-direita, ambas também integrando o centrão, continuam agindo no balcão de negócios (que está longe de se limitar ao imediato toma-lá-dá-cá imediato, e envolve também empresariados de diversos portes, em escala nacional, estadual e municipal). Enfrentam Bolsonaro, por vezes, mas para assegurar a mesma política econômica. As tensões estaduais ainda não se encaminharam para recomposições parlamentares ou partidárias.

À guisa de conclusão inconclusa, pois falta uma avaliação das condições internacionais – as contradições crescem, e perdura o espectro de fascismo. As divisões entre grupos de extrema direita e direita seguem aprofundando a devastação da avalanche que provocaram. Somente Bolsonaro, a meu juízo, tem condições de escalar para o fascismo, enquanto as Forças Armadas tendem a uma autocracia ditatorial brutal, abafando os movimentos mesmo que de apoio. Embora o enfrentamento do fascismo seja o mais urgente, não pode haver contemplação com as possibilidades ditatoriais declaradas por militares.

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