Ditadura do capital x democracia burguesa

imagemJoão Dantas – militante do PCB de Pernambuco

A sociedade burguesa moderna, que brotou das ruínas da sociedade feudal, não aboliu os antagonismos de classe. Não fez mais do que estabelecer novas classes, novas condições de opressão, novas formas de luta em lugar das que existiram no passado. Entretanto, a nossa época, a época da burguesia, caracteriza-se por ter simplificado os antagonismos de classe. A sociedade divide-se cada vez mais em dois campos opostos, em duas grandes classes em confronto direto: burguesia e proletariado. (Marx e Engels: Manifesto do Partido Comunista)

O título desse texto, colocado dessa forma, parece expressar uma contradição entre duas formas aparentes de dominação política. Duas formas aparentes porque elas se explicitam de formas diferentes, se “imagetizam” na consciência de um povo de modos particulares. O objetivo desse texto é de oferecer uma pequena reflexão para a compreensão de que tais formas de dominação, embora diferentes na forma, são idênticas no conteúdo.

Nos dias atuais, as palavras “ditadura” e “democracia”, de tão repetidas por diferentes setores da sociedade, parecem mais palavras vazias, sem significado concreto principalmente para milhões de brasileiros que hoje são obrigados a disputarem entre si as míseras oportunidades que o “comportamento empreendedor” pode produzir. Vale lembrar que, para as quase 40 milhões de pessoas trabalhando na informalidade, sem garantias de proteção do trabalho. Tal comportamento significa abrir mão da própria humanidade, das relações cotidianas que podem gerar algum prazer e paz, com o objetivo único de conseguir condições para satisfazer aquelas necessidades mais básicas do corpo: se alimentar e ingerir água. Notem: aqui sequer me referi à necessidade do descanso, de dormir.

Até agora, falei desta população em termos genéricos. Poderia usar as mesmíssimas palavras para buscar compreender a situação das pessoas em diversos outros países do mundo, sobretudo os que enfrentaram um passado recente de colonização e escravidão, como o nosso. Porém, a constatação de que a cultura dominante no Brasil produziu uma confusão ideológica e de identidade sem precedentes me levará a reafirmar algumas coisas que na cabeça de uma pessoa organizada e consciente (de que é da classe trabalhadora) podem parecer obviedades. Como a palavra obviedade chega a ser irônica na sociedade que opõe artificialmente a aparência à essência das coisas, farei um breve percurso de caráter esquemático, resgatando muito caricaturalmente alguns dos grandes acontecimentos que levaram o povo brasileiro a ser o que é hoje.

Em primeiro lugar, o Brasil foi colonizado por europeus que viviam numa Europa que começava a percorrer o destino da revolução burguesa contra a sociedade feudal, uma sociedade em que quem não era da nobreza, do clero ou senhor feudal não era considerado um ser humano. Era a sociedade em que a riqueza era a própria terra, portanto imóvel, que pertencia aos nobres, senhores feudais e clero. O servo era preso à terra que pertencia a vocês já sabem quem. Nesse ínterim, surgiu uma classe comerciante bastante cansada de ser submetida a altos tributos ao comercializar pelos feudos. Essa classe queria liberdade para a atividade mercantil, queria novas rotas de comércio livres da opressão feudal. Com as primeiras navegações, patrocinadas pelas coroas portuguesa e espanhola, os homens dessa classe se aventuram pelos oceanos como portadores da vontade de Deus. Porém, o desejo iluminista presente nas reivindicações de liberdade desta classe não ultrapassou os limites das práticas mercantis, de tal forma que não fez diferença o fato de que nos continentes que “descobriu” já existiam seres humanos tão bípedes, tão desenvolvidos e tão espertos quanto. Não custa lembrar que na cabeça de um europeu do século XV, a humanidade era a Europa e pronto. Portanto, servidão, escravidão, genocídio, mutilação de corpos, mentes e histórias de homens, mulheres e crianças de povos originários e pessoas de pele negra, marrom e amarela não eram consideradas coisas imorais, antiéticas, anti-cristãs, perversas, horripilantes, nojentas, absurdas, dignas do inferno sangrento da revolta popular etc. Afinal, não se tratava de seres humanos e filhos de Deus. Digamos que isso não tem um papel menor na constituição da “consciência de classe” da burguesia.

Parece insano no século XXI essa consciência estar tão presente. Insano pode parecer às inúmeras pessoas que vivem sem fazer o próprio viver, pois vivem uma vida pensada e organizada não por si mesmas, mas pela classe que faz essa consciência perpetuar-se porque tem ― comprou com dinheiro ― toda a parafernália maquinal necessária à produção das mercadorias mais demandadas do momento, tem as terras de onde vem o minério para produzir as máquinas e para a produção da agricultura baseada na monocultura em larga escala. Por ter tudo isso, tem também muita facilidade de participar da política como mandatário, diretamente ou por procuração, o que dá também grande controle do território urbano, sendo capaz de especular preços para zonas específicas, bairros, ruas, a empresa de saneamento, a segurança para a zona rica e outra segurança para a zona pobre. O espaço em si custa dinheiro. Quando se detém o poder econômico e político, pode-se comprar tudo. Pode-se até permitir que o presidente do país em que investe seu capital fale abertamente que sua resposta para o problema da população estar morrendo na sarjeta é: “e daí?”.

Pode parecer insano às pessoas que são vítimas ― e nesse quadro se inserem também inúmeras pessoas amantes da leitura, do cinema, das artes em geral, da academia e da democracia ― deste sistema que ele seja dividido em classes sociais e que o espaço que podemos medir com régua é estupidamente segregado com base nisso. Pode parecer insano para elas que a classe empossada no poder não se importe realmente com elas. Que a vida delas equivale a uma mercadoria. Que se essa mercadoria se perder, outras serão produzidas. Que se a pandemia fizer-lhes um pedaço de carne no caixão, essa classe permite e está permitindo que assim o seja. Porque aquela mesma lógica da sociedade feudal, embora com enormes transformações ao longo dos séculos, continua dividindo o país ― a humanidade, dado que é um poder global: eis o que é globalização ― em humanos e não-humanos, em negros e não negros, em classe perigosa e classe com poder.

Chama-se ideologia, ligada aos aparelhos ideológicos, como as instituições, a grande mídia, as igrejas, revistas acadêmicas prestigiadas, Hollywood, Big Brother Brasil etc., o que impede que também essas pessoas tão esclarecidas percebam que seu intelecto, no fundo, só vale enquanto ele for rentável no processo de reprodução ― de dar continuidade, fundo intelectual à ― ideologia burguesa, à sociedade capitalista.

Portanto, escolho meu povo humilde, que mora na minha rua, que entrega água o dia inteiro e à noite vira uma garrafa de cana. Estas pessoas são mais profundamente vítimas, pois são as mais expostas à segregação valorativa do espaço. A ideologia predominante nos nossos dias ― a neoliberal, que na verdade é outra palavra para liberal ― faz com que estas pessoas se lancem numa busca por tornar-se o empreendedor 4.0. É a pessoa que, mesmo estando com a coluna torta, com infecção intestinal e com dores de cabeça que não a deixam dormir, vai buscar levar-se ao esforço máximo simplesmente para, novamente: comer e beber. Estas pessoas estão morrendo como pedaços anônimos de carne, todos os dias, e bem antes dessa pandemia.

Nas favelas dominadas pelas milícias, onde “a polícia vai mirar na cabecinha e fogo” (Witzel), o povo sabe que nem faz mais diferença o jovem negro sair de casa com todos os seus documentos no bolso. Sabe que não importa mais se ele estiver saindo para ir trabalhar, estudar, jogar bola, namorar, ir na lan house ou traficar. Esse jovem é um alvo, é um perigo, é um elemento a ser eliminado da sociedade. Se ele for honesto, representa despesa para o Estado; se ele for um criminoso ― como todos os estereótipos (ideologia) apontam ― ele está no seu merecido lugar e, também, não vai chocar a amada gente dos condomínios e dos bairros de gente decente se ele for barbaramente assassinado pela polícia ou pelo próprio tráfico. A segregação barbarizante, o apartheid brasileiro, continuará produzindo o tráfico.

As pessoas minimamente mais confortáveis acreditam piamente, com uma fé digna de um cristão da Idade Média, que vive a sociedade dos valores da liberdade, da democracia, da igualdade. Muitas vezes, produz-se em mim um ódio visceral destas pessoas, pois elas sequer se enxergam como exploradas. Querem ser exploradoras. Essa ideologia de merda preenche as mentes até de pessoas negras, que não são as que tenho em minha mente no momento, que são pessoas brancas. No final das contas, a clara compreensão de que a ideologia é tão fortemente enraizada entre os trabalhadores de uma sociedade dividida entre exploradores – explorados – explorados/humanos – não humanos me faz perdoar estas pessoas e querer ao menos que elas sejam, como dizia Lênin, no mínimo companheiras de viagem. No entanto, não são. E muito provavelmente serão as primeiras a praguejar a favor da liberdade, da democracia e da não violência quando a parcela de trabalhadores mais explorada e revoltada ― o meu povo ― iniciar um processo violento de tomada de poder em que cabeças serão arrancadas e o terror revolucionário preencher as ruas do Brasil.

A luta necessária hoje em dia se faz com poucas pessoas, pessoas da classe explorada mesmo, mas que foram capazes de “suspender” o grosso da ideologia liberal e pôr as mãos na massa. Essas pessoas foram capazes de superar parcialmente a ideologia liberal porque se organizaram politicamente. Porque entrou em um coletivo do bairro, porque entrou num movimento de luta por moradia, porque entrou num movimento de luta pela reforma agrária, porque entrou num partido político revolucionário, constituído nas lutas dos movimentos populares. É o meu caso. Eu, com minha cabeça de 13 anos de igreja neopentecostal, filho de uma valorosa dona de casa e um valoroso caminhoneiro, nunca conseguiria sem ter entrado na União da Juventude Comunista (UJC), coletivo nacional de juventude do Partido Comunista Brasileiro (PCB), onde permaneço continuamente em formação política.

Foi a partir daí que fui capaz de compreender que a democracia burguesa é, na verdade, a ditadura do capital. Do Grande Capital Internacional, do Imperialismo, do FMI, do renovado processo Neocolonial em curso no mundo. Essa força monstruosa foi capaz de produzir, quase que simultaneamente, golpes de estado sucedidos de ditaduras sanguinárias que duraram décadas em países como o Brasil, Chile, Uruguai, Argentina etc., só para ficar em exemplos da América Latina. Através de muito estudo, fui capaz de compreender que a classe trabalhadora é internacional, ela está presente em todo o mundo, é vastamente numerosa, contra um número extremamente reduzido de famílias burguesas que controlam as finanças, a indústria, todos os grandes setores da tecnologia mais avançada, o poder militar, a agricultura, as mídias e os sistemas políticos. 1% é uma representação numérica que simboliza quase que perfeitamente esta parcela da população, os impiedosos que nos veem como lixo, como escória, como máquinas; são pessoas que só conseguem enxergar uma positividade na natureza: a rentabilidade, o lucro, a subsequente destruição dos recursos naturais.

Contra tal ditadura, somente a Ditadura do Proletariado, dos 99%. Aqui na América Latina, conhecemos a Ditadura do Proletariado como Poder Popular, a verdadeira democracia das massas trabalhadoras do campo e da cidade dirigindo racionalmente a sociedade. São os 99% controlando o poder econômico, político e militar.

Contra o extermínio da espécie humana, somente o socialismo no rumo do comunismo. No entanto, é importante sempre lembrar que a tarefa é urgente, pois corremos o risco de o Planeta nos expulsar e se regenerar integralmente.

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