Trabalho reprodutivo e gênero na pandemia

imagemGabriela Bastos Ribas – Estudante de Ciências Sociais e militante da UJC

O ano é 2020 e estamos bem distante dos carros voadores e da cura de diversas doenças. Diferente do que imaginávamos, lá por meados dos anos 90, vivemos hoje as incertezas causadas por um vírus e a dificuldade em lidar com ele, assim como suas consequências refletidas na economia, educação, no mundo social e político.

Não faz tanto tempo que, aqui no Brasil, conversávamos nos bares sobre o surgimento da covid-19 na China, mas conversávamos com a calmaria e tranquilidade de quem jamais imaginou sua vida mudando tão rápido. Bastou cerca de um mês para que toda a população do planeta se encontrasse diante do mesmo susto.

A covid-19 realmente tem mudado nossa forma de vida. Se antes o programa de domingo era passear pelas calçadas dos grandes centros e observar as vitrines de lojas, hoje o programa de domingo é assistir lives e fazer chamadas de vídeo. Mas dizer que estamos todos no mesmo barco é tapar os olhos para as desigualdades que, cada dia mais, se intensificam. Na arca de Noé não há lugar para todos, na sociedade capitalista também não.

A frase memorável do grande escritor russo, Leon Tolstói, cabe-nos muito bem no atual contexto: as famílias felizes são todas parecidas, mas as famílias infelizes são infelizes à sua maneira. Ora, claro que estamos vivendo o mesmo surto, mas os riscos e as consequências não afetam a todos da mesma forma: se o vírus não escolhe cara, classe ou raça, a sua repercussão escolhe a dedo.

Lembremo-nos do início dessa pandemia aqui no Brasil, quando a primeira morte ocorreu. Cleonice, de 63 anos, era empregada doméstica e foi contaminada pela patroa que havia voltado da Itália com o diagnóstico da doença. A empregadora não contou para Cleonice de seu diagnóstico, muito menos obedeceu as regras de não contato, mantendo a empregada em sua casa num momento de necessidade de isolamento social. A negligência dessa mulher demonstra, claramente, que vivemos uma necropolítica que escolhe a dedo quem pode morrer. Não bastou muito tempo para o prefeito de Belém incluir empregadas domésticas como trabalho essencial antes mesmo do início do lockdown.

O trabalho doméstico, que por muitos anos passou despercebido e invisibilizado, ganhou estrelinhas quando o mundo parou. Com a suspensão das aulas e a obrigatoriedade do isolamento, diversas famílias encontram-se desesperadas. O que antes era despercebido, hoje tornou-se heróico, basta olhar comentários nas redes sociais de pais que dizem “entender” a luta dos professores, pois educar é um processo árduo. Também por isso a classe média alta não consegue abrir mão de seus luxos e privilégios e acaba por manter o trabalho doméstico remunerado na ativa, colocando a mulher trabalhadora em mais uma situação entre a cruz e a espada: correr riscos e garantir o pão, ou ficar em casa sem pão e ainda com riscos.

Trabalho Reprodutivo

O termo utilizado por Silvia Federici, caracterizado pelas relações de cuidado, educação, culinária e manutenção da vida, tem ganhado ainda mais ênfase no momento atual. Uma pesquisa recente do IBGE (2019) sobre a jornada semanal feminina contabiliza que a mulher trabalhadora dedica 53,3h por semana em trabalho, sendo 34,8 horas de emprego remunerado e as 18,5 horas em atividades não remuneradas, como o cuidado da casa e dos filhos. Nessa pesquisa há um fato de extrema importância também: nas famílias onde a mulher trabalha fora, as filhas (84,4%) estavam na responsabilidade do lar, cuidando dos irmãos e fazendo a manutenção das tarefas domésticas.

Essas mulheres possuem uma rotina quase que metódica. Se na vida anterior à pandemia já enfrentavam a extenuante dupla jornada de trabalho, com o isolamento e a suspensão das aulas, a vida da mulher trabalhadora tende a piorar. Elas acordam, levantam, organizam o café, limpam, vão para o trabalho, cozinham, limpam, organizam, voltam pra casa, cozinham, organizam. E parece não ter fim.

Muito se fala sobre o trabalho das enfermeiras, que estão na linha da frente do combate ao novo coronavírus, e sim, são a maioria nesse setor. Justamente pela relação de cuidado que se exige. Mas a verdade é que a maioria das mulheres trabalhadoras compõem essa linha de frente. Elas estão nos supermercados, nos restaurantes, nos setores de limpeza, entre outros trabalhos extremamente marginalizados e precários. Exercendo a função de manutenção da vida, fazendo com que as nossas necessidades sejam atendidas. Seja através do preparo de alimentos ou da própria higienização dos locais abertos.

Enquanto as grandes empresas compram o direito de abrir o comércio e permanecem sugando seu lucro da classe trabalhadora, essas mulheres estão cada dia mais exaustas, vulneráveis, sobrecarregadas de toda a rotina atribuída ao seu gênero. Falar sobre linha de frente é falar da parcela de mulheres que, quando não estão em casa cuidando do lar, estão ativamente nos setores atribuídos como necessários, responsáveis pela produção e reprodução da vida.

A solução parece óbvia, mas nunca é

Diversas falas do atual presidente do país relatam uma coisa importante: sem classe trabalhadora não há lucro. Mas, mesmo que isso seja visível a ele, parece que não há preocupação alguma sobre a classe trabalhadora definhar. Estão nos matando.

Estão nos matando quando as grandes empresas compram o direito de abrir o comércio. Quando o Sistema Único de Saúde (SUS) não tem verba suficiente, as aulas via EAD são mantidas, os auxílios, que levam o nome de emergencial, demoram dias e até meses para serem liberados, além da má burocracia que se instaura: aplicativo que não funciona, congestionamentos, falta de informação e filas absurdas. Estão nos matando.

Não é a classe alta do país que se encontra nessa situação. A classe alta do país continua com sua poupança, com suas empregadas domésticas, com a segurança de ter um carro, um bom plano de saúde, aparelhos tecnológicos de última geração e internet estável.

A pandemia surgiu no pior momento da vida brasileira e tem escancarado diversas vezes as desigualdades sociais existentes. E fica ainda mais óbvio quando entramos no assunto gênero e raça. Mas pensar em formas de acabar com essa necropolítica que nos consome parece ser algo cada dia mais distante. Isso porque nossas mídias e fontes de informação fazem gosto em distorcer os dados ou suavizar tamanho problema.

A solução na vida da mulher trabalhadora num contexto pandêmico não será apenas com creches e refeitórios públicos como nós, feministas, já vínhamos debatendo. É necessário mais e é necessário urgência. Agora é ainda mais obrigatório pontuarmos a importância do fim da propriedade privada, o fim da exploração da jornada de trabalho e, logo, o fim do capitalismo. Precisamos com urgência de renda básica, da ampliação e fortificação do SUS, da suspensão das aulas via EAD, o aumento de verbas para a ciência e pesquisas.

Para acabar com as desigualdades sociais e melhorar a vida da mulher trabalhadora precisamos acabar com o capital. Sem a mulher trabalhadora não há luta e não há vida!

Pela vida e emancipação das mulheres e o fim da exploração privada e pública!

Referências:

BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Disponível em: https://www.ibge.gov.br/. Acesso em: junho de 2020.

FEDERICI, Silvia. O ponto Zero da Revolução: trabalho doméstico, reprodução e luta feminista. Tradução de ColetivoSycorax – São Paulo: Elefante, 2019.