Guerra, sanções e Covid-19: o genocídio na Síria

imagemAbu Mohammad celebra a sua colheita de trigo, num distrito rural de Hama, Síria, em 19 de Junho de 2020. Há um ano tinha sido um dos 1500 agricultores do seu distrito apoiados pelo Crescente Vermelho Sírio e pela Cruz Vermelha Internacional com sementes de trigo e fertilizantes. A nova «Lei César», aprovada pelos EUA, pretende impedir a recuperação da economia síria. CréditosICRC / Twitter

José Goulão

ABRIL ABRIL

A operação genocida montada pela administração Trump e o Conselho Europeu, em tempos de pandemia, contra a esmagadora maioria do povo da Síria passa entre os pingos da chuva da comunicação social corporativa e avança em todo o terreno sem que as Nações Unidas manifestem a menor intenção de barrar a tragédia recaindo sobre pelo menos 17 milhões de pessoas.

Israel deu o exemplo em Gaza, submetendo dois milhões de pessoas a um universo concentracionário que se prolonga há muitos anos. As administrações Obama e Trump, mais o Conselho que representa os governos da União Europeia seguem o mesmo caminho na Síria – e em outros países, como se sabe – eventualmente com falinhas mais mansas e pretensos objetivos libertadores e humanitários cuja simples invocação retrata o desumano cinismo de quem assim se comporta.

Falemos especificamente da tragédia que se vive na Síria, de uma atualidade flagrante que não encontra correspondência junto de quem se limita a consumir as matérias envenenadas da comunicação dominante.

Em plena pandemia de COVID-19, a administração de Donald Trump pôs em vigor a chamada «Lei César» para reforçar brutalmente as já muito restritivas sanções que se fazem sentir no dia-a-dia de guerra vivido por cada cidadão da Síria; e alguns dias antes, em 28 de maio, o Conselho Europeu decidiu prorrogar por mais um ano as sanções que estão em vigor desde 2011 – supostamente contra «o regime» mas que recaem sobre a população. Por exemplo, proibir a importação de petróleo num país onde os recursos petrolíferos estão sob controlo de tropas de ocupação norte-americanas ou de grupos terroristas por elas tutelados retrata em corpo inteiro o «humanismo» dos governantes europeus perante uma população que, além de resistir contra uma agressão estrangeira tem de se desdobrar, com absoluta penúria de energia, na guerra contra o novo coronavírus.

O comportamento das castas dominantes transatlânticas com ambições globalistas tem uma designação: genocídio. E os europeus que não apontem o dedo a Trump, estão ao mesmo nível ilegal e criminoso.

Vingança raivosa

Aquilo que estamos assistindo na Síria, a condenação de um povo à fome e à doença, é uma vingança raivosa. Os países e os interesses que apostaram numa guerra contra a Síria através de intermediários terroristas vingam-se da derrota que sofreram castigando uma população que resistiu e, passo a passo, conseguiu libertar quase todo o país das ocupações que sofreu.

A vingança orienta-se num sentido prioritário: impedir a reconstrução do país; e deixar o povo numa situação em que não tenha meios, nem saúde nem ânimo para encontrar caminhos que possam ser alternativos.

«Atirámos com tudo, menos as pias de cozinha, para dentro da Lei César», orgulha-se o «enviado» de Donald Trump para a Síria, James Jeffrey, falando do espectro total abrangido agora pelas sanções norte-americanas, somadas às europeias.

A «Lei César» destina-se, dizem os autores – bipartidários no Congresso dos Estados Unidos –, à «proteção civil» dos sírios. Por aqui se mede a hipocrisia dos legisladores de ilegal vocação supranacional: «proteger» uma população matando-a à fome e entregando-a à pandemia até que se revolte e promova a «mudança de regime» ansiada em Washington e Bruxelas. No léxico «ocidentalez» estamos no domínio da defesa dos direitos humanos, da civilização e das liberdades políticas.

A origem da designação «César» para a lei de sanções é, só por si, um exercício de provocação política. «César» é o «anônimo» cidadão supostamente sírio que em 2014 revelou ter em seu poder 55 mil fotografias de vítimas das «atrocidades do regime». O espólio não resistiu a uma análise independente que, em 30 páginas, demonstrou que cerca de metade dos instantâneos correspondiam a carnificinas cometidas pelos «rebeldes moderados» e outros heterônimos da al-Qaeda e Isis contra as populações civis. O próprio Christian Science Monitor, órgão norte-americano da constelação corporativa, reconheceu na altura que o caso das 55 mil fotografias foi «uma oportuna acção de propaganda financiada pelo Qatar».

Quando Jeffrey diz que «atirámos com tudo» para a «Lei César» é mesmo tudo. Empresas e entidades, colectivas ou individuais, ficam impedidas de negociar com a Síria sob a ameaça de multas colossais e sequestro de ativos. Nem materiais de construção, nem alimentação, nem energia – como estabeleceu a União Europeia – nem medicamentos, equipamentos médicos, remessas de refugiados e emigrantes e outros produtos de primeira necessidade poderão ser importados pela Síria.

Ou seja, os países e interesses que submeteram a Síria ao conflito são os mesmos que impedem a reconstrução – para prolongar a guerra agora por outros meios terroristas além da violência militar. Até à desejada capitulação.

Exceções confirmam a regra do terrorismo
O novo pacote de sanções norte-americanas não inova muito, mas reforça o âmbito abrangente da agressão e a perenidade dos seus efeitos. Os sírios já conhecem as vicissitudes das sanções com que têm de se deparar no terreno mesmo depois de terem vencido as anteriores fases de guerra.

Um exemplo. Quando o exército regular e a resistência nacional libertaram a região de Alepo, cerca de 500 mil pessoas tentaram regressar às suas residências e propriedades, muitas delas destruídas. Para a reconstrução conseguiram contar com materiais plásticos, mas não com cimento e vidro, produtos que não podem entrar no país. Como herança de uma guerra vitoriosa, aos sírios foi permitido voltar para barracas e construções precárias, não para as habitações que tinham sido obrigados a deixar.

A fábrica Katerji, uma importante metalomecânica em Sheik Najjar, na zona industrial de Alepo, Síria, é um exemplo. A cidade foi libertada pelo exército Árabe Sírio em dezembro de 2016. Num balanço efetuado em 2019 os sindicatos sírios contabilizaram mais de 9 mil operários mortos, 14 mil feridos e 3 mil raptados sem que se conheça o seu paradeiro, em ataques terroristas.

Em compensação, os grupos terroristas da al-Qaeda e do Isis tiveram betume de sobra – graças a milhões de toneladas fornecidas pelo grupo transnacional francês Lafarge – para construir bunkers e labirintos subterrâneos através dos quais multiplicaram as suas atividades terroristas.

É desta cooperação íntima entre a «civilização» corporativa e o terrorismo dito «islâmico» que fala a «Lei César» quando assegura que as sanções não são aplicáveis em regiões sírias como Idlib ou o «Rojava» alegadamente curdo, ou ainda outros territórios sob o controlo das Forças Democráticas Sírias e demais heterônimos sob o chapéu da OTAN. Idlib, recorda-se, está em poder de uma parceria formada pela al-Qaeda e tropas turcas de ocupação, confirmando-se que a excepção confirma a regra do terrorismo, agora reforçado pela «Lei César» e as renovadas sanções europeias. Neste quadro é de uma lógica naturalíssima que Washington incentive os «aliados» a investir nos territórios sob ocupação terrorista aquilo não permite na Síria libertada. Se dúvidas ainda houvesse sobre quem são os patrões dos mercenários «islâmicos»…

Estratégia integrada
A estratégia integrada da nova fase da agressão à Síria não se resume à trilogia formada por violência militar e terrorismo mais sanções, mais pandemia. Há um quarto elemento, comprovando sempre que o alvo a abater é o povo sírio: o fogo.

Nestas semanas de renovação das sanções europeias e de intensificação das penalizações de Washington têm-se multiplicado os fogos devastadores contra campos agrícolas sírios tanto do Norte como no Sul – tarefas cuja autoria é repartida pela constelação de grupos terroristas e pelas próprias tropas norte-americanas de ocupação.

Além de não poderem contar com alimentos importados, as populações sírias estão impedidas de colher os que produzem.

O silêncio das Nações Unidas e do seu secretário-geral sobre estas realidades que representam a punição arbitrária e totalitária do povo de um dos mais antigos e históricos Estados do planeta é revelador da situação em que se encontra a chamada «comunidade internacional», verdadeira cúmplice de guerras e atos genocidas.

E uma vez que a falta de alimentos e de energia na Síria se tornou gritante, os preços sobem vertiginosamente, a par da multiplicação dos efeitos do terrorismo cambial imposto pela «Lei César» e respectivas réplicas europeias. Washington postulou que o Banco Central da Síria é «uma instituição de lavagem de dinheiro», pelo que as suas atividades internacionais devem ser impedidas – do mesmo modo que já anteriormente o Conselho Europeu congelara os ativos do banco. Resultado: a libra síria passou do valor de 650 por dólar em outubro último para 2600 por dólar atualmente, com os inerentes problemas para a população.

Nesta matéria, porém, também existem exceções. Certamente com o conhecimento e o beneplácito da Casa Branca, da União Europeia e da OTAN, a Turquia pôs em circulação a sua moeda, a libra turca, nas regiões sírias ainda sob ocupação terrorista, concentradas no Norte e Nordeste do território. Mais uma prova do enlace entre o terrorismo e o atlantismo e também a demonstração de que um dos objectivos da guerra é desmembrar o Estado sírio – como o único que ainda representa uma sombra regional para Israel. Está nos anais da História, embora não daquela que é explicada aos cidadãos, que a guerra contra a Síria começou depois de o presidente sírio, Bachar Assad, ter rejeitado uma «sugestão» da secretária de Estado norte-americana, então a democrata Hillary Clinton, no sentido de tornar mais «flexíveis» as relações com o Estado sionista.

O papel da solidariedade
James Jeffrey, o «enviado» de Trump já atrás citado, é um homem muito dotado a sintetizar atividades criminosas em soundbites de fácil circulação.

«O meu trabalho é criar um atoleiro para os russos», explica ele sobre os objetivos da «Lei César». Faz todo o sentido: o povo sírio ficará muito mais à mercê da fome, da pandemia e da guerra sem o apoio militar e civil que a Rússia tem dado à libertação e à manutenção da integridade territorial da Síria.

Claro que as intenções do carteiro de Trump não se transformam em realidade só por brandir um slogan com fácil receptividade e repercussão.

Independentemente da resposta que a Rússia vier a dar a esta nova situação, há uma componente de solidariedade da cidadania internacional que pode desenvolver-se através dos canais abertos por países que estão dispostos a subverter as sanções ilegais impostas contra a Síria – ilegais por muito que os governos europeus aleguem estar sintonizados com resoluções da ONU. Pois claro, a destruição da Líbia pela OTAN também se fez a coberto de interpretações de resoluções da ONU e nem por isso foi legal.

A solidariedade cidadã deve e pode manifestar-se sobretudo nos países cujos governos são cúmplices das sanções genocidas, exactamente porque os povos não querem sê-lo. Daí que devam meter mãos à obra para fazer chegar aos sírios aquilo que arbitrariamente lhes é negado. Espaço e condições para isso existem, imaginação, unidade e acção também não irão faltar. Trata-se de combater um genocídio friamente programado e aplicado.

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