Reflexões sobre Marxismo e Cultura Corporal

imagemBenedito Libório Araújo e Rafael Gaspar*

A história da Educação Física está, obviamente, imbricada na história da Humanidade, se partirmos de um entendimento amplo da Educação Física (para além da disciplina escolar). Quando o Homo Sapiens ainda tinha a característica nômade, as habilidades de correr, nadar, lançar objetos, escalar, dentre outras, eram essenciais para garantir a sua sobrevivência e de seu grupo. Além disso, também já existiam danças ritualísticas entre adultos e brincadeiras diversas entre adultos e crianças. A partir do momento em que ocorre a sedentarização de alguns grupos, com o desenvolvimento das plantações e criações de animais, os seres humanos precisaram fortalecer seus corpos para defender suas casas e plantações de grupos invasores. Desta forma, as aldeias foram crescendo, se transformando em cidades e seus exércitos também cresceram na mesma proporção.

De outro lado também ocorre o desenvolvimento de outras manifestações do que denominados de Cultura Corporal, ou seja, os jogos, as danças, as ginásticas, as artes marciais, as acrobacias (circo), os esportes, as mímicas e o teatro. A maioria destas manifestações surgiram da cultura popular e algumas delas foram institucionalizadas, como é o caso de diversos jogos que viraram esportes por exemplo. Todo esse conhecimento é fruto de milhares de anos de evolução da raça humana e deve ser sistematizado e disponibilizado para as gerações atuais, sejam crianças, adultos ou idosos. É neste sentido que trazemos a baila estas reflexões para que os camaradas se apropriem deste debate e tomem para si esta tarefa de resgatar os conhecimentos da Cultura Corporal e colocá-los em prática, trazendo benefícios de várias ordens, como destacaremos a seguir. Iniciamos o debate questionando, o que é Corpo?

SOBRE O CORPO

“Tu não te moves de ti” (Hilda Hilst)

No pensamento da maioria de nós, povoa a ideia, a que chamamos de senso comum, de que nossa cabeça se separa do corpo. Essa divisão é responsável pela compreensão de um determinado tipo de divisão do trabalho, para uma pequena parcela da sociedade, os trabalhos intelectuais melhores remunerados, e para a grande maioria os “trabalhos braçais” com menor remuneração. Assim, durante todo tempo, as pessoas repetem essa arenga de corpo e mente, perpetuando uma formação humana dualista, fragmentada, unilateral.

Vamos problematizar essa ideia, sim, ideia de que a representação do que somos não condiz com o que é. Para Marx e Engels isso é uma falsidade, para ambos o homem é bem mais que isso. Alguém já viu um pensamento? Cheirou? Ouviu? Tocou? Se isso ocorreu, é porque o pensamento ganhou forma concreta pela ação de mãos, cérebros, nervos, cordas vocais etc. Que possibilitaram que as ideias ganhassem forma!

O primeiro ato histórico do homem é estar vivo! Ele precisa existir, precisa manter a base biofísica, que chamamos corpo, nutrida, e para nutri-la ele desenvolve uma AÇÃO, ele olha a realidade, pensa sobre ela, e a altera intencionalmente, mais que isso, ele cria o que não existia. Onde havia pedra, cipós e pedras, criam-se lanças, flechas e machados, e isso altera drasticamente o meio em que ele vive, e mais, altera a forma dele pensar e agir sobre a mesma realidade, e também sobre si. Essa atividade que é prática, é também pensada, ela também é teórica, ela é a PRÁXIS! Ela é cognitiva!

Rapidamente o homem percebe que esse conhecimento não é repassado pela genética, ele precisa garantir as novas gerações, que são paridas (como qualquer outro ser da natureza), o acesso ao conhecimento desenvolvido pelos homens que antecederam. O homem não nasce andando, correndo, nadando, saltando, ele apreende isso à medida em que se apresentam esses elementos da cultura ‘corporal’, é nesse processo que a espécie humana compreende que ele precisa se relacionar com outros homens, ou seja, ele precisa viver em sociedade. Assim, estabelecemos quatro pilares da edificação do humano no homem: estar vivo; trabalho; reproduzir/ensinar; socializar.

Percebam como o corpo é que opera tudo! É quem ouve, quem sente sabor, sente cheiro, enxerga, quem toca, carrega, opera o mundo!!! Mas o que tem de tão relevante nisso?

Alguns estudiosos do cérebro humano descobriram que existe uma conexão entre a atividade e capacidade de pensar. Na psicologia, na pedagogia, e no seu subcampo específico, Educação Física, encampamos uma luta para demonstrar que o trato com o corpo é imprescindível para desenvolver o humano no homem. Como diria o velho Engels: ‘o trabalho criou o próprio homem’, condicionando suas transformações biológicas a demandas sociais, e condições sociais são adaptadas a necessidades biológicas. Mészáros esclarece: “na visão de Marx, o ser humano não é só ‘humano’ nem só ‘natural’, mas ambos: isto é, ‘humanamente natural’ e ‘naturalmente humano’ concomitantemente”. As atividades corporais são responsáveis para regulação e ampliação das percepções da própria consciência, quem se exercita desenvolve funções psíquicas superiores e faz que avancemos em possibilidades de uma outra relação com o mundo. Em comparação com outros animais, o homem enxerga pior, cheira com debilidade, ouve de forma limitada etc. Mas constrói instrumentos para ampliar os sentidos, principalmente, os da própria corporalidade: o músico que reconhece os sons e as frequências, o chef que reconhece os processos químicos e diferentes composições de sabores, o artista plástico que compreende as cores numa tela etc. Essas funções só são desenvolvidas com a mediação do corpo, que amplia as potencialidades humanas.

FORMAÇÃO ONILATERAL

Ao desenvolver a linguagem, o Homem passa a transmitir seus conhecimentos para as próximas gerações de forma cada vez mais sistematizada, desenvolvendo o que hoje conhecemos como Educação. Pensar na formação humana vem sendo a tarefa de diversos pensadores, filósofos, professores e pesquisadores ao longo da história da humanidade. Chama a atenção a definição da Educação ideal (Paideia) na visão de Platão para formação do cidadão ideal e completo, contendo ginástica, música, gramática, retórica, matemática, geografia, história natural e filosofia. Apesar das avançadas formulações da Educação Helênica chamarem a atenção, o que elas escondem (não por acaso) que nem todas as pessoas poderão atingir o status de “cidadão” em uma sociedade dividida em classes que perpetuava a escravidão e a desigualdade de direitos entre homens e mulheres.

Como já destacamos anteriormente, a Educação até os dias hodiernos é pautada por uma divisão entre corpo e mente, forma para um Mundo do Trabalho dividido e alienado, onde uma parcela pensa e outra executa, uma classe detém os Meios de Produção e a outra vende sua força de trabalho. Da mesma forma a instituição Escola é dualista, uma voltada para uma formação elevada (chamada de humanista) e outra mais técnica e rebaixada voltada para a classe trabalhadora. Marx, Engels e Lenin já chamavam a atenção para isso no Séc. XIX e XX ao salientar que a formação na sociedade capitalista (ou seja, enquanto existir o trabalho alienado) sempre será uma formação unilateral, impedindo o ser humano de desenvolver todas as suas potencialidades.

Marx e Engels não elaboraram um texto específico para falar de Educação, mas ao longo de suas obras podemos encontrar diversos trechos[2] que nos ajudam a construir um “programa” de educação para a nova sociedade sem divisão de classes. Neste programa encontramos 3 elementos essenciais: 1- Ensino Intelectual (aqui entram todas as disciplinas para entender o mundo físico, a história, a geografia, as artes, a filosofia); 2-Educação Física (utilizam outros termos que evidenciam o desenvolvimento deste campo naquele momento histórico, como: Ginástica, Exercícios Militares, Exercícios Físicos, dentre outros) ; 3- Formação Tecnológica (que esteja diretamente ligada ao sistema de produção em todas as suas dimensões buscando a Politecnia, dando a autonomia para que a pessoa escolher seu campo de atuação preferido).

Se é fato que a formação plena do Ser Humano no sentido de uma formação Onilateral só será atingida em uma outra sociedade sem a divisão de classe, por outro lado, cabe aos comunistas lutar desde já pelo fim da visão de Educação e ser humano que separa corpo da mente. Para isso é preciso que a Cultura Corporal deixe se ser vista pelo senso comum como uma questão secundária ou um momento de relaxamento (válvula de escape) do trabalho, dos “estudos intelectuais”, etc. Cabe compreender a importância desta dimensão essencial para a formação do Ser Humano.

Mens Sana in Corpore Sano?

A famosa frase do poeta Romano Juvenal que significa “mente sã em corpo são” tem sido o lema de muitas pessoas defensoras da Atividade Física relacionada à Saúde, sendo que não raro encontramos essa frase estampada nas paredes das academias. O que o leitor que chegou até aqui já deve identificar é que esta frase resume a visão dicotômica separando o corpo da mente. Há que manter o corpo saudável para sustentar uma mente saudável.

Não negamos os diversos benefícios que as práticas corporais proporcionam ao Ser Humano, o leitor atento também deve ter percebido que ao longo do texto já destacamos diversos benefícios das práticas corporais para a formação do Ser Humano no que se refere a uma das principais características deste Ser, a Sociabilidade. O Homem é um ser essencialmente social, ele vive, trabalha, se diverte, se reproduz socialmente e a Cultura Corporal tem um papel fundamental neste processo através das danças, brincadeiras, jogos, esportes e outras atividades coletivas. Mesmo nos esportes individuais interagimos com adversários, colegas, técnicos, companheiros de corrida, etc.

Além dos já mencionados benefícios sociais (de interação e pertencimento em grupos) também existem sim os benefícios físicos que as práticas corporais irão gerar, desde que respeitados os limites de cada organismo. Existem diversos estudos na área que apontam os prejuízos que a carga excessiva de exercícios podem ocasionar aos Seres Humanos (principalmente relacionados aos esportes de alto rendimento), por isso, nem sempre o exercício é sinônimo de saúde. Para quem pensa iniciar uma prática corporal após um período de sedentarismo, é importante buscar orientação com professores de Educação Física além de fazer exames médicos. De forma segura, os benefícios, além dos já citados, são: fortalecimento dos ossos e músculos, melhora no sistema cardiorrespiratório, redução de peso corporal, melhora na qualidade do sono, melhora na qualidade de vida de forma geral, aumento da autoestima e bem estar, dentre outros.

Agradecemos a leitura até aqui e esperamos ter contribuído para iniciar uma reflexão (e o debate) sobre o papel da Cultura Corporal na formação Humana para uma futura elaboração de um programa político para a Classe Trabalhadora na perspectiva de uma formação Onilateral em uma futura sociedade sem a divisão de classes.

Indicações de Leitura:

COLETIVO DE AUTORES. Metodologia do Ensino de Educação Física. Editora Cortez. 1992.

OLIVEIRA, Vitor Marinho de. O que é Educação Física?. Coleção Primeiros Passos. São Paulo: Editora Brasiliense, 2004.

MANACORDA, Mario Alighiero. Marx e a pedagogia moderna. Campinas, Editora Alínea, 2007.

Texto produzido por: – Professor de Educação Física – Militante MUP ANDES; e Rafael Gaspar – Professor de Educação Física – Militante da UC Sintrasem (Santa Catarina).

[1] O presente texto é a resposta de uma demanda solicitada pela Comissão Operativa de Saúde Mental (COSME) de iniciar o debate sobre a Cultura Corporal dentro do Partido e Coletivos, especialmente com os Camaradas que não são da área da Educação Física mas tenham interesse no assunto. A intenção é pensar além da “prática pela prática” dos exercícios físicos, pensar para além dos benefícios à saúde, mas principalmente a importância desta dimensão para a formação Humana. O presente artigo não busca dar conta de todas as nuances deste tema, mas sim servir de “Pontapé Inicial” para o debate.

[2] Princípios do Comunismo, Manifesto do Partido Comunista, A Ideologia Alemã, Instruções aos Delegados do Conselho Geral Provisório, O Capital, Crítica ao Programa de Gotha, dentre outros.

*Benedito Libório Araújo – Professor de Educação Física – Militante MUP ANDES e Rafael Gaspar – Professor de Educação Física – Militante da UC Sintrasem (Santa Catarina).