Capitalismo e feminismo não podem coexistir

imagemTrabalhadoras de uma fábrica de lã operam grandes máquinas de tecelagem, por volta de 1930. Foto: FPG / Arquivo Hulton / Getty

REVISTA JACOBIN

Por
Nicole M. Aschoff

Tradução
Giuliana Almada

A força do feminismo está em lutar por uma vida igualitária para todos, independentemente de sexo, raça ou renda. Não podemos alcançar isso sob o capitalismo.

Há muito tempo que tanto feministas quanto não-feministas debatem sobre o capitalismo: se é ou não é bom para as mulheres. Mas cada aumento no interesse sobre esse tema está integrado em um contexto particular. Sendo assim, quais são as condições que favorecem um exercício como este no momento presente?

Para começar, o capitalismo está em crise. Não necessariamente uma crise econômica, no sentido de uma recessão completa. Mas temos testemunhado mais de uma década de estímulos que incluem resgates multitrilionários pelos bancos centrais, anos de flexibilização quantitativa e um novo padrão de juros baixos projetados para evitar que investidores se atirem coletivamente de um penhasco.

Apesar desses esforços, os salários e o crescimento econômico continuam estagnados. As empresas parecem mais interessadas em apostar no mercado de ações do que em investir no mundo real. Enquanto isso, o capitalismo neoliberal — as normas, ideias e políticas que estão por trás do status quo das últimas quatro décadas — está passando por uma profunda crise de legitimidade. Há uma perda generalizada de confiança no governo, uma crescente descrença no capitalismo e um ressurgimento do populismo tanto à esquerda quanto à direita.

Um segundo ponto de referência é o ressurgimento do feminismo na última década. Este ressurgimento vem acontecendo de diversas maneiras, sob diferentes perspectivas sobre como melhor desenvolver uma agenda feminista, e tem sido uma constante no discurso público, mais recentemente com o movimento #MeToo (#EuTambém).

A derrota de Hillary Clinton nas eleições estadunidenses de 2016, diante da crise de legitimidade do capitalismo neoliberal, colocou em xeque o modelo dominante do feminismo neoliberal — a ideia de que os objetivos feministas seriam melhor alcançados por meio do esforço individual de cada mulher que conquista uma posição de poder e sucesso dentro do capitalismo. As mulheres, especialmente as mais jovens, estão clamando por um tipo diferente de feminismo, muitas vezes implícita ou explicitamente anticapitalista. Pesquisas revelam que cerca da metade dos jovens adultos estadunidenses prefere o socialismo ao capitalismo e, de acordo com Pew Research Center, 53% dos apoiadores de Bernie Sanders são mulheres.

É neste contexto de crise, que pode ser considerado como um momento de transformação e não de ruptura em si, que olhamos para frente e perguntamos como as feministas devem orientar suas posições e suas lutas.

Eu digo “olhar para frente” deliberadamente. Este é o momento de avaliar as vitórias duramente conquistadas e de elaborar uma estratégia para que todas as mulheres possam realmente desfrutá-las, e de avançar com novas demandas concretas que satisfaçam os amplos objetivos do feminismo.

Primeiramente, no entanto, a serviço da clareza, algumas ressalvas: não falo por todas as mulheres, obviamente, mas também não falo por todas as mulheres de esquerda, ou todas as feministas, ou todas as socialistas, ou todas as socialistas-feministas. Além disso, há muitas críticas feministas ao capitalismo. Dadas as restrições de tempo e de minha própria base de conhecimento, me dirijo apenas a algumas delas.

Chelsea Follett – nossa moderadora, analista política da Cato, e editora executiva da Human Progress — teve a gentileza de trazer algumas perguntas orientadoras para a discussão.

1. A disseminação do capitalismo tem resultado em um saldo líquido positivo ou negativo para as mulheres?
Esta é uma pergunta difícil de responder, até porque acho estranho formular uma equação de custos humanos que atravesse os séculos de capitalismo. Podemos colocar a pergunta da seguinte forma: as melhorias mais recentes na expectativa de vida, alfabetização e autonomia das mulheres compensam o extermínio em massa de mulheres e crianças indígenas, as vidas desesperadas de mulheres presas e torturadas na escravidão, e a desfiguração e morte precoce de mulheres que passaram sua vida labutando em sweatshops [“fábricas de suor” com condições de trabalho muito precárias e socialmente inaceitáveis], cujos corpos são destruídos pelo trabalho fabril?

É um cálculo difícil de fazer com precisão. Mas se quiséssemos tentar, certamente precisaríamos temperar as alegações otimistas dos recentes sucessos do capitalismo global com a dura realidade de que mais de dois bilhões de pessoas sofrem de desnutrição, de que 95% da renda criada com o crescimento global não é compartilhada com os 60% mais pobres da população mundial e de que o número absoluto de pessoas que vivem na pobreza aumentou em um bilhão nas últimas décadas.

Estou disposta a dizer que concordo com Marx, sobre o capitalismo ser melhor que o feudalismo. Também podemos apontar para dados que sugerem um progresso agregado, por exemplo, em direção ao cumprimento dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio em relação à expectativa de vida, mortalidade e educação. As mulheres de classe média e alta em grande parte do mundo gozam de acesso e direitos que teriam sido invejados por suas irmãs há um século e meio atrás.

Contudo, ao celebrarmos esses ganhos, os quais devem ser celebrados, precisamos ser cautelosos com as setas causais que desenhamos. Embora alguns desses ganhos possam ser atribuídos ao desenvolvimento e à racionalização — que estão correlacionados com o capitalismo — muitos deles são resultado de uma persistente luta política, e não do capitalismo propriamente dito.

Leis e normas contra a discriminação, o direito de não sermos propriedade dos nossos maridos, o direito ao voto, o direito de podermos nos proteger e proteger nossos filhos da violência doméstica — estes e tantos outros não foram simplesmente transmitidos de cima para baixo por uma Câmara de Comércio. Eles foram conquistados por movimentos sociais, muitos deles liderados por socialistas e feministas, que lutaram com unhas e dentes e sofreram muitas derrotas pelo caminho.

Neste momento, porém, penso que seja importante olhar para frente. Mesmo que reconheçamos que o capitalismo tenha proporcionado um ganho líquido para as mulheres — o que eu não reconheço — é muito mais importante perguntar se o capitalismo levará a ganhos no futuro.

O feminismo não se trata apenas de eliminar a discriminação baseada no gênero. O feminismo se trata de lutar por e criar igualdade e uma boa vida para todos, independentemente de sexo, gênero, raça, etnia, educação, renda, religião, ou de onde vivem. Isto é o que há de melhor no feminismo — e é por isso que sou feminista.

Em síntese, estes objetivos não podem ser alcançados no capitalismo.

Recentemente houve a greve climática, então vamos considerar o exemplo das mudanças climáticas. Nada demonstra melhor o fracasso do chamado livre mercado do que a catástrofe climática que se aproxima. Embora o capitalismo possa ser racional no nível individual, em um nível sistêmico ele é altamente irracional. A busca imprudente por lucros dos capitalistas individuais, fortalecidos por elites e governos, criou o enorme problema coletivo do aquecimento global, para não mencionar o esgotamento dos recursos e a destruição de biomas.

Mas em vez de encarar este problema de frente — um problema que compreendemos há décadas — durante os últimos quarenta anos as elites e os empresários têm insistido no poder de cura dos mercados livres. Eles argumentam que mercados seriam naturais e que fariam parte de uma ordem espontânea, que indivíduos racionais que operam com informações perfeitas criam resultados ótimos, e que externalidades são triviais.

Sabemos o que precisa ser feito, mas os imperativos do lucro e as prerrogativas arraigadas das elites têm impedido os países de adotar projetos e programas que nos libertem de economias destrutivas baseadas em combustíveis fósseis, e de desenvolver e instituir soluções sustentáveis para atender às nossas necessidades.

Somente um projeto coletivo, ancorado na solidariedade e na cooperação, e organizado em torno do princípio de retomar o nosso planeta das mãos das corporações vorazes, nos dará uma oportunidade de lutar para alterar a nossa trajetória atual.

2. Podemos dizer que o capitalismo é um sistema econômico intrinsecamente explorador, opressor e patriarcal interconectado com a subjugação das mulheres?
Vamos analisar um pouco essa questão. O capitalismo é explorador? Na economia política, a exploração descreve uma relação pela qual uma pessoa vende sua força de trabalho a alguém que possui os meios de produção e que lucra pagando a ela, a trabalhadora, menos do que o valor daquilo que ela produz. Portanto, sim, a maioria das pessoas, inclusive as mulheres, são exploradas no sentido de que trabalham por um salário e que não poderiam comprar comida ou pagar aluguel sem trabalhar em troca de um salário.

Esta exploração é opressiva, ou seja, constitui um tratamento cruel ou injusto? Bem, isso depende. Nos Estados Unidos, por exemplo, nem todas as mulheres são oprimidas (Algumas feministas e socialistas rejeitariam esta avaliação). No entanto, não acho que mulheres brancas altamente remuneradas, que possuem respeito, segurança e autonomia na organização de suas vidas profissionais, sejam oprimidas — ou pelo menos não o suficientemente oprimidas para que eu vá às ruas lutar por elas.

O problema é que este cenário feliz não descreve a situação da grande maioria das mulheres. Uma mulher que trabalha em tempo integral por um salário mínimo e não tem condições de ir ao médico, nem de comprar legumes, nem de pagar aluguel é oprimida. Uma jovem recém formada mergulhada em dívidas de crédito estudantil, que trabalha mais de sessenta horas semanais em uma startup de tecnologia — daquelas que complementam os péssimos salários que pagam aos funcionários com cerveja grátis e uma mesa de pebolim na sala de descanso — é oprimida.

Boa parte desta opressão está ligada ao patriarcado, ou, mais precisamente, ao sexismo, já que não vivemos em uma sociedade formalmente patriarcal. Ainda não existe consenso sobre o capitalismo ser inerentemente sexista, e o sexismo certamente existe fora do capitalismo. Podemos imaginar um modelo de capitalismo que não seja sexista ou racista. Mas o capitalismo é uma forma real de organização das normas, prioridades, estruturas e atividades da sociedade que evoluem ao longo do tempo e do espaço.

Como um sistema histórico, o sexismo e o racismo têm sido centrais na estratégia de acumulação no capitalismo. O sexismo faz com que o trabalho doméstico não remunerado das mulheres, essencial para a sociedade, pareça natural, fruto de seu amor. O sexismo e o racismo também continuam sendo ferramentas extremamente úteis no repertório dos empresários para dividir e oprimir os trabalhadores, para desencorajar as demandas por melhores salários e benefícios, ou para obstruir esforços de formação de sindicatos.

3. Ou será que o capitalismo não contribui para o empoderamento das mulheres, aumentando seu bem-estar material e promovendo a paridade de gênero?
Em vez de formularmos nossas perguntas e respostas como um ou outro, deveríamos optar por uma discussão mais matizada sobre ambos. Como eu disse anteriormente, as mulheres têm sido empoderadas no capitalismo. Embora precisemos ter cuidado para não confundir correlação com causalidade — tendo em mente aquelas variáveis escondidas, tais como os movimentos de mulheres, de direitos civis, o movimento trabalhista e o ambiental — os mercados ainda podem empoderar as mulheres.

Dinheiro é poder. Se as mulheres da atualidade tiverem a sorte de ter pais ricos, ou de terem nascido com habilidades ou inteligência excepcionais que as permitam conseguir um emprego bem remunerado e gratificante, elas serão empoderadas. Mais do que isso, elas serão capazes de empoderar outras pessoas em suas redes sociais, como seus próprios filhos.

Porém, observar que algumas mulheres têm bastante poder no capitalismo não implica que o caminho tenha sido traçado e que, se simplesmente o seguirmos, os objetivos do feminismo serão alcançados. A incrível riqueza dos poucos que estão no topo da pirâmide não é um acidente ou uma pontinha inofensiva sobre uma base saudável de pessoas que vivem uma boa vida. As reformas favoráveis ao mercado das últimas décadas tornaram um punhado de pessoas (na maioria homens) absurdamente ricas, enquanto a grande maioria teve seu sustento estagnado e suas oportunidades reduzidas.

Os incríveis avanços tecnológicos e científicos dos últimos quarenta anos poderiam ter sido canalizados para reduzir drasticamente a pobreza, melhorar os resultados dos cuidados de saúde e a sustentabilidade ecológica de nossos processos de produção, e para garantir a segurança no fornecimento e distribuição de água limpa, alimentos nutritivos e moradia adequada. São coisas que todas as pessoas valorizam, e que dariam grande poder às mulheres que sofrem desproporcionalmente por não as terem.

Nós temos todos instrumentos necessário para melhorar enormemente a vida das mulheres, e de todas as outras pessoas. No entanto, não direcionamos nossos recursos, conhecimento e energia para atingir este objetivo. Por quê? Porque o objetivo do capitalismo não é melhorar o mundo — é gerar lucro.

Esse texto é uma versão ligeiramente editada das observações feitas por Nicole Aschoff, membra do conselho editorial da Jacobin, em um debate no Instituto Cato, em Washington, DC. O tema: “O capitalismo ajuda ou prejudica as mulheres?”

Sobre a autora

Nicole faz parte do conselho editorial da Jacobin. Ela é autora dos livros “The New Prophets of Capital e The Smartphone Society: Technology, Power” e “Resistance in the New Gilded Age”, prestes a ser publicado.