Victor Jara: um manifesto de música e rebeldia

imagem(Foto: Marcelo Urra)

No dia 16 de setembro de 1973, o cantor Víctor Jara era assassinado pela ditadura de Augusto Pinochet no Chile. Nesse dia quiseram apagar sua voz, mas o seu canto já tem outras bocas e ninguém mais pode calá-lo.

Por Notas Periodismo Popular | Tradução de Rebeca Ávila para a Revista Opera

Víctor Lidio Jara Martínez nasceu em 28 de setembro de 1932 na província de Ñuble, no Chile. Filho de camponeses, foi criado em um ambiente rural, mas a sua mãe, Amanda Martínez, era cantora e tocava violão. Isto influenciou a carreira posterior de Víctor, que ainda era uma criança na época.

Três anos depois, ele se juntou à Companhia Teatral de Mimos de Noisvander, e começou a estudar interpretação e direção na Escola de Teatro da Universidade do Chile. Isto o levou a dirigir em 1959 sua primeira obra de teatro: Parecido a la felicidad, de Alejandro Sieveking.

Enquanto estudava interpretação, também continuou fazendo música. Assim, no final da década de 1950 participou do Conjunto Folclórico Cuncumén, onde conheceu a cantora Violeta Parra.

Durante os anos seguintes, o teatro e a música avançaram em paralelo. Gravou seu primeiro disco de vilancicos chilenos e em 1961, com o Conjunto Cuncumén, realizou turnês na Holanda, França, União Soviética, Tchecoslováquia, Polônia, Romênia e Bulgária. Nesse mesmo ano compôs sua primeira música, “Paloma quiero contarte”.

Na década de 1960 tornou-se diretor na Academia de Folclore da Casa da Cultura de Ñuñoa, trabalho que desempenhou até 1968. Também durante esses anos e até 1970 formou parte da equipe fixa de diretores do Instituto de Teatro da Universidade do Chile (Ituch), além de trabalhar, entre 1964 e 1967, como professor de interpretação na universidade.

Esses foram os mesmos anos da decolagem da sua carreira como cantor e músico. Foi o diretor artístico do grupo Quilapayún entre 1966 e 1969. Em 1966 gravou seu primeiro LP como solista, “Víctor Jara”, editado pela gravadora Arena. Com a empresa filial chilena da EMI-Odeon gravou no ano seguinte o “Canciones folclóricas de América”, junto com Quilapayún.

Também trabalhou como solista até 1970 na Peña de los Parra (uma famosa peña [espécie de evento, encontro] folclórica chilena criada pelos irmãos Isabel e Ángel Parra em 1965). Ali teve contato com vários músicos da Nova Canção Chilena, como Rolando Alarcón, Tito Fernández, Patricio Manns, Roberto Parra, Violeta Parra, Osvaldo Gitano Rodríguez, entre outros.

Em 1969 ganhou o primeiro prêmio no primeiro festival da Nova Canção Chilena, com a canção “Plegaria a un labrador”, e viajou a Helsinki, Finlândia, para participar de um ato mundial de protesto pela Guerra do Vietnã.

Seu perfil político-ideológico era evidente desde o princípio da sua vida musical, por isso não foi uma surpresa sua participação ativa na campanha da Unidad Popular em 1970, que lançava a candidatura de Salvador Allende para a presidência do Chile. Nesse mesmo ano apresentou seu disco “Canto Libre”.

Com a posse de Allende, Jara foi nomeado embaixador cultural do país, e em 1971 passou a formar parte do Departamento de Comunicações da Universidade Técnica do Estado. Além disso, foi também compositor de músicas para a Televisão Nacional do Chile entre 1972 e 1973, investigou e recompilou testemunhos em Herminda de la Victoria, usando-os como base para o disco “La población”. Dirigiu a sua homenagem a Pablo Neruda, pela obtenção do Prêmio Nobel.

Participou no trabalho voluntário para enfrentar o locaute dos empresários ligados ao setor de transportes em 1972, e no ano seguinte voltou a ser um militante ativo da Unidade Popular durante a campanha eleitoral para o Parlamento.

Quando o golpe genocida de Augusto Pinochet chegou ao governo no dia 11 de setembro de 1973, Jara foi sequestrado e detido no Estádio Nacional do Chile. Ali foi torturado durante dias, cortaram-lhe os dedos e a língua porque sabiam que essas eram as coisas mais perigosas de Víctor.

Finalmente, no dia 16 de setembro o fuzilaram. O seu corpo foi encontrado três dias depois, com 44 tiros.

Antes de morrer escreveu seu último poema, que foi retirado do Estádio de maneira clandestina, através de pequenas cópias:

Somos cinco mil aqui.
Nesta pequena parte da cidade.
Somos cinco mil.
Quantos somos no total
nas cidades e em todo o país?
Somos aqui dez mil mãos
que semeiam e fazem as fábricas andarem.

Quanta humanidade
com fome, frio, pânico, dor,
pressão moral, terror e loucura!

Seis dos nossos se perderam
no espaço das estrelas.

Um morto, um golpeado como jamais acreditei
que se poderia golpear um ser humano.
Os outros quatro quiseram livrar-se de todos os temores,
um saltando no vazio,
Outro batendo a sua cabeça contra o muro,
mas todos com o olhar fixo na morte.

Que espanto causa o rosto do fascismo!
Realizam seus planos com precisão arteira sem que nada lhes importe.
O sangue para eles são medalhas.
A matança é um ato de heroísmo.
É este o mundo que você criou, meu Deus?
Para isto seus sete dias de admiração e de trabalho?

Nestas quatro muralhas só existe um número que não avança.
Que lentamente irá querer mais a morte.

Mas logo a consciência me golpeia
e vejo esta maré sem batimento
e vejo o pulso das máquinas
e os militares mostrando seus rostos de parteira cheia de doçura.

E México, Cuba e o mundo?
Que gritem esta ignomínia!
Somos dez mil mãos que não produzem.

Quantos somos em toda a pátria?
O sangue do Companheiro Presidente
Golpeia mais forte que bombas e metralhas.
Assim golpeará nosso punho novamente.

Canto, como você sai mal
quando tenho que cantar o assombro.
Assombro como o que vivo, como o que morro, assombro.
De me ver entre tantos e tantos momentos do infinito
em que o silêncio e o grito são as metas deste canto.

O que nunca vi,
O que tenho sentido e o que sinto
farão brotar o momento…

Rebeca Ávila é tradutora na Revista Opera. Mestranda em Estudos Sociais Latinoamericanos pela Universidade de Buenos Aires, pesquisa sobre as políticas externas do Brasil e de Cuba na Guerra Colonial Portuguesa.