As primeiras lutas do proletariado brasileiro

imagemAntonio Carlos Mazzeo *

O processo de industrialização no Brasil encontra impulso no fim do século XIX e estabelece um enorme fluxo imigratório ― quando, somente em dois anos, entre 1888 e 1900, cerca de 1,4 milhão de pessoas chegam ao país, das quais 890 mil se fixam em São Paulo ― que atesta um desenvolvimento econômico ímpar, entre 1885 e 1906, se levarmos em conta a crise econômica estadunidense (entre 1893 e 1897) e a estagnação da economia argentina por toda a década de 1890. Esses imigrantes serão absorvidos pela nascente indústria brasileira, assim como pelas atividades agrárias.

A partir de 1907 até 1920, a industrialização atinge altos índices, delineando assim, um rápido processo de modernização – ainda que centrado nos núcleos urbanos mais importantes do país – de um capitalismo que até ali se tinha fundamentado em bases essencialmente rurais. Conforma-se, desse modo, um novo espectro do contingente dos trabalhadores dos grandes centros urbanos nacionais, onde misturam-se imigrantes e migrantes, em que os imigrantes serão a maioria. Nessa Babilônia proletária, onde se falam diversas línguas e mesclam-se diferentes culturas e etnias, chegam também, juntamente com o proletariado do outro continente, as formas ideo-organizativas sindicais e políticas, como o anarcossindicalismo. Indiscutivelmente, essa vertente anarquista hegemonizava o pequeno movimento operário brasileiro, não esqueçamos, ativo nos grandes núcleos urbanos, justamente onde estavam as fábricas de um incipiente processo industrializador1.

Nesse contexto começa também a aflorar o movimento dos trabalhadores, refletindo as mudanças que ocorriam na base material da sociedade brasileira. Já no fim do século XIX, verificam-se diversos movimentos grevistas de caráter operário, entre os anos de 1890 e 1898, principalmente no eixo São Paulo – Rio de Janeiro, mas também, nos estados da Bahia e Minas Gerais. Mas é a partir do século XX que as movimentações operárias começam a ganhar maior intensidade, expressando seu aumento quantitativo e, de certa forma, qualitativo.

No âmbito histórico de uma sociedade como a brasileira, sem tradição democrática determinada pela escravidão, o pacto burguês de vezo prussiano-colonial2 reduz mais ainda a política a seu intrínseco elemento onto-negativo de controle social e de classe, ganhando dimensões desconstrutoras e alienantes nas relações institucionais e na própria realidade concreta, determinadas não somente por uma sociedade cerrada pelo próprio caráter do pacto burguês, isto é, pela manutenção de um bloco hegemônico ainda centrado em seu núcleo socioeconômico agroexportador, como pela fragmentação determinada pelo regionalismo. De fato, desde a formação do Estado Nacional brasileiro a construção de uma “sociedade-civil”/sociedade burguesa (bürguerliche Gesellchaft, como definia Marx,), nos moldes liberais burgueses será permeada pela contradição estrutural de um liberalismo convivendo com a escravidão e com o “sentido histórico” do ser precisamente assim de uma formação social de extração colonial que não rompe com seu passado estrutural e que ao contrário, o reafirma permanentemente ajustando-o aos movimentos e às transformações da economia internacional, integrando-se à ela de forma complementar e subalterna. Até a abolição do trabalho escravo a contradição fundamental das relações sociais da sociedade brasileira foi nucleada pela relação escravo-senhor, ainda que já, a partir da segunda metade do século XIX, despontem também as contradições com os trabalhadores assalariados nos centros urbanos.

Com a desestruturação da escravidão/forma-trabalho-forçado e a instituição do trabalho livre, essa contradição ganha novas dimensões, seja na tradicional relação entre os fazendeiros e os trabalhadores rurais – em suas diversas formas laborais –, seja naquelas que se desenvolvem de maneira moderna nas fábricas e oficinas do país. Ambas, no entanto, sofriam as agruras da tradição escravista-colonial, quer dizer, da prevalência de séculos de uma economia assentada sobre o trabalho-forçado, onde o direito regulador do trabalho se materializava no direito da propriedade sobre o trabalhador escravizado.

De certo modo, essa cultura estendia-se para os segmentos “médios” da sociedade brasileira, também eles caudatários e inseridos nessa forma de liberalismo particularizado, “fora e dentro do lugar”, porque produto de um Ocidente incompleto e de uma ordem burguesa “anômala”3, em que o liberalismo servia de instrumento ideológico para uma economia fundada na hegemonia agroexportadora de vezo político autocrático-burguês, que agravava a dissimulação da intrínseca violência da exploração do trabalho assalariado. Aqui o liberalismo da particularidade brasileira ganha os elementos constitutivos do favor, uma forma-ideologia nascida com a escravidão, como pioneiramente assinalou Sérgio Buarque de Holanda4, que emaranha na teia do poder oligárquico-burguês não somente os escravos, mas também os homens livres, em um mecanismo pelo qual se reproduz a classe dominante nas relações sociais5.

A particularidade histórica da sociabilidade brasileira e a tradição autocrática de uma burguesia prussiana/transformista (Lênin/Gramsci), que sempre assumiu um projeto de construção capitalista subordinado ao conjunto hegemônico do capitalismo internacional e, posteriormente do imperialismo, configurou uma forma societal cuja classe dominante atuou permanentemente como repressora dos movimentos sociais para garantir seu projeto de modernização-conservadora e “pelo-alto”, sem o povo e contra ele. Isso significa dizer que desde seus primórdios, a burguesia brasileira tratou as questões sociais como “caso de polícia” ou melhor dizendo, como um “perigo” a ser reprimido. Essa trajetória sócio-histórica conforma a via prusiano-colonial de desenvolvimento do capitalismo brasileiro e, como consequência, sua bürguerliche Gesellchaft incompleta e subsumida à autocracia burguesa, seja em sua forma bonapartista (ditadura explícita), seja em sua forma de legalidade burguesa de autocracia institucionalizada que, após os governos bonapartistas de Deodoro e Floriano, vigeu na Primeira República, até o golpe de 19306.

Não restam dúvidas de que foi o movimento operário, e especialmente sua corrente anarcossindicalista – mesmo considerando todos os limites de uma perspectiva muito mais ético-política que revolucionária e de vezo radical-pequeno-burguês – o primeiro a colocar no centro da vida política brasileira a ausência de liberdades democráticas, numa sociedade apenas saída do horror da escravidão, mas onde continuava presente a mentalidade de seu passado escravista. A difusa ação anarquista tenta conectar sua linha de ação direta, no plano da luta prática, à intenção idealista por princípio, de incrustar na racionalidade industrial em precipitação – que dissolvia as relações sociais arcaicas – , um conteúdo ideológico cientificista, laico e evolucionista que se de um lado, ganhava competência na atração de setores intelectuais pequeno-burgueses não pertencentes ao proletariado, por outro dispersava o núcleo central da luta de classes em lutas genéricas com a permanente recusa da construção de mediações e táticas políticas para o movimento operário e a ineficácia de elaborar uma análise substancial da realidade sócio-histórica brasileira. Mas o fundamental é que com o desenvolvimento industrial no Brasil engendra-se um proletariado moderno, ainda que restrito a algumas cidades. Nesse contexto, a nascente classe operária brasileira constitui-se na maior novidade histórica do Brasil.

Na primeira década dos Novecentos havia mais de mil organizações operárias e combativas nos principais centros industriais brasileiros, como gráficos, sapateiros, metalúrgicos, chapeleiros, têxteis e pedreiros. Na sua vanguarda, os proletários urbanos. Eclodem greves importantes com excelentes saltos organizativos. “De 1906 a 1922, quando da fundação do PCB, foram realizadas inúmeras manifestações e greves operárias, como as movimentações de 1905, no Rio de Janeiro e em São Paulo de metalúrgicos, portuários (estes em paralisação simultânea nos dois estados), trabalhadores do setor do gás, todas elas pela redução da jornada de trabalho. A partir de 1906, as greves ganham maior intensidade […] Somente entre os anos de 1903 e 1916, as principais cidades do Brasil, como São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre e Recife, presenciaram cerca de 84 greves […] Sem dúvida, essas movimentações resultarão no acúmulo organizativo e político que desaguará nas grandes greves operárias de 1917, que se constituirão no início do apogeu e da crise do anarquismo no movimento operário brasileiro”7.

1 Para se ter uma ideia, segundo dados históricos levantados pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), São Paulo, de 239.820 habitantes em 1900, passa a ter 579.033 habitantes em 1920, e o Rio de Janeiro, nos períodos correspondentes, de 811.443 habitantes para 1.157.873 habitantes. O Brasil, como um todo ― ainda nos mesmos períodos ―, salta de 17.438.434 para 30.635.605 habitantes “População Residente, Segundo os Municípios das Capitais – 1871-1991”, Anuário Estatístico – IBGE, 1993, p. 2-7 a 2-9.
2 “O aspecto ‘prussiano’ aparece, assim, no sentido da caracterização de um processo tardio de acumulação de capital, consagrado na análise lenineana como uma forma de desenvolvimento burguês, que se enquadra nas grandes tendências gerais de análise da entificação do capitalismo. Pensamos então, que, para melhor conceituar o processo brasileiro, a noção de via prussiano-colonial é a que expressa sua geneticidade, porque respeita a legalidade histórica de sua condição colonial e, ao mesmo tempo, considera a configuração tardia […] e agrária do processo de acumulação e posterior industrialização do Brasil.” A.C. Mazzeo, Estado e Burguesia no Brasil – Origens da Autocracia Burguesa, SP, Boitempo, 3ª edição, 2015 – 3ª reimpressão de 2020, p. 105.

3 Aqui no sentido da especificidade das formas particulares do capitalismo nas colônias americanas. Na definição de Marx: “[…] Que os donos das plantações na América não só os chamemos agora de capitalistas, senão que o sejam, se baseia no fato de que eles existem como uma anomalia dentro de um mercado mundial baseado no trabalho livre”, K. Marx, Elementos Fundamentales para la Crítica de La Economía Política ( Grundrisse) 1857-1858, México, Siglo XXI, 1986, pág. 476 ( Formen)

4 S. B. de Holanda, Raízes do Brasil, RJ, José Olympio Ed., 1976, pág. 41 e segts.

5 op. cit., pág. 65. Como definiu Schwarz : ”Assim, com mil formas e nomes, o favor atravessou e afetou no conjunto a existência nacional ressalvada sempre a relação produtiva de base, assegurada pela força. Esteve por toda parte, combinando-se às mais variadas atividades, mais ou menos afins dele como administração, política, indústria, comércio, vida urbana, Corte etc. Mesmo profissões liberais, como a medicina, as qualificações operárias, como a tipografia, que na acepção europeia, não deviam nada a ninguém, entre nós eram governadas por ele. E assim como o profissional dependia do favor para o exercício de sua profissão, o pequeno proprietário depende dele para a segurança de sua propriedade, e o funcionário para o seu posto. O favor é a nossa mediação quase universal – e sendo mais simpático do que o nexo escravista, a outra relação que a colônia nos legará, é compreensível que os escritores tenham baseado nele a sua interpretação do Brasil, involuntariamente disfarçando a violência, que sempre reinou na esfera da produção.” Roberto Schwarz, Cultura e Política, SP, Paz e terra, 2005, págs. 65 – 66. (grifos do autor)

6 “Mantendo a tradição inaugurada em 1822, a burguesia proclama a República, longe das massas populares. A tradição prussiana da classe dominante articula, ‘pelo alto’, o golpe de Estado que implanta o regime republicano e uma ditadura militar no país, como conclusão de um processo modernizador iniciado na segunda metade do século XIX, expressando, assim, o apogeu da burguesia do café. Novamente a saída bonapartista é posta em prática. O exército, como instituição, é chamado para representar a ‘vontade coletiva’ do povo brasileiro. Os governos militares, Deodoro e Floriano, representaram justamente a instituição do bonapartismo-colonial, para manter o latifúndio agroexportador e a consequente dependência do país em relação à Inglaterra. [….] Feita a transição para um governo civil – com a eleição de Prudente de Moraes, em 1894 – a burguesia agrária plenamente dona do poder, apenas eliminará o bonapartismo, mantendo, no entanto, através de eleições manipuladas e fraudulentas, o alijamento das massas populares da vida nacional, confirmando, desse modo, a autocracia e o prussianismo colonial do Estado e do capitalismo brasileiros, pelos 41 anos da República Velha.” A.C.Mazzeo, Burguesia e Capitalismo no Brasil, SP, Ática, 1995, 2ª edição, pág.26.

7 A.C.Mazzeo, Sinfonia Inacabada – a política dos comunistas no Brasil, SP/Marília, Boitempo/Unesp-Marília publicações, 1999, págs. 17 e 18 (grifado no original)

* Antonio Carlos Mazzeo é Professor de História Econômica, FFLCH USP/Filosofia das Ciências PUC-SP e membro do Comitê Central do PCB