FDIM: 75 anos em defesa das mulheres e da paz

imagemSessão do Congresso Mundial das Mulheres realizado pela FDIM em Moscou, entre 24 e 29 de junho de 1963, que acolheu a primeira mulher a viajar no espaço, a cosmonauta Valentina Tereshkova (segunda a partir da esquerda). Eugénie Cotton, fundadora da FDIM (ao centro), preside a sessão

AbrilAbril

Por Regina Marques

Em 2021, o pensamento da Federação Democrática Internacional de Mulheres (FDIM) tem plena atualidade e relevância no combate às desigualdades, incluindo as desigualdades entre mulheres e homens.

Em Paris, em dezembro de 1945, nasce uma organização que veio a ser uma das alianças mais importantes do movimento de mulheres. Apenas seis meses se passaram desde o fim da Segunda Guerra Mundial, que trouxera sofrimento sem fim a milhões de pessoas. Milhões de mulheres lutaram contra o fascismo e seus crimes. Lutaram contra os crimes de uma Alemanha hitleriana e defenderam a dignidade humana. Foram submetidas a torturas desumanas nos campos de concentração nazi-fascistas. Viveram e lutaram na Resistência e na clandestinidade.

Estavam unidas por uma exigência: «Nunca mais a guerra!». Entre elas estavam as mulheres que se tornariam as figuras proeminentes da Federação Democrática Internacional das Mulheres Democráticas (FDIM). Mulheres de todas as classes sociais e com diferentes posições ideológicas, políticas e religiosas, especialmente francesas e britânicas, formaram um Comitê Preparatório Internacional para o primeiro Congresso Mundial de Mulheres, que aconteceu em Paris, de 26 de novembro a 1 de dezembro de 1945, e que culminou na fundação da FDIM.

A cientista francesa e lutadora da Resistência Eugénie Cotton foi eleita a primeira Presidente da FDIM; outra resistente, Marie-Claude Vaillant-Couturier, foi a sua primeira secretária geral. Esta, mulher de destacada envergadura política, era uma sobrevivente dos campos de concentração de Auschwitz e Ravensbrück, o campo destinado às prisioneiras políticas. Ficou conhecida como testemunha no julgamento de Nuremberg.

O juramento das fundadoras
No congresso fundador, as 850 participantes de 41 países expressaram a sua vontade de unir forças e lutar pelos seus direitos como mães, trabalhadoras e cidadãs.

«Em nome de 81 milhões de mulheres, juramos solenemente defender os direitos políticos, econômicos, civis e sociais das mulheres, lutar pela criação das condições essenciais para o desenvolvimento harmonioso e feliz de nossos filhos e das gerações futuras, lutar incansavelmente para garantir que o fascismo, em qualquer forma que possa aparecer, seja destruído e que uma ordem verdadeiramente democrática seja criada em todos os países do mundo; lutar incansavelmente para garantir uma paz duradoura no mundo (…) o único garante de felicidade em nosso lar e no desenvolvimento de nossos filhos.». Este juramento tem percorrido toda a existência da FDIM, mesmo atravessando muitas intempéries.

Um percurso que não foi fácil
Em primeiro lugar, o seu aparecimento veio alterar a paisagem das organizações internacionais femininas com sede nos EUA. As duas mais significativas eram o Conselho Internacional de Mulheres, que se ligava em vários países aos Conselhos Nacionais de Mulheres (entre os quais mantinha relação com o Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas) e a Associação Mundial para o Sufrágio Feminino (depois Aliança Internacional de Mulheres) que, vindas do mesmo tronco americano, ocupam espaços políticos e sociais muito semelhantes. Assumem ambas as reivindicações das mulheres da burguesia e não se cansam de denegrir esta nova organização que acusavam de não estar interessada nos problemas das mulheres, sendo apenas uma organização de linha da frente soviética.

São estas que não se cansam de associar a FDIM aos «perigosos comunistas» espalhados no mundo ao serviço do «poder soviético»1

Mas outros oponentes usavam a mesma argumentação2. O Comitê para Atividades Não Americanas (HUAC), fundado em 1938, destacou-se em particular nessa denúncia, num relatório de 1949 sobre a FDIM e a organização americana CAW (Congresso das Mulheres Americanas) que era membro da FDIM. A CAW foi forçada a dissolver-se em 1950 devido à pressão massiva do HUAC. No período que se seguiu, a FDIM teve de lidar com outras situações difíceis, que obviamente também foram devidas à pressão do HUAC.

Como refere Brigitte Triems3, «não foi nada fácil transformar tal união depois da Segunda Guerra Mundial na federação que é hoje».

Naturalmente que a FDIM dava forte ênfase à defesa da paz, resultante das experiências terríveis e da luta de resistência das suas fundadoras, profundamente convencidas de que deveriam fazer tudo para que tal guerra nunca mais assolasse a humanidade. Mas importa referir que elas também viram a paz como um pré-requisito necessário para a implementação dos direitos das mulheres e crianças.4

A FDIM, logo nos seus primeiros anos, tornou-se um pólo de atração das organizações de mulheres dos países libertados da guerra da europa de leste e de muitas outras que, nos seus países, lutavam contra a opressão dos seus povos. Com a sua raiz na luta de resistência ao nazismo e fascismo surgiu com um esteio de esperança para as mulheres do continente africano, da Ásia, na solidariedade com as mulheres do Vietname, na sua luta anti-imperialista, mas também na solidariedade com as mulheres da China, contra as ditaduras fascistas de Espanha, Portugal, Grécia, do Chile e outros países da América latina.

A universalidade da FDIM e a atração de seu programa refletiam-se no seu crescimento constante: em 1945, a FDIM tinha 41 organizações membros; no Ano Internacional da Mulher de 1975 havia 103 organizações e hoje tem 135 organizações membros. Reúne mulheres de diferentes países, independentemente da sua origem, em todos os continentes.

É nesta abrangência e unidade que reside a sua força ainda hoje.

A FDIM teve a sua primeira sede em Paris. Porém, quando protestou contra as ações do poder colonial francês, em declarações e expressões de solidariedade ao povo vietnamita durante a Guerra da Indochina, o governo francês ordenou a sua expulsão da França em 1951. O governo da então RDA ofereceu apoio à FDIM para que, a partir de 1951, o seu secretariado fosse baseado em Berlim.

A FDIM sofreu mais um revés quando enviou uma comissão internacional de inquérito com representantes de 17 países à Coreia do Norte em 1951 para investigar a situação de mulheres e crianças vítimas de ataques aéreos e massacres de civis pelas tropas americanas.

O relatório final «Nós Acusamos», publicado em várias línguas, levou à revogação do seu estatuto consultivo junto do Conselho Económico e Social das Nações Unidas sob pressão dos EUA e da Grã-Bretanha em 1954.

Só em 1967 recuperou esse estatuto, tendo sido readmitida no Conselho Econômico e Social das Nações Unidas (ECOSOC) em 1969.

O I Congresso latino americano de Mulheres (1959) é celebrado em Santiago de Chile. Muitas mulheres destacadas foram presas depois de participarem em grandes acontecimentos internacionais da FDIM. Os governos de direita procuraram sabotar estas realizações, as ditaduras perceberam cedo esta frente que se alargava em todos os continentes, onde se passou a cantar a solidariedade e a liberdade. A FDIM pugnava pelos direitos das mulheres em todas as partes e intervinha sob as mais variadas realidades. É notável como a Resolução sobre os direitos das mulheres, aprovada em 1959 no Chile, e difundida por toda a América latina, incluía reivindicações pela igualdade, direitos civis, pelo direito de voto, leis de proteção laboral, igualdade salarial, direitos sociais para mulheres e crianças, e o direito das camponesas ao uso e posse da terra5. Um desmentido aos seus detratores, portanto.

Sem descanso durante a Guerra Fria
Particularmente no período posterior à Segunda Guerra Mundial, a criação da FDIM permitiu aproximar as mulheres para que se conhecessem melhor e compreendessem melhor as diversas condições em que trabalhavam em seus países, levando em consideração as realidades sociais e políticas dos seus países. Isso resultou em inúmeras ações conjuntas para a defesa dos direitos das mulheres e da igualdade entre mulheres e homens na sociedade.

Em sua longa história, a FDIM tem lutado de forma consistente e ativa pela manutenção da paz, contra a ameaça de guerra nuclear e pelo desarmamento mundial. Particularmente notável é a sua solidariedade inabalável para com as mulheres dos países que lutam pela sua independência nacional e que se opõem à opressão em todas as suas formas. Foram muitas as delegações da FDIM que visitaram os territórios ocupados da Palestina, do Vietnã, do Sahara, e de muitos outros países que lutavam pela sua libertação, levando o calor das palavras lá onde elas eram precisas.

Por sua inestimável contribuição na luta pela paz e pelo desarmamento, Perez de Cuellar, secretário geral da ONU, atribui-lhe a insígnia de «Mensageira da Paz», no Congresso do Ano Internacional da Paz, que ocorreu em Copenhaga, em 1986.

Essa inquestionável solidariedade e amizade fez muitas vezes temer as forças de direita e do imperialismo, sendo que algumas organizações de mulheres, no plano internacional e nacional, colaboraram lançando estigmas e preconceitos sobre esta grande organização que não parou de crescer, não se dissolveu perante os solavancos mundiais e continua a organizar os seus membros e a traçar perspectivas de lutas anti-imperialistas, libertadoras, garantes da igualdade para as mulheres do mundo inteiro.

Na extensa série de atividades da FDIM devem ser incluídos os Congressos mundiais de mulheres que reuniam centenas e até milhares de mulheres de todas as partes do mundo. Depois do congresso fundador, realizou-se o II em Budapeste (1948), seguido de Copenhaga (1953), Viena (1958), Moscou (1963) , Helsínquia (1969), Berlim (1975), Praga ( 1981). Com a queda do Muro de Berlim, e com a impossibilidade da sua sede permanecer em Berlim, a FDIM não parou. Fez o seu X Congresso em Sheffield (1991), depois em Paris (1994, 1998), no Líbano (2002), em Caracas (2007), em Brasília (2012) e o último, o XVI, foi no ano de 2016 em Bogotá.

O XVII Congresso será, se a Covid-19 nos deixar, em Caracas de novo, neste ano de 2021. É um ano de muitas incertezas mas também de muitos desafios, que as dirigentes atuais se dispõem a prosseguir. Tal como no início, a unidade das organizações de mulheres e os objectivos da FDIM permanecem válidos e insubstituíveis.

Os Congressos da FDIM foram sempre espaços de profunda reflexão sobre a situação das mulheres no mundo, momentos de solidariedade e grande unidade que animaram e entusiasmaram vastos sectores de mulheres, incluindo as organizações de profissionais, as sindicalistas, as mulheres de movimentos religiosos, as ativistas da paz, e tantas outras, para uma luta internacionalista e interseccional a favor das mulheres. Forjaram-se redes de solidariedade que alentaram as massas femininas para o desenvolvimento das suas lutas, por melhores condições de vida, pelo direito ao trabalho, pela dignidade e igualdade na família e na sociedade.

Nos intervalos dos congressos, foram imensos os seminários, mesas redondas, os apelos às Nações Unidas e as denúncias da opressão e das violências exercidas sobre as mulheres, alargaram-se as denúncias dos actos criminosos e discriminatórios cometidos pelos governos autoritários e repressivos.

As mulheres portuguesas deram uma importante contribuição para a FDIM
Ao tempo do fascismo, em Portugal, as mulheres portuguesas sempre partilharam e arriscaram a liberdade pela FDIM. Maria Lamas e outras mulheres como Georgette Ferreira, Alice Sena Lopes, Margarida Tengarrinha, Maria Luísa Costa Dias, Laura Cunha, intervêm em importantes Congressos Mundiais das Mulheres, organizados pela FDIM. Participam nos Congressos de 1953 e 1963 e depois em várias reuniões das suas estruturas.

No Congresso de Helsínquia, pouco antes da formação do Movimento Democrático de Mulheres (MDM), participaram Sofia Ferreira, Maria Luísa Costa Dias, Maria da Piedade Morgadinho, Maria José Ribeiro e Cecília Areosa Feio. Os seus contributos constituíram uma forte denúncia da situação das mulheres em Portugal e da repressão fascista que sobre elas se abatia. A grande coerência e a convicção que puseram nas suas intervenções vão possibilitar que se desenvolva uma onda de solidariedade da FDIM com as mulheres portuguesas, em particular com as presas políticas. Foi assim, que a FDIM decidiu, em 1970, realizar uma Semana de Solidariedade com a mulher portuguesa, quando o MDM, recém-constituído, está representado pela primeira vez numa reunião do seu Conselho Directivo.

Desde a sua criação o MDM é membro da direcção da FDIM
Como membro do Direcção da FDIM desde os anos 706, o MDM participa regularmente e com o maior empenho nas suas realizações. Fruto desse empenhamento e prestígio, o MDM recebeu em Portugal, depois da liberdade conquistada com Abril, várias reuniões do Comitê de direção que ajudaram a consolidar relações de amizade, alargaram as redes de conhecimento e informação dentro do nosso país, aperfeiçoaram as nossas redes de solidariedade e o nosso conhecimento.

Com a libertação do fascismo, o MDM teve a oportunidade de participar em muitas atividades da FDIM em várias regiões do mundo e sob as mais diversas temáticas. Esteve em Mesas de Solidariedade com a África do Sul, Namíbia e Zimbabué contra o apartheid; contra a ditadura de Pinochet; nas Filipinas sobre os problemas das mulheres rurais, na Hungria sobre a situação da Mulher trabalhadora; sobre as crianças em Chipre e sobre o AIC em Moscou.

Em Portugal, deu voz à solidariedade com as mulheres brasileiras e dos PALOP, tendo integrado as delegações da FDIM nas várias conferências da ONU para os direitos das mulheres e das crianças. Com a FDIM viveu momentos brilhantes da história de transformação dos povos e dos direitos das mulheres.

No quadro da FDIM, e apesar das tumultuosas alterações geopolíticas, o MDM intervém para que as relações entre as mulheres prossigam na senda da dignificação das mulheres do mundo inteiro e para a resolução dos graves problemas que estão a afetar injustamente a condição humana de milhões de mulheres, em Portugal e no mundo.

A atualidade e relevância do pensamento da FDIM
Com o andar dos anos, outros temas surgiram e foram sendo objecto das preocupações da FDIM. Por exemplo, «as mulheres e os meios de comunicação social em tempos de globalização e neoliberalismo» concentraram em Havana, no ano 1998, centenas de mulheres de vários países e várias organizações internacionais, entre as quais uma vintena de mulheres do MDM. A atualidade das temáticas relativas aos meios de comunicação, violência e discriminação, novas tecnologias e internet, participação política e acesso a tomadas de decisão, economia e desenvolvimento sustentável, independência nacional, soberania e paz; temáticas e problematizações ainda hoje na ordem do dia das nossas preocupações não deixam margem para esquecer ou deturpar o sentido da FDIM como uma organização, que embora atravessando momentos difíceis, não perdeu o sentido fundador da sua existência.

Neste ano 2021, em que se intensificam cenários de guerra, aumento de desemprego e crise económica e social, na Europa e EUA, aumento do tráfico de mulheres para a prostituição, num período em que se assiste a uma tremenda crise na área energética, climática e alimentar que afeta desigualmente os povos e as mulheres em todas as regiões, o pensamento da FDIM tem plena atualidade e relevância no combate às desigualdades, incluindo as desigualdades entre mulheres e homens.

A FDIM continua com os seus 75 anos de história sem quebrar laços, sem minimizar esforços, ligada às organizações e às mulheres sempre voltadas para as situações vividas e nas quais tantas mulheres foram sacrificadas. Mantendo-se fiel ao juramento feito pelas fundadoras em 1945 continua a trabalhar hoje para melhorar a situação das mulheres, para garantir a democracia e a paz, para combater o fascismo e o neofascismo, o colonialismo e o imperialismo, o racismo e preparar o caminho para um futuro feliz para as gerações futuras.

É esta confiança inspiradora que se celebra no 75º aniversário da FDIM. Vigorosa organização que tem sabido manter e erguer a bandeira da amizade, da solidariedade e da paz indissociáveis dos direitos das mulheres, direitos que estão em grande parte por cumprir em tantas regiões do planeta. Esta é a organização que congrega em si as experiências e os testemunhos das grandes conquistas e das lutas das mulheres do século XX. Sem esquecer as perdas e muitos retrocessos que perpassaram este período da história, é a FDIM – com a sua rede de filiadas – que continua a cimentar laços e lançar desafios que mobilizam as mulheres do mundo inteiro.

Regina Marques é membro da Direção e Conselho Nacional do MDM e do Conselho de Direcção da FDIM

1. Des femmes qui changent le monde. Histoire du conseil international des femmes (1888-1988), in Éliane Gubin et de Leen Van Molie (dir). ed. Racine, Liège, 2005.
2. Committee on Un-American Activities, U.S. House of Representatives [hereafter, HUAC], Report on the Congress of American Women (Washington: United States Government Printing Office, 1950, 23 October 1949, original release date).
3. Brigitte Triems é atualmente Presidente da Associação Democrática de Mulheres (Alemanha) e foi durante longos anos secretária da FDIM em Berlim. Com Audrey McDonald escreve um artigo, «Women of the world unite» na publicação australiana Search News, Dec. 2020.
4. «Hoffnungen auf eine bessere Welt: Die frühen Jahre der Internationalen Demokratischen Frauenföderation (FDIM/WIDF) (1945 – 1950)», in Gabriele Kämper, Regine Othmer, Carola Sachse (Eds.), Gebrochene Utopien. Feministische Studien vol. 27, no. 2 (November 2009): p. 241-257.
5. Francisca de Haan, «La Federación Democratica Internacional de Mujeres (FDIM) y America Latina, de 1945 a los años setenta» (p. 17-44) in Queridas camaradas. Historias iberoamericanas de mujeres comunistas, Adriana Valobra y Mercedes Yusta (Eds).
6. Vide I Congresso do Movimento Democratico de Mulheres.