Patentes impedem vacinas para todos

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Frédéric Pierru, Frédérick Stambach e Julien Vernaudon

ODIARIO.INFO

Ainda a questão das vacinas Covid-19, hoje simultaneamente questão central no combate à pandemia e escândalo que deixa à vista de todos a extrema desumanidade do poder do capital. Este texto enuncia, com grande moderação, os mecanismos que permitiriam aos governos suspender os direitos de propriedade intelectual das BigPharma, de modo a que os países com capacidade para o fazer pudessem produzir a vacina para os outros. Todavia e a não ser que se forme uma grande mobilização exigindo essa ação, não há que esperar dos atuais governos da UE qualquer iniciativa nesse sentido.

Durante o confinamento da primavera de 2020, testemunhamos uma efusão de boas intenções. Na sociedade generosa e reformada que surgiria em resultado da pandemia, as vacinas seriam “bens públicos globais”. Tão recentemente como em novembro, o presidente Emmanuel Macron advertiu com gravidade: “Precisamos de evitar a todo custo o cenário de um mundo a duas velocidades, onde apenas os mais ricos podem proteger-se contra o vírus e reiniciar vidas normais.” (1)

Mas todas essas promessas permaneceram ilusórias boas intenções. Em 18 de janeiro de 2021, o Diretor-Geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), Tedros Adhanom Ghebreyesus, fez esta devastadora observação: “Mais de 39 milhões de doses de vacina foram já administradas em pelo menos 49 países de altos rendimentos. Apenas 25 doses foram administradas num dos países de rendimento mais baixo. Não 25 milhões; não 25 mil; apenas 25”. Falou da probabilidade de um “catastrófico fracasso moral”.

Isso ocorreu apesar de dois programas implementados, por iniciativa da OMS, para aproveitar o incremento da solidariedade internacional.

Primeiro, Covax, que é um ‘mecanismo de aquisição conjunta’ que ‘garantirá acesso justo e equitativo às vacinas para todas as 190 economias participantes.’ Um contrato para 40 milhões de doses da vacina (com RNA mensageiro) com a empresa americana Pfizer (trabalhando com a startup alemã BioNTech) foi assinado, seguido por outro com a AstraZeneca (trabalhando com a Universidade de Oxford), para 120 milhões de unidades adicionais. O objetivo declarado era muito ambicioso: fornecer dois bilhões de doses até o final de 2021.

O segundo mecanismo é o C-TAP, o Covid-19 Technology Access Pool, cujo objetivo era garantir a partilha da propriedade intelectual, conhecimento e especialização necessários para produzir vacinas em grande escala, incluindo em países em desenvolvimento. Porém, o C-TAP é, por enquanto, uma concha vazia, enquanto o Covax demora a decolar, a ponto de a OMS falar agora num cronograma de 2022, ou mesmo 2024.

Estados individuais e a União Europeia, encurralados pelas suas declarações públicas, empenham-se no doublespeak (dupla linguagem). Na verdade, a realpolitik venceu e favorece as empresas farmacêuticas multinacionais. Apesar da grande opacidade envolvendo os “contratos de compra antecipada”, algumas informações úteis têm sido filtradas. Mais uma vez, podemos ver que a lei de ferro do capitalismo neoliberal se mantém: os prejuízos foram socializados e os lucros privatizados. As empresas farmacêuticas foram subsidiadas no montante de milhares de milhões de euros pelos Estados membros da UE e pela Comissão Europeia – que investiu mais de 2 bilhões de euros no desenvolvimento de vacinas – para investigação e desenvolvimento, depois para a produção em massa de doses, limitando assim os riscos do negócio. Mesmo assim, essas empresas mantêm o controle sobre as patentes, negociam ferozmente preços com os Estados e restringem as doações e a possível revenda para países em desenvolvimento. Segundo a Secretária de Estado belga do Orçamento Eva de Bleeker, as taxas negociadas por Bruxelas variam entre 1,78 € para a AstraZeneca e 10 € para CureVac e 14,68 € para Moderna (2).

A Comissão Europeia às aranhas

As cláusulas de entrega parecem ser das mais flexíveis, o que deixou a Comissão Europeia em completa confusão quando a AstraZeneca disse em janeiro que não poderia entregar os 80 milhões de doses planejadas dentro do prazo acordado (primeiro trimestre de 2021). Isso desencadeou uma crise política com o Reino Unido, que desejava manter as doses produzidas, antes que se chegasse a um acordo sobre metade do contrato.

No caso de efeitos secundários graves, a responsabilidade das empresas é reduzida ao mínimo – ficaria novamente a cargo dos Estados signatários. Mas seria injusto culpar apenas as multinacionais que conseguiram impor contratos tão flagrantemente desequilibrados. Segundo o New York Times, o Banco Europeu de Investimento concedeu um empréstimo de US $ 100 milhões à BioNTech, condicionado ao recebimento de até US $ 25 milhões dos lucros (3) – como se fizesse sentido lucrar com as vacinas.

Adicione a esses inacreditáveis contratos um choque geopolítico entre as nações que lutam pelo desenvolvimento, fabricação e acesso a preciosas vacinas. Isso envolve China e Estados Unidos, é claro, mas também a Rússia – que acaba de conquistar uma vitória estratégica com o crescente reconhecimento da sua vacina Sputnik V – além da Alemanha, Israel e Reino Unido. Apesar de vários começos decepcionantes e em falso, o Reino Unido conseguiu organizar uma campanha dinâmica de vacinação, minando os argumentos apresentados por uma protecionista União Europeia durante os árduos confrontos sobre o Brexit. Já em maio de 2020, o governo de Boris Johnson criara uma Força-Tarefa de Vacinas para desenvolver investigação, produção e estratégia para vacinas, por exemplo estabelecendo uma parceria com a empresa francesa Valneva para produzir uma nova vacina na Escócia.

Era o oposto da lentidão e passividade da França. Até 4 de fevereiro, o Reino Unido tinha administrado pelo menos uma dose da vacina a 16,2% da sua população, em comparação com 4% em Espanha, 3,9% na Itália, 3,6% na Alemanha e apenas 2,7% em França. A França está não apenas ficando para trás neste concerto de nações, como os seus centros de vacinação foram montados às pressas em janeiro de 2021 sob pressão da mídia e assentam em pessoal da saúde sobrecarregado e exausto. Pior, e contra toda a lógica, o governo continua a reduzir o número de leitos hospitalares. Depois de não conseguir vencer a corrida por uma “vacina nacional”, a multinacional farmacêutica francesa Sanofi – juntamente com outras empresas como Delpharm ou Recipharm – começou a trabalhar como subcontratada (engarrafamento, embalagem, etc.) no final de fevereiro.

É compreensível que, neste tenso contexto, as populações dos países em desenvolvimento tenham deixado de ser uma prioridade. Com as empresas farmacêuticas guardando as suas patentes, os mecanismos C-TAP e Covax não estão funcionando: 13% da população mundial, vivendo em países ricos, encomendou 51% das doses, segundo a Oxfam. E dentro da própria UE, as primeiras entregas revelaram desigualdades flagrantes: a Itália recebeu 9.750 doses, a França 19.500 e a Alemanha 151.125 (4). Mesmo em relação à dimensão das populações dos respectivos países, essas diferenças permanecem inexplicáveis e parecem sugerir que alguns são mais iguais do que outros. Além disso, a Alemanha está celebrando acordos privados para adquirir mais doses, apesar de fazer parte do mecanismo de aquisição conjunta de vacinas da Comissão (5).

Garantir a ‘igualdade de valor das vidas’ (6) entre o Norte e o Sul globais, bem como entre os países do Norte e dentro de cada país, envolveria fundamentalmente uma revisão das regras do mercado farmacêutico. A crise atual fornece um estudo de caso dos absurdos do modelo econômico dominante quando aplicado a esse setor. De facto, graças aos desenvolvimentos em biotecnologia e genômica, os laboratórios estão cada vez mais terceirizando o processo de I&D – e portanto os seus riscos – para startups que frequentemente se beneficiam de fundos públicos e são apoiados por universidades (7). É o caso da BioNTech e da Moderna. No entanto, apesar do crescente emaranhado da investigação básica, fundos públicos e do setor privado, os direitos de propriedade intelectual continuam tornando-se cada vez mais poderosos. Além disso, os recursos públicos, através dos sistemas de saúde, tornam o mercado farmacêutico solvente, pois este funciona por meio de um processo de leilão: as multinacionais fazem os países competirem pelos preços desejados, mesmo que isso signifique conceder secretamente descontos, com base no volume de vendas.

Perante a pilhagem de recursos públicos e a escassez de vacinas, muitos profissionais de saúde (8), ativistas, organizações não governamentais, bem como alguns países, estão exortando os Estados a usar o licenciamento compulsório. Este conceito, que surgiu nos Estados Unidos no final do século XVIII, foi incorporado nas normas internacionais em 1925, graças a uma emenda à Convenção de Paris para a Proteção da Propriedade Industrial (9). A licença compulsória ou ex officio foi consagrada em 2001 pela chamada Declaração de Doha, após a mobilização de países duramente atingidos pela epidemia de HIV, em particular a África do Sul. O Artigo 31 do Acordo de Direitos de Propriedade Intelectual, que deve aplicar-se durante 30 anos, permite uma “dispensa” em “emergências nacionais ou outras circunstâncias de extrema urgência ou em caso de uso público para fins não comerciais”. Isto pode ser feito “sem a autorização do titular dos direitos»(10).

A França está ainda mais em posição de alegar que o decreto pioneiro de 8 de fevereiro de 1959 permite ao Estado suspender patentes em caso de quantidade ou qualidade insuficiente de medicamentos, mas também se medicamentos essenciais para a saúde pública estiverem com preços invulgarmente elevados. Trata-se de encontrar um equilíbrio entre os direitos exclusivos conferidos pelas patentes e os melhores interesses da saúde pública – isso é hoje claramente necessário. Por que não invocá-lo, tal como foi solicitado pela África do Sul, Bolívia, Quênia, Eswatini (ex-Suazilândia), Mongólia, Moçambique, Paquistão e Venezuela?

Surgem de cara dificuldades jurídicas. Devemos definir “emergência”, e não há, até o momento, nenhum consenso sobre isso no Conselho do Acordo de Direitos de Propriedade Intelectual da OMC (11). Além disso, numerosas empresas podem ser afetadas, já que se trata de uma pilha de patentes depositadas segundo a especialização, acesso a dados clínicos, ingredientes necessários à produção de vacinas … A batalha pode demorar.

Intimidação dos EUA

Há também um obstáculo logístico: há que poder produzir milhões de doses em escala industrial. No entanto, se voltarmos ao caso da França, a crise lançou uma severa luz sobre a desindustrialização, que contraria a soberania da saúde desejada por Macron. O fiasco da máscara – levou dois meses para relançar a produção na primavera de 2020 – deveria ter levado a França a se preparar para a etapa seguinte. A escala e a complexidade do desafio de fabricar as vacinas de RNA mensageiro, as mais eficazes de momento, mereciam um planejamento maior.

E não menos importante, um obstáculo geopolítico aproxima-se. Usar licenças compulsórias é entrar em confronto com outros poderes soberanos, especialmente os EUA, onde estão atualmente localizadas as duas empresas que fornecem as vacinas de melhor desempenho. Terão a França, a UE e outras nações coragem de as enfrentar? Paris nunca o fez. Quando, em 2014, a empresa Gilead fixou o preço do Sovaldi, medicamento muito eficaz contra a hepatite C, em € 41.000, o governo preferiu racionar os pacientes e aceitar esse preço exorbitante em vez de ativar a licença ex officio e correr o risco de retaliação norte-americana.

Os EUA, em contrapartida, nunca tiveram tais escrúpulos. Depois do 11 de Setembro, quando bioterroristas ameaçaram com patógenos como o antraz, não hesitaram em brandir as licenças compulsórias como chantagem para produzir o medicamento contra o antraz, a ciprofloxacina, cuja patente pertencia à farmacêutica alemã Bayer. O laboratório finalmente concordou em baixar o preço. O mesmo país elaborou a chamada “lista negra especial 301″ de países que não respeitam o Acordo de Direitos de Propriedade Intelectual, incluindo a Índia (que produz versões genéricas de medicamentos ainda sob patente), a China e, por algum tempo, o Canadá. Faça o que eu digo, não o que eu faço!

Fazer isso no nível da UE parece o mais adequado, mas esta crise mostra mais uma vez que a dimensão geopolítica e industrial da União Europeia é inexistente. O exemplo britânico tenderia até a mostrar que ser membro é uma desvantagem. Um país como a França poderia considerar o uso da licença compulsória. A condição seria que recuperasse a sua independência rompendo com o dogma do livre comércio, forjando uma ferramenta industrial e de saúde eficiente por meio de um pólo de medicina pública e investindo maciçamente em I&D e também no sistema de saúde (recursos humanos e materiais), de modo a lidar com futuras pandemias.

Estas são ideias para o futuro. Por enquanto, seria aconselhável aproveitar as muitas iniciativas de cidadãos que defendem uma vacina como um bem público global e, acima de tudo, chegar a um acordo com outras potências, em particular China, Rússia e Índia, a fim de frustrar o domínio das farmacêuticas americanas, cujos interesses são defendidos pelo Estado federal. Diplomatas franceses deveriam pressionar para tentar obter licenças voluntárias para as vacinas russas e chinesas – ou seja, a suspensão temporária dos direitos de propriedade intelectual com o consentimento de seus fabricantes.

Certamente, não seria absurdo fazer o financiamento público e a redução do risco de investimentos condicionados a vacinas de baixo custo ou mesmo a preço de custo (com custos verificados). Todas as informações (patentes, processos) deveriam ser fornecidas a empresas em estados pobres ou emergentes capazes de estabelecer cadeias de produção e vender vacinas a preços baixos a países em desenvolvimento ou compradores globais, que poderiam doá-las a países muito pobres.

Poderíamos, então, pôr fim ao triste espetáculo atual, o culminar do que alguns chamaram “economia organizada de livre comércio”, onde apenas os poderes exorbitantes que os Estados concederam à indústria farmacêutica são realmente livres (12).

Fonte: https://mondediplo.com/2021/03/13vaccines

Notas:
1. Discurso de Emmanuel Macron sobre a luta contra a pandemia Covid-19 e a preparação contra futuras pandemias, 21 de Novembro de 2020.
2. Tweet de Eva de Bleeker, 17 de Dezembro de 2020, apagado no dia seguinte.
3. Matt Appuzzo e Selam Gebredikan, ‘Governments sign secret vaccine deals. Here’s what they hide”, The New York Times, 28 de Janeiro de 2021.
4. Virginie Malingre, Vaccination contre le Covid-19 : les ratés et lenteurs de l’UE éclipsent ses succès’ (’Covid-19 vacine: os fracassos e os atrasos da UE eclipsam seus sucessos’), Le Monde, 6 de Fevereiro de 2021.
5. Julian Deutsch et al., ‘Thanks to deep pockets, Germany snaps up extra coronavirus jabs’, Politico, Washington, DC, 7 Janeiro 2021.
6. Didier Fassin, De l’inégalité des vies, Fayard – Collège de France, Paris, 2020.
7. Margaret Kyle e Anne Perrot, ‘Innovation pharmaceutique : comment combler le retard français ?’’ (PDF), Les Notes du Conseil d’analyse économique, nº 62, Paris, Janeiro de 2021.
8. “Les vacins anti-Covid-19 doivent être un bien public mondial!” (”As vacinas Covid-19 devem ser um bem público global”), petição online.
9. Gaëlle Krikorian, ‘License obligatoire’, em Marie Cornu, Fabienne Orsi et Judith Rochfeld (ed), Dictionnaire des biens communs, Presses universitaires de France, Paris, 2021 (segunda edição).
10. Texto sobre Acordos de Compra Antecipada, WTO.
11. Kaitlin Mara, ‘Decisão sobre renúncia de propriedade intelectual sobre a Covid Technology em espera até 2021; quais são as próximas etapas? ‘, Medicines Law and Policy, Washington, DC, 18 de Dezembro de 2020.
12. Fabienne Orsi, ‘Brevets d’invention’, em Marie Cornu, Fabienne Orsi e Judith Rochfeld (ed.), Dictionnaire des biens communs, op. cit.

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