A dialética da história no país dos golpes

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Manifestação contra o golpe na Cinelândia, centro do Rio de Janeiro, é reprimida pelo Exército em 1º abril de 1964

por Vinícius Okada D’Amico*

Em 16 de maio de 1924, Gramsci pronunciava no Parlamento Italiano o famoso discurso contra mais uma das investidas fascistas de Mussolini. No debate com o líder fascista, o comunista italiano sintetizava de maneira precisa: “A vossa violência é sistemática e é sistematicamente arbitrária, porque vós representais uma minoria destinada a desaparecer.” [GRAMSCI, 1984, p. 3]. Gramsci, apesar de estar certo, não pôde ver o fim do fascismo italiano, que tardaria vinte anos mais para ocorrer. Ao contrário, viveria longos anos na prisão fascista, por ordem direta do próprio Mussolini.

Nos tempos de cárcere, contudo, dedicou-se à atividade intelectual e lá produziu um legado teórico incomensurável para a luta revolucionária. Em um de seus escritos, afirma:

“De fato, toda fase histórica deixa os seus traços nas fases posteriores; e estes traços, em certo sentido, tornam-se o seu melhor documento. O processo de desenvolvimento histórico é uma unidade no tempo, pela qual o presente contém todo o passado e do passado se realiza no presente o que é ‘essencial’, sem resíduo de um ‘incognoscível’ que seria a verdadeira ‘essência’. O que se perdeu, isto é, o que não foi transmitido dialeticamente no processo histórico, era por si mesmo irrelevante, era ‘escória’ casual e contingente, crônica e não história, episódio superficial, sem importância, em última análise.” [GRAMSCI, 1984, p. 119].

No Brasil de 2021, o que salta aos olhos enquanto “essência” transmitida pelo “passado”, como na dialética da história descrita por Gramsci, é justamente a violência, a “violência sistemática”, que como na denúncia do comunista italiano contra Mussolini, nada mais é do que consequência de uma classe “destinada a desaparecer”. Nos próximos meses, é bastante factível que alcancemos a marca de 5 mil mortes diárias, bem como mais de meio milhão de mortos pela pandemia. A violência da luta de classes brasileira atinge patamares surreais na atual conjuntura.

Nossa violência estrutural é fruto da “herança colonial” a que fomos e ainda estamos submetidos em nosso desenvolvimento sócio-histórico, mais precisamente, desenvolvimento “oligárquico-dependente”, nas palavras de Agustín Cueva. Desse modo, Cueva “dialetiza e precisa” a afirmação de Ruy Mauro Marini, a respeito da dependência latino-americana, segundo o qual “não é porque foram cometidos abusos contra as nações não industriais que estas se tornaram economicamente débeis, é porque eram débeis que se abusou delas” [MARINI, 2011, p. 143]. Portanto, para Cueva, a essência do subdesenvolvimento não é mais que o resultado da exploração das burguesias dos países desenvolvidos sobre as nações mais débeis, em que se reproduzem “em escala ampliada […] os mecanismos básicos de exploração e dominação”, processo que tem como base a assim chamada “herança colonial”, que nada mais é do que a “incorporação da América Latina ao sistema mundial” em seu estágio imperialista, “sobre a base de uma matriz econômico-social preexistente”, esta moldada em estreita relação com o “capitalismo europeu e norte-americano” [CUEVA, 1983, p. 23].

A essência histórica do desenvolvimento oligárquico-dependente latino-americano, portanto, se objetiva de maneira que “o capitalismo não se implante aqui mediante uma revolução democrático-burguesa que destrua de maneira radical as bases da antiga ordem”, da mesma forma em que “se desenvolva subordinado à fase imperialista do capitalismo” [CUEVA, 1983, p. 81]. A violência enquanto política de Estado no Brasil é a expressão da essência de nosso desenvolvimento oligárquico-dependente, de nossa “herança colonial”. Nas palavras de Nelson Werneck Sodré: “O colonialismo econômico […] não sofre pausas por si mesmo e nem adota transigências. Seu caminho é […] um quadro de empobrecimento, quando não de miséria. Suas necessidades correspondem […] a um quadro de espoliação” [SODRÉ, 1967, p. 111].

Esse permanente quadro de espoliação a que o “colonialismo econômico” submete nosso país pode ser muito bem visto no comportamento da burguesia brasileira diante da crise do coronavírus. No início de 2020, diversos fundos de investimento e rentistas em geral celebravam a oportunidade inédita que adquiriram na pandemia [FILHO, 2021]. O grande capital absorveu a passos galopantes seus concorrentes menores e, de início, as mortes causadas pela pandemia pouco importavam. O vírus rapidamente passou das classes altas para as classes exploradas e, enquanto aí ficou, pouco importava. O problema é que, neste 2021, a pandemia e a política genocida do Estado brasileiro fizeram lotar as UTIs e hospitais, tanto públicos quanto privados, e acelerar exponencialmente as mortes e a propagação do vírus. A pandemia volta para o andar de cima também e, na medida em que o Brasil mantém-se como epicentro mundial, afeta sobremaneira a economia. É por isso que aqueles setores da burguesia que celebravam no ano passado, “[e]u posso afirmar, sem sombra de dúvidas, que a empresa está melhor que estava antes da pandemia” [FILHO, 2021], hoje questionam cada vez mais o Governo Federal [WAACK, 2021].

Portais como o Valor Econômico têm destacado também nos últimos meses essa concentração de capital e, mais ainda, a notória campanha promovida pelos setores financeiros contra uma nova rodada do auxílio emergencial, ou seja, o particular da possibilidade de um novo auxílio emergencial expressa o universal que é a ojeriza burguesa contra qualquer mínima possibilidade de recuo diante da atual agenda de contrarreformas neoliberais. Com o cenário eleitoral para 2022 sendo desenhado, articulações para diversas possibilidades sendo esboçadas às claras, com Lula ou sem Lula, uma coisa é certa: “as grandes empresas não estarão dispostas a abrir mão dos ganhos obtidos com as reformas feitas desde a queda de Dilma. No limite, terão consciência de que avançar na pauta é inviável eleitoralmente, mas não aceitarão retroceder.” [FERNANDES, 2021].

Retomemos os dizeres de Gramsci. O “essencial” do “passado” brasileiro que se objetiva na dinâmica do “presente” é a assombrosa estabilidade do programa burguês neoliberal desde, pelo menos, o fim da ditadura militar (ainda que com claras contradições entre certos períodos). O “fio da história” que movimenta o quadro atual é a persistência gritante da agenda política e econômica burguesa, ainda que reformada periodicamente de acordo com as diferentes correlações de força. A transição entre períodos se deu, portanto, “por cima”. Da ditadura à redemocratização, de Collor ao impeachment, do golpe à eleição de Bolsonaro e, ao que tudo indica, de Bolsonaro ao que quer que venha a ser seu sucessor: conciliação pelo alto. É nesse sentido que aponta também o camarada Jones Manoel, em texto recente, que a burguesia aponta na direção da repetição, uma vez mais, da velha política de “esquecimento nacional”: a redemocratização que não puniu os torturadores da ditadura militar agora dá a vez para a nova “união nacional” que não punirá os culpados pelo genocídio da pandemia [MANOEL, 2021]. É válida a máxima de Lênin sobre o essencial na política: “fora o poder, tudo é ilusão”. O recuo tático de uma força organizada que detém o poder não pode ser confundido como prenúncio da derrota destas forças. Mais que nutrir falsas esperanças, é preciso aprender com nossa história, sobretudo, como disse Gramsci, o que permanece dela.

Assim Nelson Werneck Sodré, ao analisar o processo de “abertura” da ditadura militar, salienta o quanto um processo político-institucional como o da anistia resulta da correlação de forças, visto que “assinala, geralmente, uma mudança operada no quadro real e que necessita ser consagrada no nível institucional”. A anistia foi, e normalmente é sempre, “episódio preliminar, a abertura […] de uma nova etapa, de uma fase diversa, diferente daquela que acaba de ser encerrada”; contudo, “o Brasil assistiu, na agonia da ditadura […], ao andamento de um projeto de anistia em que o Executivo unipessoal e absoluto se reservava todas as iniciativas e marcava gravemente o lento compasso”, ou seja, o país assistiu uma vez mais a uma “conciliação pelo alto”, processo que foi sujeito às conhecidas ingerências das classes dominantes, pois, acima de tudo, “a anistia era gerada por um regime que dela necessitava para persistir, para sobreviver, como um desafogo e, ao mesmo tempo, por uma resistência democrática que dela necessitava para poder continuar em avanço” [SODRÉ, 1984, p. 122]. O processo de transição conservadora que representou o caso particular da anistia ilustra bem o desenvolvimento universal de nossa república. Concluindo o raciocínio, Sodré arremata:

“De um lado, portanto, forças poderosas em retraimento organizado e metódico; de outro, forças ainda débeis, em avanço muito lento e desorganizado. Assim, enquanto reivindicação popular, a anistia não teve condições de progresso significativo. Os detentores do poder apoderaram-se dessa reivindicação, nessa altura, e empolgaram-na, tornando-a viável”. [SODRÉ, 1984, p. 122].

Assim como assinala o historiador Domenico Losurdo, a genialidade de Gramsci se deve, em boa parte, ao fato de que este soube responder ao seu momento histórico [LOSURDO, 2006]. Viveu o auge do fascismo italiano e, ainda assim, jamais abaixou as bandeiras revolucionárias. Apontou sempre a tática correta diante da encruzilhada aparente. Por isso, em texto de 1924, aponta claramente que, à maneira como se colocava na mídia e no parlamento, o problema político era falso. Não se tratava, na realidade, de uma luta entre duas alternativas, “liberalismo ou fascismo”. Isso porque o fascismo, que estava a atemorizar o povo e também agora a própria elite, havia sido armado pela mesma burguesia que tentava então cavar uma alternativa moderada frente à explosão violenta sobre a Itália. E diante disso, insistiu Gramsci, que derrotar o fascismo não é somente substituí-lo ao poder, mas é, sobretudo, desarmá-lo e também desarmar quem armou suas milícias. Derrotar o fascismo é derrotar também e sobretudo a burguesia que lhe deu poder, como visto a seguir:

“[S]omente a luta de classe das massas operárias e camponesas derrotará o fascismo. Somente um governo de operários e camponeses pode desarmar a milícia fascista. Quando tais ideias essenciais tiverem penetrado o espírito das massas operárias e camponesas por meio de nossa incansável propaganda, os trabalhadores das fábricas e dos campos […] entenderão a necessidade de construir Comitês Operários e Camponeses para a defesa de seus interesses de classe e para a luta contra o fascismo. Eles entenderão que esses são os instrumentos necessários da luta revolucionária e de sua vontade de substituir o governo de assassinos por um governo de operários e camponeses. No momento de fechamento do Congresso Liberal, que procura ainda vencer sobre o povo trabalhador, de um lado a outro da Itália os operários e camponeses responderão a sua sonora e vazia tagarelice com: NEM FASCISMO, NEM LIBERALISMO: SOVIETISMO!” [GRAMSCI, 2021].

Assim sendo, a crise política atual revela a debilidade assombrosa da esquerda brasileira no presente. Contudo, revela ainda mais escancaradamente a debilidade profunda do balanço histórico que tem sido feito sobre a ditadura militar e seu decorrente processo de “transição democrática”. A república brasileira não está a cair de maduro. A crise assinala, melhor do que nunca, que está a seguir o sentido último para o qual foi erigida dos 21 anos sombrios de autocracia: assegurar o poder político e econômico da burguesia e do imperialismo. O essencial, portanto, é a estabilidade do programa burguês neoliberal nas décadas que se passaram e nas que virão, a flexibilidade com que este programa se amoldou às diferentes correlações de força e a debilidade com a qual o movimento de massas do proletariado sucumbiu diante do inimigo, inúmeras vezes. O problema a ser retomado, com o devido senso de urgência, é o problema do poder na política. Este, assim como alertou Lênin, é o central. É o que falta para um balanço sério de nossa história e, acima de tudo, de nossas derrotas. Novamente citando Sodré, este faz balanço profundo que, no calor do momento, ilustra bem a paralisia que tomou o país diante da derrota inesperada: “A interrupção da vigência de instituições democráticas […] em abril de 1964, surpreendeu e deixou perplexos aqueles que supunham uniformemente positivo e ascensional o desenvolvimento histórico. […] A derrota inesperada desorienta […] e […] a interrupção do processo democrático corresponde sempre a atraso”; contudo, vale apontar que as derrotas, ainda mais as que não se espera, “ensinam, de forma contundente” e, assim, “saber aprender a lição é uma necessidade; não perder a perspectiva, exigência imperiosa” [SODRÉ, 1967, p. 250-251]. O que fica, como “essência”, do processo que culmina na derrota de 1964 é a debilidade das “forças democráticas” diante do poder do inimigo, a debilidade também da própria democracia brasileira que marcou a ferro e fogo o século XX com inúmeros golpes. Da luta de classes brasileira no século XX, do fechamento de um ciclo que se objetiva no golpe de 1964, Sodré extrai o seguinte:

[…] Em primeiro lugar, é agora muito mais fácil admitir que as forças democráticas estavam politicamente derrotadas, em 1964, quando sobreveio a derrota militar, que apenas sancionou aquela e por isso foi tão fácil, não encontrando resistência ponderável. O sintoma da referida derrota política era tão visível que não era visto: a reação detinha o poder; não o tomou, apenas expeliu dele os elementos que temia. Trata-se, no fim das contas, de um dos problemas menos conhecidos e menos estudados, entre nós, — o problema do poder.

[…] A análise acurada dos golpes de 1937, 1945, 1954 e 1964 mostra que essa trivialidade, esse traço óbvio: detentores do governo que perdiam função por não serem detentores do poder. […] Note-se: em nenhum desses casos, houve resistência ponderável, houve luta; os detentores do poder agiram contra os que não detinham poder. […] Em 1964, os detentores do poder decidiram afastar do governo aqueles que não lhes inspiravam confiança, após terem retirado deles as parcelas de poder que haviam conseguido pelo uso do aparelho de Estado — após isolá-los, politicamente. Operaram na posse plena e pacífica dos instrumentos de poder, que detinham. […] Os que não aprenderam com essa lição arriscam-se a perder o fio da História.” [SODRÉ, 1967, p. 250-253].

O golpe de 1964 produziu absoluta perplexidade nacional no cenário imediatamente posterior. O pavor na impotência diante da autocracia confirmada. A paralisia diante do poder real. A dialética da história brasileira nos mostra um país erigido por sucessivos processos de “conciliação pelo alto”. Da independência à abolição: transições conservadoras visando excluir o povo do processo político e manter o essencial da estrutura econômica e política colonial. O atraso brasileiro é a persistência violenta da “herança colonial” em nossa história. É a recusa e a debilidade com que lidamos com essa “herança”. No período recente, é a ausência de um balanço profundo de nossas derrotas históricas. De um balanço autocrítico (e não autofóbico!) do século XX. A questão do poder é central na política. A estratégia e a tática são instrumentos essenciais que carecem de plena consciência quanto à gênese sócio-histórica de nosso desenvolvimento político e social. Os acordos, as alianças, os compromissos, as frentes de massa são táticas que permeiam nossa história em seus diversos momentos e se apresentam agora também em nosso momento histórico. Cabe, portanto, manter firme o alerta de Lênin quanto ao próximo passo a ser dado: “Toda a questão consiste em saber aplicar essa tática [das alianças] para elevar, e não para rebaixar o nível geral da consciência, de espírito revolucionário e de capacidade de luta e de vitória do proletariado” [LENIN in SODRÉ, 1968, p. 179].

*Vinícius Okada é graduado em Arquitetura e Urbanismo pela USP de São Carlos e mestrando em História e Fundamentos da Arquitetura e do Urbanismo na FAU-USP. É militante do PCB e da UJC na cidade de São Paulo.

Referências

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FERNANDES, Maria Cristina. Bolsonaro entrincheirado. Valor Econômico 2021. Disponível em: https://valor.globo.com/politica/coluna/bolsonaro-entrincheirado.ghtml – acesso em 4 de abril de 2021.

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FILHO, João. A cruzada do mercado financeiro contra os R$ 600. Outras Palavras 2021. Disponível em: https://outraspalavras.net/outrasmidias/a-cruzada-do-mercado-financeiro-contra-os-r-600/ – acesso em 4 de abril de 2021.

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MANOEL, Jones. Perdão ou mais uma conciliação pelo alto? PCB 2021. Disponível em: https://pcb.org.br/portal2/27041/perdao-ou-mais-uma-conciliacao-pelo-alto/?fbclid=IwAR2kGQ_u9zwndkieSJCJB2h0WLBMBjq7hnqQ6ReRjC6YFFgwDhlwqGk1h3Y – acesso em 4 de abril de 2021.

MARINI, Ruy M. Vida e obra. 2. ed. São Paulo: Editora Expressão Popular, 2011.

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