Humilhante derrota da OTAN

imagemUm fuzileiro norte-americano na base aérea de Bost, em Helmand, Afeganistão (foto de arquivo)

Créditos: Andrew Renneisen / Getty Images

José Goulão

ABRIL ABRIL

No cenário de guerra enraizada no Afeganistão, o anúncio da retirada das forças norte-americanas e da OTAN surge como uma grande operação cosmética para gerir o conflito segundo outras metodologias.

O presidente dos Estados Unidos anunciou que o seu país e a OTAN vão retirar tropas do Afeganistão até 11 de setembro deste ano. Independentemente do que possa dizer-se sobre a suposta grandeza do ato, estamos perante uma humilhante confissão de derrota numa guerra que, ao cabo de 20 anos, deixou a martirizada nação numa situação tão ou mais grave do que aquela em que se encontrava quando a invasão imperial se iniciou. Além disso, e para que conste desde já, a retirada de efetivos convencionais não significa o abandono do teatro de operações por agressores ao serviço dos mesmos interesses expansionistas que promoveram a invasão.

Joseph Biden, como não poderia deixar de ser porque assim funciona a propaganda em que assenta a memória futura da história dominante, cantou vitória ao anunciar a decisão. Disse que «podemos acabar com esta guerra interminável» porque «Bin Laden está morto e a al-Qaeda enfraquecida». Sobre a figura de Bin Laden, velho colaborador dos Estados Unidos nas operações desenvolvidas no Afeganistão, são muito mais as histórias mal contadas do que as certezas; quanto à al-Qaeda, está bastante mais forte hoje porque expandiu-se do território afegão para o Oriente Médio, Norte da África e África Central, servindo até de braço armado à OTAN para destruir a Líbia e tentar fazer o mesmo na Síria.

Biden fabricou uma «verdade» de acordo com as conveniências imperiais de propaganda, mas a realidade no teatro de operações afegão desmente-o palavra por palavra: os Talibã, inimigos a abater pela invasão da Otan, estão mais fortes do que há 20 anos e controlam mais de metade do território; os corpos de segurança criados originalmente pelos invasores são incapazes de estender a sua influência para lá da região de Cabul; o governo supostamente «democrático» instalado pelos ocupantes exerce o poder na capital e pouco mais, assenta na corrupção e no colaboracionismo e resulta de fraudes eleitorais das quais ninguém duvida, a começar pelos seus tutores estrangeiros.

Por outro lado, há dois aspectos para os quais a invasão militar ocidental contribuiu de maneira determinante: os assombrosos números, jamais atingidos, de produção de ópio e consequente tráfico de heroína em escala mundial (o Afeganistão representa mais de 90% do total, segundo a ONU); e a transformação do Afeganistão numa espécie de base de retaguarda do ISIS, Daesh ou Estado Islâmico: o Pentágono assegurou a operação de transferência e salvamento para território afegão dos terroristas deste grupo depois de derrotados na Síria – e parcialmente no Iraque – por ação conjunta dos poderes militares da Rússia e de Damasco.

O anúncio da retirada da OTAN do Afeganistão é, sem qualquer dúvida, uma confissão de derrota da maior organização militar mundial, com ambições globalizantes; a invasão teve como saldo um fracasso de todos os objetivos que poderiam considerar-se positivos e pelo alento que deu às vertentes negativas – tráfico de drogas e terrorismo dito «islâmico». Além disso, as tropas norte-americanas e aliadas deixaram no terreno uma situação que assegura a continuação da guerra entre o poder de Cabul tutelado pelos interesses ocidentais, o poder Talibã e a miríade de poderes oscilantes de senhores da guerra de índole tribal, regional e étnica, fazendo crescer diversos tráficos – drogas, fontes de energia, armas, influências. Uma confusão na qual se moverá o verdadeiro império de poder construído pela CIA no Afeganistão, com uma componente clandestina financiada pelo tráfico de entorpecentes, como aconteceu noutras paragens, por exemplo na América Central.

«Entramos juntos, nos adaptamos juntos, saímos juntos», proclamou o secretário de Estado norte-americano, Anthony Blinken, aos seus colegas da OTAN reunidos em Bruxelas. Na verdade, a retirada surge 200 mil mortos depois, com suspeitas de prática de crimes contra a humanidade, como investiga do Tribunal Penal Internacional, e deixando o teatro de operações em condições sociais e humanitárias piores do que as encontradas. É sempre assim por onde a OTAN passa.

Há 42 anos
A informação dominante insiste na tecla de que a guerra dos Estados Unidos contra o Afeganistão se iniciou há 20 anos.

Não é verdade: a agressão iniciou-se há 42 anos, em 1979, quando o presidente James Carter, seguindo conselho do seu assessor e estratego terrorista Zbigniew Brzezinski, começou a armar grupos «islâmicos» de índole tribal e mentalidade medieval para combater o governo secular de Cabul, que mantinha relações privilegiadas com a União Soviética. Nasceram assim os «Mujahidines», a primeira vez em que o imperialismo norte-americano recorreu abertamente ao terrorismo de fachada «islâmica» como braço armado.

Tratava-se, como explicou o próprio Brzezinski, de «proporcionar aos soviéticos o seu próprio Vietnã».

A verdade é que Moscou mordeu a isca e depois foi o que se sabe: a intervenção no Afeganistão como passo determinante para o fim da própria União Soviética.

Os Estados Unidos, através da CIA e de serviços secretos de países ocidentais e do Oriente Médio, refinaram a estratégia de intervenção islâmica e reforçaram o papel dos «Mujahidines» com a criação da al-Qaeda, iniciada com o recrutamento pela CIA do príncipe saudita Osama Bin Laden. Este foi também o caldo de cultura que deu origem aos Talibãs, posteriormente aliados da administração Clinton, durante os anos noventa, na estratégia fracassada de fazer passar pelo Afeganistão um oleoduto para escoar petróleo do Cáspio contornando a Rússia e o Irã. Assim foi sendo transformado o território afegão no primeiro grande viveiro de organizações de mercenários «islâmicos», braços terroristas atuando hoje através do Oriente Médio, Magrebe e África do Norte, Central e Oriental, Balcãs, Cáucaso, Ásia Central e Meridional.

O resto é história dos últimos 20 anos, uma nova fase da agressão norte-americana contra o Afeganistão iniciada com a invasão militar direta sob o pretexto da nunca demonstrada responsabilidade de Bin Laden nos atentados terroristas de Nova York em 11 de setembro de 2001.

Agora estamos à beira de uma «retirada militar» da OTAN. Que é, afinal, uma espécie de «novo Vietnã» para os Estados Unidos, uma vez que a opção militar pura e dura fracassou e tem de ser substituída pela continuação da guerra sob novas roupagens.

Aliados «estão refinando planos…»
No dia 15 de abril, isto é, algumas horas depois da proclamação de Joseph Biden anunciando a retirada do Afeganistão, o jornal New York Times (NYT) – muito bem informado nestas matérias – escreveu o seguinte: «O Pentágono, as agências de inteligência norte-americanas e os aliados ocidentais estão refinando planos para instalar uma menos visível mas também poderosa força (no Afeganistão) para impedir que o país se transforme de novo numa base terrorista».

Ainda segundo o mesmo jornal, o Pentágono está «discutindo com os aliados» os locais onde «reposicionar» forças num processo em que «as tropas da OTAN se retiram formalmente», mas a Turquia, membro da aliança, «deixará efetivos para trás de modo a ajudar a CIA a recolher informações».

Além disso, informa também o NYT, os Estados Unidos têm no terreno mais mil efetivos do que os 2500 oficialmente declarados: trata-se de membros de forças de elite para operações especiais que atuam sob comando duplo da CIA e do Pentágono. Infere-se que este lote de agentes de guerra não deverá retirar-se com o contingente oficialmente contabilizado.

Não é segredo que ao longo dos últimos quarenta anos a CIA construiu um verdadeiro império operacional no Afeganistão, alicerçado nas ligações profundas resultantes da criação, desenvolvimento e atuação de grupos terroristas «islâmicos» e também nas comunidades do narcotráfico – que nunca foram tão florescentes como durante a ocupação militar da OTAN.

A ampla e complexa estrutura da CIA inclui um exército privado formado com base em elementos contratados às forças especiais afegãs e que operam independentemente do exército regular, respondendo apenas perante os serviços secretos, controlados diretamente pela agência de espionagem norte-americana. Este corpo operacional dedica-se especialmente à captura, sequestro, tortura e aos assassinatos cometidos com drones.

As informações oficiais norte-americanas, por outro lado, são omissas quanto ao destino dos cerca de seis mil mercenários contratados a empresas multinacionais de segurança para engrossar o aparelho de guerra da OTAN no Afeganistão. De Washington chegam apenas ecos das preocupações dessas organizações quanto à continuação ou não desses contratos.

No cenário de guerra enraizada no Afeganistão, o anúncio da retirada das forças norte-americanas e da OTAN surge como uma grande operação de cosmética para poder gerir o conflito segundo outras metodologias e furtá-lo ao escrutínio das opiniões públicas dos Estados Unidos e de nações aliadas. Disse Joseph Biden: «Manter milhares de tropas no terreno e concentradas num único país, à custa de milhares de milhões de dólares por ano, faz pouco sentido para mim e para os nossos líderes». Uma «fonte oficial» do presidente descodificou esta mensagem ao jornal Washington Post: «A realidade é que os Estados Unidos têm grandes interesses estratégicos no mundo; o Afeganistão não tem, neste momento, o mesmo nível de outras ameaças». Como a China e a Rússia, poderá acrescentar-se sem receio de adulterar o espírito da mensagem.

Em linhas e entrelinhas há certezas que emergem do cenário criado pelo anúncio do presidente norte-americano sobre a saída de tropas do Afeganistão: a guerra vai prosseguir, mantendo-se o envolvimento ocidental ainda que sob outras formas; o país vai continuar a funcionar como viveiro de grupos «islâmicos» – como pode se deduzir da sua utilização como centro de acolhimento de contingentes do ISIS ou Daesh retirados de outras frentes e agora usados na guerra contra os Talibã e na desestabilização da Ásia Central.

A maior de todas as certezas neste momento, porém, não explicitada no discurso oficial, é a de que o anúncio da retirada de efectivos da OTAN significa uma confissão de fracasso militar da aliança. A força bruta mobilizada há 20 anos para esta guerra não conseguiu derrotar os inimigos então identificados – os Talibãs – e aprofundou a deriva política, social e humanitária do país.

Uma operação que iria demorar alguns dias, segundo as promessas do presidente George W. Bush feitas em outubro de 2001, já vai em 20 anos.

A anunciada retirada não significa o fim do conflito mas tem implícita a derrota de quem executou a invasão, a Aliança Atlântica. Acima de tudo arrasa o mito propagandístico segundo o qual a paz e a democracia podem nascer de guerras de agressão provocadas alegadamente para as instaurar.

José Goulão, exclusivo O Lado Oculto/AbrilAbril