Entrevista do Momento: José Paulo Netto

imagemPor Milton Pinheiro – membro do Comitê Central do PCB

Entrevista do Jornal O Momento (PCB da Bahia) com José Paulo Netto

O MOMENTO – A conjuntura brasileira, diante da sua complexidade, torna-se cada vez mais difícil de ser desvelada. Como você examina a cena política atual?

JOSÉ PAULO NETTO – Não há dúvida de que a conjuntura é extremamente complexa, mas já possuímos elementos que nos permitem compreender muito da sua pluricausalidade, das suas particularidades e das tendências que nela se contêm – elementos analisados por inúmeros estudiosos, aliás situados em posições teóricas e políticas muito diversas. Num espaço necessariamente restrito como este, e levando em conta as minhas limitações, é evidente que só posso sintetizar umas poucas reflexões a título de hipóteses que devem ser testadas e aprofundadas. Começo por assinalar que a atual conjuntura deve ser pensada considerando que ela não pode ser desvinculada do quadro da crise geral e sistêmica que afeta o capitalismo em escala mundial. Esta crise, que já se desdobra e cronifica pelo menos desde a última década do século passado, ganhou explicitação mais agudizada com a emergência da pandemia provocada pelo novo coronavírus – pandemia que desnudou muito da roupagem mistificadora do tardo capitalismo. Esta notação é indispensável, mas julgo que a conjuntura brasileira deve ser analisada especialmente a partir dos seus condicionantes endógenos, internos – para a sua compreensão, decisiva é a dinâmica da sociedade brasileira (e também para isto já contamos com aportes teóricos relevantes).

Penso que, antes de tudo, é preciso ressaltar que, na conjuntura, não é a pandemia (e a crise sanitária que ela evidenciou) que responde pelo cenário político desolador em que estamos atolados – a pandemia, sem qualquer dúvida, foi um detonador do paroxismo deste cenário, mas nem de longe é uma das suas causas. Os mais de 400.000 mortos que temos nas costas (no momento em que decorre esta entrevista) são, em larguíssima medida, o resultado da necropolítica própria do governo cujo Executivo é comandado por um mentecapto. As raízes mais próximas da nossa conjuntura política estão no golpe parlamentar de 2016, que efetivou o impeachment de Dilma Rousseff. As vésperas do golpe de agosto de 2016 – que não cabe discutir aqui e que já conta com análises substantivas – trouxeram à tona uma forma de intervenção política dos grupos mais reacionários da sociedade que não se via há mais de meio século no país: a direita foi para as ruas e se impôs provisoriamente, sem o concurso do Exército, da Marinha e da Aeronáutica. Ela ganhou as ruas num crescendo inédito, fomentado por um monumental aparato privado de agências que, mobilizando as infovias e a grande imprensa estabelecida, desatou uma guerra ideológica que rapidamente viu-se assumida (e, bem provavelmente, financiada) pelo segmento mais retrógrado da historicamente covarde burguesia nativa, já amedrontada pelas jornadas de junho de 2013. Foi quando os rebatimentos da crise econômica do capitalismo começaram realmente a se fazer sentir no país, indicando o esgotamento da margem de manobra da política de conciliação de classes e de cooptação de setores de camadas trabalhadoras que marcou o período dos governos Lula e Dilma, com a neutralização de forças populares então promovida, que a ofensiva desestabilizadora da direita subversiva avançou mais e acabou derivando no resultado de 2018. A inviabilidade eleitoral dos representantes diretos do grande capital na campanha para a Presidência da República abriu o caminho para que um medíocre e desqualificado do corporativismo da política empreendesse – com a anuência óbvia do mesmo grande capital – a sua aventura bonapartista. E deu no que estamos suportando: degradação da política, destruição de conquistas sociais históricas, erosão das estruturas econômicas, inépcia administrativa, atentados às instituições republicanas, desprezo e arrogância frente às recomendações científicas na irrupção da pandemia, genuflexão diante do trumpismo, isolamento e ridicularização internacionais e por aí vai – com todas as concretas ameaças ao ordenamento constitucional e democrático. No primeiro quadrimestre do presente ano, as funestas consequências dessa intentona bonapartista tornaram-se já tão patentes que o próprio grande capital procura desvincular-se dela, todavia sem questionar o cerne do que é apresentado como o seu projeto econômico (as “reformas” neoliberais) – basta ver a posição da chamada grande imprensa que o representa, clamando reiteradamente por um “candidato de centro” para se contrapor, em 2022, à agenda sócio-cultural e ambiental destrutiva do capitão, ícone de todas as milícias (digitais ou não). Neste momento, parece que as forças democráticas saem da defensiva e buscam algum protagonismo; mesmo no marco do movimento sindical dos trabalhadores, bastante disciplinado nos últimos anos, verificam-se sinais de revitalização. Mas não há que se fazer ilusões: qualquer alternativa democrática séria, consequente, implicará uma profunda reativação dos movimentos populares e a reinserção do núcleo duro das classes trabalhadoras organizadas – o proletariado – na cena política. Sem esta reinserção, não teremos soluções: teremos arranjos e arreglos, de pouca dura e incapazes para realizar a tarefa da necessária reconstrução nacional no mundo pós-pandêmico.

O.M. – Você escreveu um ensaio histórico sobre a ditadura militar de 1964. Existem resquícios desse período no atual arcabouço institucional brasileiro?

J.P.N. – Quero lembrar que, no livro que você gentilmente recorda, não me refiro ao regime instaurado em abril de 1964 como simples “ditadura militar” – procurei caracterizá-lo como resultante de um golpe civil-militar. A caracterização não é apenas um detalhe, porquanto permite definir com rigor a natureza do regime que dele acabou por emergir, que o querido e saudoso Florestan Fernandes sintetizou como uma forma específica de “autocracia burguesa”. Daquele regime – até pelo tipo de ultrapassagem (a “transição pelo alto”) que propiciou a retomada democrática – ainda restam fortes traços; pense-se, por exemplo, na legislação sobre a segurança nacional, a que os serventuários do atual ocupante da chefia do Executivo têm recorrido para intimidar os seus críticos. Contudo, não me parece correto aproximar a conjuntura atual aos idos de 1964. O golpe de 1964 resultou de um processo de contrarrevolução preventiva, próprio do período da Guerra Fria, e que levou ao poder um bloco de forças que conspiraram e se organizaram por pelo menos uma década – e que, quando chegaram ao poder, tinham um programa para o país. É indiscutível que tal programa supunha vigorosas restrições à democracia (como se constatou quando, para implementá-lo, o terrorismo de Estado via AI-5 demonstrou-se indispensável). Mas aquele bloco de forças contava com recursos humanos cuja qualificação teórico-política não pode ser, nem de longe, comparada com a gente que hoje instrumentaliza o Executivo federal. Lembre-se que, na orientação macroeconômica, havia figuras como Roberto Campos e Otávio Gouveia de Bulhões – diante dos quais o nanismo de Paulo Guedes mede-se milimetricamente. Pode-se comparar um ministro da Justiça como Milton Campos a um Sérgio Moro e sucessores? O primeiro ditador que chegou ao Planalto escolheu para a sua Casa Civil um intelectual, o baiano Luís Viana Filho. Diz-se que Castelo Branco lia autores franceses no original e, ao que se saiba, não era do gênero de colecionar malta de milicianos a seu redor. Está aí uma pequena amostra da degradação política a que estamos submetidos hoje. O grupo que chegou ao Planalto, na sequência do processo eleitoral de 2018, só tem a ver com o que ascendeu ao poder em 1964, por via de um golpe civil-militar, na decisão de romper com a legalidade democrática e na alergia à democracia – todavia, no grupo atual, a alergia foi convertida em autêntico ódio à democracia, qualquer democracia, ainda que restrita. Ademais, este grupo carecia e carece de qualquer programa para o país, exceto a liquidação de tudo aquilo que cheire a conquistas civilizatórias da Modernidade. No atacado, é gente despreparada, inculta, ignorante, tosca mesmo.

O.M. – Como você examina a relação de forças na luta de classes em curso, em nosso país?

J.P.N – Ao contrário do que alguém já disse, nas sociedades capitalistas, as lutas de classes não tiram férias. Desenvolvem-se muito irregularmente e nunca de forma linear – às vezes aberta e espetacularmente, outras vezes subterrânea e discretamente. E, com frequência, sem se expressar no nível especificamente político. Mas estão sempre – insista-se: sempre – operantes. São vetores reais e objetivos nas organizações societárias regidas pelo capital – a sua efetividade não depende da vontade dos sujeitos políticos, ainda que deles dependa a sua direção e, em boa medida, o seu desenlace.

Por razões já suficientemente esclarecidas por estudiosos da formação social brasileira, neste país violento em demasia contra a “arraia-miúda”, o “povão”, mas preferencialmente contra os não-brancos pobres (e aqui, sabe-se, a pobreza está muito associada à cor da pele, numa população com fortíssima composição afro-descendente, oprimida ademais por um racismo estrutural), as lutas de classes tomaram historicamente formas pré-políticas. Só puderam emergir como lutas explicitamente políticas nos poucos lapsos democráticos que o nosso povo teve oportunidade de experimentar. Na conjuntura atual, registrando-se o agravamento da crise econômico-social, com um desemprego acentuado e uma veloz pauperização das massas trabalhadoras – e isto na sequência da desmobilização popular já aludida e no quadro da pandemia –, compreende-se que na superfície da vida social as lutas de classes, na sua expressão política, não sejam imediatamente visíveis. Mas me parece indubitável que elas estão se potencializando e, como na imagem da velha toupeira que repentinamente põe a cabeça de fora, logo voltarão a tirar o sono dos ricaços e seus representantes e apaniguados. A meu ver, a questão essencial posta por esta potencialização é a da direção política que pode dar sentido à sua emergência e à sua concreção. Sem organização, sem orientação consciente e mobilização articulada, jogando apenas com o seu espontaneísmo, as resultantes podem ser extremamente problemáticas. Este é, parece-me, o problema central que se coloca para as forças democráticas e, especialmente, para as forças democráticas da esquerda.

O.M – Podemos estabelecer uma conexão entre a mortandade estabelecida pela Covid-19 e o governo do agitador fascista Jair Bolsonaro?

J.P.N. – É ululantemente óbvio que sim. A pandemia não foi criada por Bolsonaro – o mentecapto não é o responsável por ela; mesmo sem a sua figura, decerto muitos brasileiros e brasileiras inevitavelmente morreriam. Mas ele é, indiscutivelmente, o responsável maior, embora não o único, pela dimensão catastrófica que a pandemia adquiriu no país – não por acaso, há pouco me referi à necropolítica. Ele, com o seu despreparo para exercer o poder que lhe foi episodicamente conferido, com a sua falta de educação e de compostura, com a sua ignorância, o seu negacionismo, as suas atitudes levianas e as suas ações e omissões – em suma, com todos os traços que o tornam essa caricatura presidencial lamentável sob todos os aspectos, ele já está estigmatizado e condenado à vala comum pela história. Porém, isto não pode servir como consolo para a memória dos familiares e amigos de, até agora, 400.000 mortos, nem como sucedâneo da punição que a ele cabe pelas afrontas à vida republicana e democrática: é absolutamente necessário que seja julgado no plano político (para isto, deve ter alguma valia a CPI em andamento, se não acabar em mais outra pizza) e devidamente processado nas instâncias pertinentes da justiça.

O.M – Gostaríamos que você avaliasse a presença fascista na atual quadra política brasileira.

J.P.N – Sabemos que o fascismo não foi liquidado quando o soldado soviético fincou a bandeira vermelha da ex-União Soviética no que restou do Reichstag em ruínas, em maio de 1945. O fascismo, nas suas distintas e várias formas, é uma possibilidade contida no desenvolvimento monopolista do capitalismo: onde há capitalismo assentado em organizações monopolistas, o fascismo é sempre uma alternativa que, frequentemente valendo-se até de uma retórica anticapitalista, serve ao segmento mais reacionário do grande capital. Prova-o a sua revivescência na contemporaneidade, inclusive no Brasil. Não se deve e não se pode subestimar o fascismo entre nós. O ovo da serpente ganhou visibilidade com a ofensiva da direita na sequência das jornadas de junho de 2013 – e o fascismo é, hoje, já chocado o ovo, a ponta da lança mais ofensiva e mais ameaçadora à manutenção de mínimos estatutos democráticos no Brasil. O combate a ele, sistemático, diuturno, é dever inadiável de todos os que prezam, em qualquer escala, os valores civilizatórios e as garantias deles decorrentes, os únicos capazes para fundar a resistência, a travagem e a reversão das tendências conducentes a tornar a vida social o território privilegiado da barbárie. É evidente que o bonapartismo bolsonarista favorece, estimula e fomenta a divulgação de formas ideológicas nitidamente fascistas. Todo fascista brasileiro é, hoje, suporte do bolsonarismo. Mas não se pense que a massa dos votos que propiciaram a chegada de Bolsonaro ao Palácio do Planalto sejam fascistas – antes, pense-se que a maioria dos seus eleitores foram motivados mais pelas ignorância e a desinformação política, pelo caldo de cultura que deu um sentido antipopular à recusa do hegemonismo processado naqueles fenômenos que a grande mídia burguesa designou por “lulo-petismo” e que, particularmente em relação a camadas médias urbanas, estimulou o florescer de um ressentimento de classe que leva água poluída ao moinho inescrupuloso do fascismo. (Este ressentimento é flagrante no ódio que estratos das camadas médias urbanas e do pequeno e médio empresariado destilam em face de Lula.) Ouso mesmo dizer – e decerto posso estar lavrando em erro – que, se chegarmos a ter um processo eleitoral sem coações em 2022, depois das catástrofes sanitária e econômico-social que continuaremos a experimentar nos próximos vinte e poucos meses, o bolsonarismo perderá o falso brilho que ainda exibe por agora. As próprias dissensões que a movimentação burguesa revela nos últimos meses (não se esqueça que a burguesia nativa está longe de constituir um bloco homogêneo) são indicadoras de uma visível redução da base social do bolsonarismo – se elas prosseguirem, como acredito que prosseguirão, será inevitável o seu rebatimento na base eleitoral do mentecapto.

O.M. – A partir de quais balizas você analisa o atual momento de ação/reflexão da esquerda brasileira na luta pela democracia e por um projeto estratégico?

J.P.N – A noção de esquerda, também no Brasil de hoje, é um problema a comportar muita polêmica e não vou entrar nela, levianamente, numa entrevista. Falando de um ponto de vista estritamente pessoal, embora eu seja um simples acadêmico aposentado – mas que não vive solto no espaço, posto que vinculado ao PCB, partido que tem conhecidas formulações estratégicas já dadas à luz pública –, prefiro ater-me a dois pontos principais: I) o campo de uma esquerda socialista (que não pode ser sumariamente conotada como uma esquerda que recusa reformas econômico-sociais abertas a transformações substantivas da sociedade brasileira, uma esquerda à moda passadista, que imagina a revolução enquanto disrupção armada, como guerra civil) – este campo não está limitado a siglas partidárias e, na realidade, transcende em muito os partidos atualmente existentes; é um espaço amplo, plural e diversificado campo social; II) o acervo já existente para a formulação de um projeto estratégico factível para a transformação profunda da sociedade brasileira, direcionada para o socialismo, é apreciável, mas demanda ainda um esforço coletivo de partidos, de instituições da sociedade civil, de sujeitos (coletivos e individuais) do mundo do trabalho e do mundo da cultura para a sua objetivação. A formulação de um tal projeto é um processo difícil e complexo, até mesmo na medida em que deve excluir posturas hegemonistas e incluir componentes autocríticos. E as exigências e urgências postas pela conjuntura reclamam para o seu equacionamento imediato e progressista um programa comum da esquerda capaz de aglutinar, na luta contra as ameaças à democracia, forças que não são de esquerda. Isto significa que, a meu juízo, a esquerda socialista tem que se dispor a promover e a participar de uma frente democrática simultaneamente à constituição de um sólido e autônomo bloco das suas próprias e distintas forças. E tem de fazê-lo sem perder de vista e sem ocultar que, na sua perspectiva, a luta pela democracia, uma democracia de participação ampliada e progressiva, é inseparável da luta pelo socialismo. A tarefa demanda notáveis esforços coletivos, mas tenho a firme convicção de que as lições que a história já nos legou, e não só no Brasil, demonstra que ela pode ser levada a cabo com êxito. Sabemos há muito, ao menos no nível teórico, que unidade não é o mesmo que identidade – somente se une o que é diverso.

O.M – Recentemente você lançou uma obra seminal sobre a vida e a obra de Marx. Podemos contar com Marx para enfrentar a erosão do sistema capitalista e para o que fazer?

J.P.N – Agradeço a qualificação de seminal para a minha biografia de Marx – penso que se trata de um trabalho sério e útil, porém tão só uma simples contribuição ao estudo do mais importante teórico social da modernidade. Contudo, a resposta à sua pergunta talvez vá decepcioná-lo e aos seus leitores. Estou absolutamente convencido de que, sem Marx, nada compreenderemos de essencial da erosão mencionada e, ainda, da conjuntura brasileira. É a partir de Marx que a dupla Esfinge que temos pela frente – o tardo capitalismo e a particularidade brasileira – poderá ser decifrada; se não o fizermos, seremos por ela devorados. No entanto, a decifração exige mais do que o conhecimento da vida de Marx e da sua teoria: exige que, a partir do método que ele descobriu, com o contributo de marxistas que o sucederam e também de cientistas sociais que se situam fora da tradição marxista, mas sem concessões ao ecletismo, sejamos capazes de desenvolver a análise concreta da nossa situação concreta. É somente à base desta análise que poderemos nos orientar quanto ao que fazer. Aqui, Lênin – autor da determinação da “análise concreta da situação concreta” – continua Marx e é mais que lição: é exemplo. Ele só se habilitou a responder praticamente à pergunta, aliás título do romance de Tchernychevski, quando, partindo d’O capital, pesquisou suficientemente a sua Rússia. A bússola estava em Marx, mas foi Lênin quem realizou a viagem da descoberta.

Imagem: Fundação Dinarco Reis