A verdadeira violência é a desigualdade social

imagemProtesto social no Monumento aos Heróis em Bogotá.

Foto Sophie Martínez

Em entrevista ao Semanário VOZ, do Partido Comunista Colombiano, o renomado pesquisador de Antioquia Eduardo Restrepo reflete sobre o momento político, as contradições de um país convulsionado e dividido, a heterogeneidade da juventude que está nas ruas, a disputa pelo sentido de nação e a decadência da universidade na situação atual

Por Simon Palacio

VOZ: A greve nacional e as massivas mobilizações sociais deixaram o país chocado. Qual a leitura desse novo cenário político?

– É um cenário emergente que abriu uma fratura no imaginário político do país porque nos encheu de desafios. São acontecimentos que por um lado entristecem, mas também que geram um cenário de esperança. Manter esse equilíbrio é importante.

Lamentamos ver mulheres violadas sexualmente pela Polícia, enquanto a brutalidade da Esmad opera impunemente. Da mesma forma, é ultrajante que a mídia e certos setores da sociedade se preocupem mais com as coisas, ou seja, com todo esse vandalismo, do que com a própria vida das pessoas. Dá raiva ver uma elite política indolente e covarde, pescando em um rio turbulento. É preocupante ver como surgem expressões de racismo e ódio de classe contra os trabalhadores, por meio daqueles que clamam publicamente por estratégias paramilitares.

Existem também situações que geram esperança. Milhares de pessoas, a maioria jovens, tomaram as ruas como terreno para deliberações políticas. Há também uma expectativa de criatividade visual, sonora e afetiva que transborda, o que gera a empolgante ideia do carnaval.

Da mesma forma, setores populares organizados em resistência, como os bairros de Puerto Resistencia, aumentam o sentimento de otimismo. A Minga Indígena del Cauca foi impecável: ela entrou, ficou e saiu de Cali, apesar de tudo o que foi feito e dito contra eles, que configuraram um ensino de pedagogia política para o país.

As intervenções simbólicas voltadas a derrubar a memória eurocêntrica encarnada em monumentos de conquistadores genocidas, como Sebastián de Belalcázar ou Gonzalo Jiménez de Quesada, e ao mesmo tempo renomear simbolicamente lugares como a Avenida Misak são importantes. Tudo é muito promissor. Tenho 50 anos e nunca vi nada parecido neste país. Estão acontecendo coisas que apontam para transformações que já são um fato.

VOZ: Nesse sentido, o país está mudando?

– A greve nacional tornou-se um grande acontecimento político. As redes, a mídia, o governo, o povo, etc., foram questionados. Se a greve queria definir uma agenda para o surgimento de conversações e sensibilidades políticas, acho que foi bem sucedida. Também expôs as profundas contradições e desigualdades de dois países incomensuráveis.

Por um lado, temos uma Colômbia de “gente do bem” que, embora hoje seja muito mais complexa e contraditória, foi hegemonizada por muitos anos pelo uribismo, pelo paramilitarismo e pelas irrupções cristãs pentecostais. São eles que se aproximam da Polícia e da Esmad, justificando as graves violações dos direitos humanos na tese das maçãs podres.

E há outra Colômbia, hoje nas ruas, frustrada, amargurada, ignorada, empobrecida e, sobretudo, desprezada. Este país é identificado pela “gente do bem” como índios, ñeros, marihuaneros, vândalos, bandidos, esquerdistas, guerrilheiros, gente violenta, prostitutas, etc. Ou seja, os castro-chavistas, os da dissipada revolução molecular. Sempre houve essa experiência e essa diferenciação, mas o desemprego conseguiu mostrar-lhes a partir da desigualdade que essas experiências históricas representam.

VOZ: A juventude, além do movimento estudantil, tem estado na vanguarda da mobilização. Como interpretar o que está acontecendo na rua?

– A juventude que está na rua transcende o movimento estudantil, do qual naturalmente participa. Os pelados que estão nas barricadas, que estão em Siloé ou Aguablanca, para dar um exemplo, estão certamente fora da universidade. A juventude está emergindo e participando de outras formas.

É necessário um trabalho etnográfico que nos permita mapear as práticas emergentes in situ e compreender as linguagens, emoções, relações e concepções que estão em jogo. Um erro que sempre tivemos é que uma pessoa interpreta e outras pessoas são interpretadas. Acredito que você tem que ouvir, o que implica se conectar com as práticas, conversar e assumir responsabilidades com esses jovens que não têm nada a perder.

VOZ: Algo interessante que está acontecendo nessa experiência é que os repertórios de protesto vão além do formato clássico de mobilização social. Existe uma mudança cultural na forma de participar da política?

– Eu diria provisoriamente que não é um assunto totalmente novo. Lembremos a queima dos CAIs em Bogotá e em diferentes partes do país em 2020, que foi parte de um confronto visceral com a instituição policial. O limiar da tolerância foi ultrapassado em muitos lugares, onde se experimentam verdadeiras revoltas, onde a raiva e a indignação se transformam em uma catarse que culmina na destruição de monumentos coloniais, instituições financeiras, estações de transporte público ou estabelecimentos comerciais.

Também vejo coisas interessantes como as Primeiras Linhas e as Barricadas. Embora já tenham ocorrido antes, a dimensão e o alcance disso impressionam, pois se configuram em expressões de uma mudança cultural na forma de fazer política. Resistência, autogestão, cuidado e solidariedade, o que poderíamos chamar de heterogeneidade constitutiva, são a expressão de uma multiplicidade de experiências que não podem ser traduzidas por palavras ou representadas.

Lembremos, com Martin Luther King, que o protesto é a linguagem daqueles que historicamente não foram ouvidos. Em suma, é entender o que isso significa como um evento de pessoas que foram ignoradas o tempo todo.

VOZ: Quanto a pandemia teve a ver com esse inconformismo generalizado?

– Acredito que devemos considerar dois eventos que modificaram para sempre o processo político colombiano. O primeiro foram os Acordos de Havana. Imagine esse ataque com as FARC em armas, acho que teria sido impossível. Eles estão tentando entender essa história, mas têm muito a justificar. O segundo é a Covid-19, em que as pessoas vivenciam o autoritarismo em nome da vida, quando te dizem “não saia de casa” e você precisa sair para viver ou te dizem “fique em casa” e você não tem casa ou sua casa é uma merda.

VOZ: De forma inédita, a bandeira nacional está sendo reivindicada. Por que se dá essa apropriação de um símbolo muitas vezes ausente nos dias de mobilização social?

– A bandeira e a ideia de nação não têm uma articulação política única. Pode e de fato foi apropriada por nacionalismos de direita, mas por isso mesmo pode ser retomada para possibilitar outros significados. O que estamos vendo é uma disputa de apropriação do sentido de nação simbolizada pela bandeira.

A inversão, onde o vermelho está no topo, liga-se a “eles estão nos matando”, que não é uma afirmação apenas para denunciar a violência assassina da Esmad e da Polícia, mas a desigualdade social que mata a cada dia.

Essa é a verdadeira violência estrutural de que nem Duque, nem as elites, nem a mídia falam. A desigualdade social mata muitas pessoas todos os dias, o tempo todo, pobres, negros, indígenas, mulheres, etc. O que há com essa inversão, uma prática que não pode ser atribuída a uma só pessoa, é uma rearticulação que nos faz pensar quem somos e para onde vamos.

VOZ: Sobre os acontecimentos em Cali, qual pode ser a explicação para o agravamento das contradições sociais, culturais e étnicas em uma cidade conturbada?

– Na Colômbia houve duas imagens dos indígenas. A primeira é a dos “indígenas permitidos”, os que estão em seus abrigos, exóticos em sua sabedoria cultural tradicional e instrumentalizados a partir da nostalgia colonial. Mas há outra que é a do “indígena não permitido”, aquele que protesta, aquele que provoca, aquele que interrompe a rodovia pan-americana, aquele que está deslocado, aquele que se porta mal.

É este segundo indígena que traz à tona o racismo e o desprezo de um setor da sociedade colombiana. O indígena quando está deslocado e não se enquadra naquelas imagens de nostalgia imperial, do “bom selvagem”, é um indígena chato que merece ser exterminado. O racismo é tão tenaz, que até leituras são feitas de como “os indígenas são tão brutais que certamente os estão manipulando”.

O que aconteceu na Ciudad Jardín em Cali mostra que o país se define por um racismo que despreza profundamente os indígenas. E também os afros. Siloé e Aguablanca são afro do começo ao fim, são enclaves negros em Cali. Isto gera uma conclusão incontestável: ninguém neste país pode dizer que não existe racismo na Colômbia, o que obviamente é lamentável .

VOZ: O papel das redes sociais e suas evidências acerca da brutalidade policial têm sido determinantes não só nos diversos processos de mobilização, mas principalmente nas reações da comunidade e da opinião pública internacional. As redes sociais estão gerando uma ruptura na cultura política do país?

– Acredito que essa greve, sem redes sociais, sem vídeos e sem memes, simplesmente não aconteceria.

Analisemos o meme como artefato político, como cristalização e condensação de enunciados. Circula com desenvoltura e também convoca a partir da zombaria, do humor e da alegria. Algo acontece, o vice-presidente cai e em três segundos existem 200 memes sobre isso. O meme é um artefato cultural profundamente entrelaçado com as sensibilidades políticas em jogo. Memes são sintomas políticos que definem as sensibilidades da linguagem das novas gerações.

Por outro lado, temos os vídeos. 2020 não teria acontecido sem aquela prova audiovisual onde se vê como a Polícia prende, violenta e depois assassina o cidadão Javier Ordoñez. Vamos pensar nessa greve sem o vídeo de Vicky Dávila e Alberto Carrasquilla, que falam da dúzia de ovos a 1.800 pesos, acho que não teria a força que tem neste momento, porque deixou evidente como o ministro da economia, que pretendia taxar a cesta básica familiar, não tem ideia da realidade do povo. Da mesma forma, os registros das atrocidades da Polícia mostram como o Comandante X diz não, mas que mil registros dizem que sim. Esses vídeos geram uma emoção específica: eles mentem para nós descaradamente.

VOZ: Fala-se muito de que as elites que detêm o poder econômico e político estão desconectadas da realidade social e das pessoas que estão nas ruas. Você compartilha esta afirmação?

– A classe dominante governa para um país imaginário, que responde aos seus interesses e experiências. Nesse sentido, essa elite está ligada àquele país e às vezes tem conseguido hegemonizar o imaginário político de amplos setores (como Uribe em seu primeiro mandato) e que tem se articulado a partir de redes clientelistas com os setores e classes subalternas para a manutenção do poder.

Este país imaginado tem dois elementos que o constituem: o pânico e a arrogância. O pânico, que se materializa nos setores mais direitistas, é aquele pânico pela ameaça do castro-chavismo, do comunismo e de tudo o que a esquerda representa. E também se expressa a partir de uma arrogância por meio da qual presumem que interpretam e conhecem o país. No entanto, não conheço elite mais míope e mesquinha do que a colombiana.

VOZ: Graças a um vídeo que viralizou nas redes, foi revelado como um professor da Universidad del Rosario repreende um aluno que protestou em uma aula virtual. A universidade colombiana está desconectada da realidade social do país?

– A Universidad del Rosario, como as demais universidades privadas do país, não são universidades, mas grandes colégios, onde os alunos são infantilizados, concebidos como clientes.

Eles marcam como “ideológico”, como irrelevante e fora do lugar, como desrespeito, o que o professor ou burocrata não gosta. E, por se tratar de uma escola grande, mandam silenciar o aluno com autoritarismo. Além disso, as “fábricas” do ensino estão presas em armadilhas burocráticas, prisioneiras de um processo precário que as impede de produzir conhecimentos relevantes ou processos de diálogos com seus alunos. O que temos é o sintoma da decadência das universidades privadas.

As universidades colombianas, mesmo as públicas, estão há décadas desconectadas da realidade do país. Elas estão ocupadas fazendo a tarefa para as Minciencias e o Conselho Nacional de Credenciamento, onde o que importa são os Cvlacs para conseguir credenciamentos e subir no ranking. Por muito tempo as universidades não quiseram produzir conhecimento sobre a realidade do país. As universidades são parte do problema que eclodiu nesta greve nacional.

Fonte: Semanário Voz – http://semanariovoz.com/eduardo-restrepo-la-verdadera-violencia-es-la-desigualdad-social/

Tradução: Partido Comunista Brasileiro