Colômbia: governo assassina impunemente

imagempor Cecilia Zamudio
entrevistada por Carlos Aznárez y María Torrellas

Cecilia Zamudio é escritora, poeta, jornalista e artista colombiana. Tal como muitos dos seus compatriotas vive estes dias com grande preocupação pela escalada repressiva do governo de Iván Duque – mas também com profunda satisfação pela revolta protagonizada pelo povo colombiano ao manter uma paralisação da produção nacional que já ultrapassa um mês de duração. Com ela falamos sobre esta conjuntura, a fim de intensificar os esforços de solidariedade internacionalista com a luta desse povo.

– Dia após dia, o uribismo no governo continua a desenvolver uma política repressiva que atinge números de mortos, feridos e desaparecidos próprios das ditaduras militares clássicas sofridas nos anos 70-80. Como está vendo esta grave situação?

Nas últimas jornadas as forças repressivas colombianas, tanto a polícia como a sua ferramenta parapolicial, paramilitar e o exército estão reprimindo em diferentes pontos da Colômbia, em Tuluá e em Usme, em Cali particularmente, com vários assassinados pela polícia e centenas de feridos. Também é preciso dizer que a polícia está perpetrando o desaparecimento forçado, como prática de terrorismo de estado. Detém centenas de manifestantes durante a paralisação nacional, mas não só os prende como faz desaparecer vários. São pessoas das quais não se sabe seu paradeiro. Alguns apareceram flutuando nos rios da Colômbia, esquartejados, com a cabeça em bolsas, os corpos com sinais de tortura. Esta é a duríssima realidade do terrorismo estatal com que o povo colombiano é confrontado neste momento.

– Aprofundemos este último ponto. Soubemos da investigação feita à cadeia de supermercados “Exito”, onde aparentemente o local foi utilizado para tortura. Há conivência da parte dos empresários?

Observou-se durante toda a paralisação nacional como, na realidade, isto é uma luta de classes. O que vemos é que a classe trabalhadora da Colômbia está promovendo a paralisação da produção nacional para reivindicar seus direitos a uma vida digna, protestar contra níveis de exploração aberrantes, lutar contra o saque capitalista perpetrado pelas multinacionais, bem como a burguesia colombiana. Há uma série de demandas da classe trabalhadora, que vem questionar o reino de exploração e saque que é o que enriquece a burguesia colombiana e transnacional. Efetivamente, os oligarcas puseram-se a serviço da repressão. Ou seja, a pressão não só é exercida pelo Estado com as suas ferramentas repressivas, mas também estão se unindo a eles os exércitos privados da burguesia. Foi o que vimos em Cali, com a burguesia armada, que saiu disparando contra a Minga Indígena afrodescendente e camponesa.

Evidencia-se com as lojas “Éxito”, que em Cali emprestaram seus armazéns e centros comerciais para que a polícia entrasse e saísse com caminhões a fim de ali deixar pessoas presas. A população denunciou estes fatos angustiadamente, as mães tiveram conhecimento de filhos detidos e de quem se ouviram gritos de terror como se estivessem sendo torturados dentro desse espaço comercial. Assim, vemos como a empresa privada “Éxito”, cujos proprietários são capitalistas franceses do Grupo Casino e outra parte societária é gente da burguesia colombiana, empresta os seus supermercados para que as forças repressivas, segundo denuncia a comunidade, realizem torturas e desaparecimentos forçados.

– A propósito disto, a Colômbia tem uma longa história de repressão, o ESMAD é símbolo disso. Isto que está acontecendo agora com os esquartejamentos também foi vivido nos tempos de Uribe e Santos, quando o paramilitarismo entrava nos povoados com motosserras e cometia verdadeiros massacres. A Colômbia tem um nível de repressão altíssimo, passou permanentemente a linha vermelha, não há limites. Pergunto-te: esta impunidade com que atua o regime colombiano é parte do apoio que lhe dá os Estados Unidos? Está claro que o governo uribista se sente seguro para fazer estas coisas à luz do dia, uma vez que é vista por todo mundo, mas ninguém intervém, no nível internacional.

Estão atuando, como você diz, a plena luz do dia e ninguém diz nada, nem os Estados Unidos, nem a União Europeia, nem os organismos internacionais, todos fazem silêncio total sobre o extermínio promovido pelo Estado colombiano. Falamos de centenas de pessoas detidas e desaparecidas, em menos de um mês, estamos falando de um extermínio, extermínio contra o protesto social. Estamos falando de algo gravíssimo, que na história do nosso continente não tem paralelo, salvo se formos às ditaduras como a de Videla na Argentina. O povo colombiano vive esta situação repressiva, como se fosse um regime ditatorial, mas com a máscara ou maquiagem de uma democracia, mas não é. Reina a impunidade absoluta para a repressão, a tortura, o medo, o amedrontamento que se exerce sobre a população para que não possa lutar. Lutar por uma vida digna, lutar pelos seus direitos, pelos seus direitos dereivindicar e protestar. Não há direito à vida que se respeite na Colômbia. É o próprio Estado que exerce a repressão homicida. Por que existe esse silêncio cúmplice em nível internacional? A resposta é simples: porque o regime colombiano é funcional ao saque capitalista do país. É quem permite que as multinacionais possam perpetuar o maior saque inimaginável dos recursos colombianos, saque de recursos naturais e recursos humanos, mão de obra superexplorada. Que além disso possam perpetrar a maior pilhagem capitalista ao menor custo possível, isso se consegue com extermínio. Por isso, a Colômbia é o seu regime favorito e amigo por excelência do imperialismo estadunidense e europeu. Por isso não vão dizer nada. Além disso, por que o estado colombiano está há décadas perpetuando a repressão sobre a população? Muito simples: porque por trás está o império estadunidense. Os Estados Unidos mantêm uma ocupação de sete bases militares. A partir das suas bases militares treinam a sua ferramenta paramilitar para que torture o povo colombiano nos campos e nas cidades.

– Vamos um pouco ao movimento popular. Estamos a um mês da paralisação e “a paralisação não para”, isto é importantíssimo. Todos os dias há mobilizações, foi posto em marcha algo que vimos na Colômbia em 2019 e no Chile com a revolta: o movimento juvenil, a gente jovem não só se mobiliza como produz uma revolução cultural. A cultura, com uma criatividade apelativa, está ao lado de todas as mobilizações, em Cali, Medellín, Popayán ou mesmo em Bogotá. Como você analisa esta experiência importante que a faixa juvenil da população está efetuando?

Para falar da paralisação nacional, falamos da repressão desencadeada pelo Estado colombiano. Mas é verdade que temos a outra vertente que é a vitalidade e esperança enorme que o povo colombiano está dando com sua capacidade de se organizar, a solidariedade que articulou a classe trabalhadora para sustentar esta paralisação e enfrentar tanta repressão durante um mês. Isto não se consegue sem articulação organizativa e de solidariedade muito profunda na classe trabalhadora. A arte desempenha um papel importantíssimo neste cenário, é um alicerce para a luta. Veja os murais gigantes, são pintados sobre o solo e nas paredes. Veem-se obras teatrais, musicais, que são atraentes de vida. São como combustível para prosseguir em frente. Há cozinhas comunitárias que tornam a juventude e toda a classe trabalhadora envolvidas. É verdade que a juventude tem a força para estar na primeira, segunda e terceira linha, para que as manifestações possam confrontar as arremetidas da polícia e do seu esquadrão ESMAD e das demais figuras repressivas. A juventude está à frente como proteção das manifestações e dos pontos de resistência. Mas também há todo um tecido popular que não é só a juventude. Nas cozinhas populares estão participando as mães, as avós e gente de todas as idades. Vemos um poder popular forte de uma Colômbia que estava unida. O povo sempre lutou pelos seus direitos e sempre foi vital e criativo. Esta vitalidade e criatividade é combustível para a luta social e política que se vive nestes dias na Colômbia.

– Outro tema que sempre surge na América Latina, cada vez que há uma revolta, é como atuam os meios de comunicação para intoxicar. Vemos não só na Colômbia, assim como na mídia da Argentina, como tratam o assunto, no Chile ou no Uruguai. Que opinião você tem acerca deste comportamento da mídia? Como se organiza a contrainformação em meio a tanto terrorismo midiático sobre tudo?

Os grandes meios de comunicação dedicam-se a desinformar sobre a luta e as reivindicações dos povos. Dedicam-se a silenciar as lutas, porque pertencem à classe dominante, à classe burguesa. É assim na Colômbia, na Argentina, no Chile, em todos os países que você citou e é assim no mundo inteiro. Quem possui os meios de produção possui os meios de difusão e de telecomunicação. Portanto, é a voz de uma classe a que se faz ouvir por essa mídia. É normal que os donos dos meios de comunicação não estejam dispostos a dizer que há uma gigantesca paralisação nacional, não estejam dispostos a informar que o povo tem poder quando faz uma prova de força desta envergadura. Tampouco desejam informar que os bloqueios de estradas se fazem porque têm uma razão de ser, se fazem para impedir o saque capitalista. Não informam das cozinhas comunitárias, nem do tecido cultural ou da grande solidariedade e capacidade organizativa da classe trabalhadora. Não desejam informar isso, evidentemente porque não querem que este tipo de imensas e gigantescas manifestações da classe trabalhadora se tornem exemplo para as classes trabalhadoras de outros países. Evidentemente é censura consciente, a partir dos seus pontos de vista. Porque eles não esquecem a divisão de classes da sociedade e estão sistematicamente promovendo uma guerra contra classe trabalhadora. Uma guerra, como você diz, de desinformação.

Esse é um motivo, o outro é o que dizia antes. Há um silêncio sobre o que se passa na Colômbia porque aqui se manifesta o capitalismo no paroxismo do seu horror. Ou seja, que é um país saqueado por excelência, a saúde, a educação, as pensões, tudo é privatizado, é um país onde o Estado é absolutamente repressor para cortar a cabeça de toda reivindicação social e política. É o próprio paradigma do horror capitalista. Evidentemente, os meios de comunicação em nível internacional não vão informar que a população se rebela contra isso. Tampouco vão informar quando o Estado, funcional à classe dominante, reprime a população com o pior terrorismo de Estado. A grandes mídia da Colômbia está desinformando todos os dias, o Estado colombiano e a classe burguesa pretendem sufocar o protesto social através do terrorismo de Estado, da mentira, da manipulação midiática e do silêncio. É a desinformação a outra arma que a classe dominante usa contra a classe trabalhadora.

– Os meios alternativos e de contrainformação podem ajudar a romper este cerco informativo?

A contrainformação tem informação verídica, a informação alternativa é um trabalho muito esforçado que os povos fazem a partir de baixo. É um trabalho que a classe trabalhadora faz com esforço, desdobrando suas jornadas. Parece que as jornadas não são de 24 horas e sim de 48 pela quantidade de esforço que é preciso desenvolver. É uma grande tarefa de formiguinhas contra monopólios gigantescos, mas é preciso fazê-la. Do contrário assassinam os povos em silêncio. Por isso, apelamos à solidariedade internacionalista com o povo colombiano neste momento tão importante e crucial, dado o grande significado desta paralisação da produção nacional. Ela é muito significativa para a Colômbia, para a América Latina e para o mundo. Também para a classe trabalhadora, porque temos pela frente anos piores, de aprofundamento da exploração por parte da burguesia em nível mundial. É por isso que apelamos à solidariedade internacional por essa razão e também para que não sejamos deixados sozinhos, pois os níveis repressivos são genocidas e precisamos desse oxigênio, desse apoio. É por isso que o apelo é de ajuda para mostrar solidariedade com o povo colombiano.

– O patriarcado e seu rosto cruel está presente na Colômbia. Vimos o protagonismo das mulheres, com marchas em Cali exigindo direitos, respeito e sobretudo repudiando as vis violações que estão se realizando nos comandos da polícia e nas detenções. Você poderia falar desta realidade?

A polícia colombiana perpetrou pelo menos 21 estupros em mulheres manifestantes, alguns delas menores. Digo os que se sabem, porque são os que têm ânimo para denunciar. Não esqueçamos que na Colômbia denunciar à polícia pode lhe custar a vida e a dos seus familiares. Então, são os casos que se sabem e, por outro lado, as mulheres estão sendo detidas e desaparecidas. Não sabemos que torturas a polícia terá executado contra elas. A violação sexual faz parte dessas torturas. O patriarcado e o capitalismo estão em simbiose nestes processos repressivos contra os povos. Também, como você disse, a resistência tem em grande parte o rosto das mulheres. As mulheres demonstraram valentia nas segundas e terceiras linhas. Nas oficinas pedagógicas, nas oficinas artísticas, nas cozinhas comunitárias, na resistência afro e camponesa, as mulheres estão presentes com o conjunto de todo o povo colombiano e da classe trabalhadora. Claro que há violência específica por parte das forças repressivas contra as mulheres utilizando a violência sexual como arma do terrorismo de estado.

– Como termina isto? Não temos bola de cristal, mas há uma pergunta que nos surge sempre, depois destas revoltas, como a do Chile, por exemplo, que depois de um ano e meio de revolta Piñera continue ali. A questão é se este levante popular pretende a saída do governo Duque ou só tenta conseguir reivindicações muito importantes, que são negadas pelo regime.

O mais importante desta paralisação produtiva nacional é o nível de consciência que a classe trabalhadora conseguiu adquirir dia a dia nas mobilizações. Creio que é na mobilização que a classe trabalhadora forja a sua consciência, que a vai elevando e vai percebendo como estão as coisas, como reage a classe que a explora quando a classe trabalhadora exige direitos. Todos estes são processos históricos longos que custam muita dor à classe trabalhadora, mas que também a vão qualificando. É importante ir capitalizando tudo isto e creio que isto está ocorrendo. Por exemplo, no caso da paralisação produtiva na Colômbia, houve bloqueios importantes, como o bloqueio do porto de Buenaventura, bloqueios na [rodovia] Panamericana. Há consciência de que vai crescendo cada vez mais, de como funciona a sociedade e quais são as coisas importantes para a burguesia, qual é a funcionalidade dos estados em relação aos que saqueiam o país. Sim, os que exploram não vão deixar seus privilégios facilmente e a classe trabalhadora, a classe explorada, terá que lutar pela sua emancipação. Isso é assim sempre, foi assim na história, as conquistas sociais conseguiram-se com muita luta. Essa é a consciência que tem que se fortalecer para poder dar grandes passos, passos históricos.
30/Maio/2021
O original encontra-se em www.resumenlatinoamericano.org/…

Esta entrevista encontra-se em https://resistir.info/ .