Por que precisamos derrubar Bolsonaro? (2)

imagemImagem: PCB de Minas Gerais

Aires – Célula de Vila Prudente, em São Paulo – SP

Temos uma situação de extrema urgência, com centenas de milhares de mortes [1] acumuladas, e um número imprevisível de novas vítimas a caminho; outros milhões poderão ficar com sequelas pela doença. Não há plano para combater o desemprego [2] que se alastra, muito menos o subemprego e a desocupação, e ainda menos para desenvolver o país no novo contexto geopolítico. E ainda assim, o plano político parece paralisado pela CPI. Uma parte da esquerda deposita suas energias nessa empreitada institucional, majoritariamente comandada pelo dito Centrão, mas não podemos esquecer a importância pequena dela perante a batalha que está à nossa frente.

É uma boa notícia que a Comissão tenha gerado provas contra Bolsonaro, mas nada garante que o quadro de forças estabelecido modifique alguma coisa ainda neste ano, em tempo para um impeachment. A esperança de ter mais material para desgastar Bolsonaro nas eleições parte de um cálculo extremamente arriscado e, com uma boa dose de futurologia, pois não sabemos o desfecho da pandemia e os danos que serão causados em nossas vidas NESTE ANO. Enfim, pode ser dito que, independentemente do que aconteça em Brasília, o apoio a Bolsonaro não vai sofrer mudanças substanciais: nenhuma promessa foi quebrada entre o presidente e as suas bases. Ele e elas sabem o que fazem e continuarão fazendo. Sua loucura tem lógica, é a lógica que rege nossa classe dominante: tudo tem um custo, e o preço pela vida dos trabalhadores brasileiros – dos quais eles se sentem os donos – não valeu o custo de protegê-la.

A intenção não é simplesmente apresentar um cenário apocalíptico, que seja tão ruim mas tão ruim que pareça justificar o abandono da luta, e uma autocomplacência. A hipótese – um tanto quanto maluca – é que esse entrave abre as portas para a construção de um projeto revolucionário, afinal estamos ou não em uma circunstância em que: “Tudo sob o céu está mergulhado no caos?”

Ainda que a classe dominante não tenha fechado um acordo anti-Bolsonaro, o pacto que o elevou ao poder não está intocado. O mesmo ocorre com sua base de apoiadores. Ela não é mais a mesma do momento da eleição. Instituições como o Exército e o Supremo Tribunal Federal não só estão brigando entre si, mas principalmente dentro de cada uma. E não, isso não significa que há posições de esquerda sendo debatidas nessas instituições, não há uma radicalização comunista no exército brasileiro – muito longe disso. Ainda assim, o que nos interessa é que as forças da classe dominante não estão organizadas para um contra-ataque como estavam há pouco mais de um ano atrás.

É preciso entender uma diferença fundamental entre os nossos tempos e o período que vai do início até pouco mais da metade do século passado: nós vivemos um momento de contrarrevolução global permanente. As revoluções só foram possíveis em momentos de ruptura dentro das ordens burguesas que, divididas pelas suas próprias dinâmicas de acumulação, não conseguiram sufocar todas as revoltas que surgiram nesse intervalo.

A situação no Brasil apresenta alguns elementos semelhantes (e pode-se dizer em praticamente toda a América Latina). A confiança nas instituições é baixa [3] não só na população mas, digamos, dentro das próprias instituições. Os diferentes setores econômicos dominantes não possuem uma mesma política econômica (os setores exportadores estão em acirrado conflito com os importadores, por exemplo), as classes médias estão insatisfeitas com a perda de seu poder de compra, e a parcela injusta de impostos que paga em relação à burguesia, além da destruição de seus pequenos negócios, sem uma fração da ajuda financeira que os Capitalistas recebem de seu Estado. A situação dos mais pobres é tão dramática que suas vidas são atos de resistência cotidianos. O presidente tem uma grande taxa de rejeição [4] e um apoio heterogêneo [5], angaria inimigos na grande mídia por seu discurso belicoso contra a liberdade de expressão, e paradoxalmente mantém apoio em parte dela pela presença de Guedes em seu governo e o fantasma das reformas estruturais.

As esquerdas institucionais estão ainda desmoralizadas, e Lula volta com o aval do Supremo, como uma peça poderosa no cenário eleitoral que poderá ser utilizada pela classe dominante brasileira para negociar acordos com Bolsonaro devido ao peso que o ex-presidente representa como candidato nas eleições de 2022. No entanto, a disputa eleitoral que se coloca não apresenta medidas capazes de enfrentar a crise do real em que estamos inseridos. O Povo se desconecta do poder, perde seu referencial. O sistema liberal se desmoraliza e se torna uma patética caricatura de si mesmo. O sentimento geral é de que tudo não passa de uma atuação mal feita (e é curioso que os pedetistas na prática clamem por alguém que saiba passar a impressão de que os cargos realmente importam, numa situação em que tudo parece apenas uma piada de mau gosto: dos debates acalorados pelo “futuro do Brasil” na GloboNews, aos lutos pelas mortes nos programas penais-midiáticos, às preocupações com a fome na GNT, às notas contra a desindustrialização da FIESP, aos protestos contra o desemprego dos sindicatos pelegos, etc). É nessa desconexão entre o que se espera de um Estado-Nação (que sirva ao seu povo e, portanto, seja feito pelos seus trabalhadores) e o teatro de terno e gravata que assistimos, que os comunistas, de onde quer que venham, devem se inserir sendo efetivamente o “centro” que falta na política nacional, mas o centro – é claro – da classe trabalhadora, e não entre ela e os interesses dos que a dominam.

Bem, é esse cenário quase cômico (cuja comicidade é mais trágica do que se fosse apenas uma tragédia) que nos traz de volta a Bolsonaro e à sua forma curiosa de honestidade. Pois nós podemos de fato chamar Bolsonaro de honesto. Ele é a figura que mais honestamente representa a decadência em que nos encontramos. Seus passeios com o “povo” (uma representação burlesca, à lá blackface, do verdadeiro Povo, em que expoentes da classe média alta agem de forma atabalhoada, tosca e desrespeitosa pois assim acreditam que serão vistos como os pobres, os trabalhadores, os verdadeiros representantes do país, e acabam representando exatamente a si mesmos), as piadas de péssimo gosto, as ofensas, a vitimização “masculinista”, a gritaria infantil e carente no planalto, a cara-de-pau (que também é cômica), os remédios milagrosos sendo oferecidos a emas, o neoliberalismo (que efetivamente não passa mais de uma piada, um zumbi de filme de terror com baixo orçamento), seus filhos queridos, que são ainda mais criminosos, de tão cômicos. Enfim, toda essa teatralidade que foi tirada direto do programa do Pânico na TV! para o Palácio do Planalto é a sustentação da honestidade de Bolsonaro. Sua fórmula é essa: “O Brasil é uma piada, e eu sou o Brasil”. É isso que dá veracidade ao seu governo.

A seriedade que a pandemia exigiu destoou daquilo que a sociedade liberal prega como sendo a razão de toda a existência (o niilismo utilitarista que conhecemos por ostentação e consumo). Não podemos esquecer o curioso paradoxo da relação que existe entre conservadorismo e liberalismo, em que o segundo não passa de uma forma de negação (velada) do primeiro: o direito à liberdade de opinião se torna a negação do “não darás falso testemunho”; o direito à privacidade nega o “não cobiçar a mulher do próximo” pois, é claro, na minha privacidade eu posso fazer isso sem ser incomodado; o direito ao porte e ao uso de armas efetivamente nega o “não matarás”; o direito à propriedade nega na prática o “não furtar (nem injustamente reter ou danificar os bens do próximo)” pois, detendo a propriedade, posso decidir quanto daquilo que o próximo produziu me pertencerá; e o direito à livre religiosidade me permite negar ao “adorar a Deus e amá-lo sobre todas as coisas”. Ou seja, de certa forma, qualquer exigência moral que coloque em risco a máxima do capitalismo: “goze”, deve ser imediatamente afastada, negada, impedida, para que os vícios que regem o sistema continuem em marcha.

Derrotar Bolsonaro é uma medida que exige mais do que um processo burocrático de impeachment. As duas opções que se colocam para nós como a saída para o horror do bolsonarismo podem ser cavalos de Tróia. Esperarmos que o desgaste se mantenha, e apostarmos em uma eleição de um Lula deliberadamente de centro como se isso fosse reverter os males que nos assolam (subdesenvolvimento, falta de soberania nacional, desindustrialização, falta de coesão social, desigualdade, violência urbana e rural, perseguição política, baixa qualidade dos serviços, infraestrutura defasada, e afins) pode dar o tempo necessário para que o bolsonarismo, ou o liberalismo e o conservadorismo de forma mais abstrata, recupere suas forças e prepare o contra-ataque. Por outro lado, deixar que uma instituição como o Congresso Nacional, deliberadamente corrupta e sem nenhum compromisso com os trabalhadores brasileiros, leve a cabo um processo de impeachment a partir dos interesses da burguesia nacional pode radicalizar ainda mais setores populares dentro do bolsonarismo que verão neste ato a consolidação de uma espécie de conspiração anti-bolsonaro e pró-corrupção (e aqui ninguém pode ter dúvida que Renan Calheiros é uma figura indigna [6], mesmo que saibamos que essa podridão se alastra também por toda a família Bolsonaro [7], e por diversos outros setores do poder). O que não podemos deixar é que a institucionalidade burguesa se apresente como a restauradora da ordem, enquanto a exploração sobre a classe trabalhadora apenas se intensifica.

É hora de avançarmos, e não de aguardarmos tranquilamente o afundamento do Bolsonarismo. Como bem observou o camarada Jones Manoel, a fome não vai desaparecer [8] tão cedo, mesmo que Bolsonaro venha a ser impichado (e as chances até mesmo disso, como falado no começo do texto, são mínimas). É preciso agir agora. Formar e incrementar brigadas populares para arrecadar alimentos às populações mais vulneráveis. Estar junto às populações mais atingidas pela pandemia e pelo martírio econômico e conscientizá-las da importância das medidas sanitárias e também encontrar formas de apresentar os métodos marxistas, a perspectiva política comunista, e as propostas socialistas para a revolução brasileira como forma para superarmos a carestia e a injustiça. Esse é o momento de avançarmos e não de nos confortarmos com os movimentos táticos da burguesia. E o PCB é o partido equipado com a experiência necessária para levarmos essa luta até a vitória definitiva da classe trabalhadora. Não podemos deixar que novas mobilizações de massa, que estão a explodir no Brasil, como explodiram em outros lugares da América Latina e do mundo nos últimos anos, aconteçam sem terem o Partido Comunista como o fiel interlocutor das demandas populares, pois caso contrário uma nova oportunidade histórica pode ser perdida para o niilismo liberal, ou o mais tenebroso reacionarismo fascista.

A derrota e o impedimento de Bolsonaro, portanto, não deve ser apenas a ordem do dia como um fim em si mesmo, mas como um meio, um elemento tático, um simples passo adiante, na construção da vitória do socialismo.

[1] https://covid.saude.gov.br/

[2] https://jornal.usp.br/atualidades/desemprego-devera-ser-o-grande-problema-do-brasil-em-2021/

[3] https://revistaforum.com.br/pesquisaforum/confianca-da-populacao-nas-forcas-armadas-cai-em-pesquisa-forum/

[4] https://www1.folha.uol.com.br/poder/2021/05/datafolha-aprovacao-a-bolsonaro-recua-seis-pontos-e-chega-a-24-a-pior-marca-do-mandato-rejeicao-e-de-45.shtml

[5] https://veja.abril.com.br/politica/com-acoes-direcionadas-aos-mais-pobres-bolsonaro-muda-base-de-apoio/

[6] https://www.jornaldocomercio.com/_conteudo/2017/08/politica/582242-stf-abre-17-inquerito-para-investigar-renan-calheiros.html

[7] https://blogs.correiobraziliense.com.br/vicente/os-quatro-filhos-de-bolsonaro-estao-sob-investigacao-da-justica-e-da-pf/

[8] https://revistaopera.com.br/2021/05/08/pandemia-fome-e-organizacao-popular-a-esquerda-revolucionaria-faltou-ao-encontro/

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