Notas sobre medicina e luta de classes

imagemDivulgação: Conselho Federal de Medicina (CFM)

Por Rômulo Caires

Jornal O MOMENTO – PCB da Bahia

O Tratamento Off-Label: Considerações sobre Medicina e Luta de Classes

Tem sido comum dentro de setores da esquerda um desconforto com relação ao posicionamento de diversas entidades médicas diante da multiplicação de falsos tratamentos para a covid-19. Muitas dessas entidades, como o Conselho Federal de Medicina (CFM), não tiveram até o momento nenhum posicionamento mais contundente contra as posições sem respaldo científico, também chamadas por Bolsonaro de “tratamento off-label”. Após insistir por muito tempo em deixar em aberto a questão do chamado “kit covid”, recentemente o próprio Ministério da Saúde reconheceu, em documento enviado à CPI da covid no Senado Federal, que tais medicamentos são ineficazes contra a doença. O documento não chama atenção pelo conteúdo em si, mas pelo momento específico em que foi divulgado. O que teria determinado o Ministério da Saúde recuar em uma tática tão importante da máquina ideológica bolsonarista? Tratou-se de uma maior elucidação científica ou outros fatores interagiram nesse processo? Como avaliar a posição das entidades e da categoria médica diante do genocídio em curso?

Antes de falar diretamente do Ministério da Saúde caberia tecer alguns comentários sobre a entidade que regula a profissão médica no Brasil. Em abril de 2020, o CFM se manifestou sobre o que se convencionou chamar de “tratamento precoce”, tema amplamente debatido e pesquisado no início da pandemia de covid-19. Nesta época já havia estudos indicando a ineficácia de medicamentos como cloroquina, hidroxicloroquina e ivermectina no tratamento da doença. O CFM, apesar de não contraindicar absolutamente esse tipo de tratamento medicamentoso, exigia cautela e criticava o uso desordenado e sem critérios.

Em janeiro de 2021 a situação foi outra. Quanto mais a ideia do “tratamento precoce” era desautorizada pelo debate público, mais o CFM criticou a “politização” do enfrentamento da covid-19. Enquanto no início de 2020 se podia falar da eficácia de medidas de prevenção da disseminação da doença, em 2021 a entidade se dizia assustada em notar que “todas as medidas de prevenção, até agora, parecem ter impacto reduzido na disseminação dessa doença”, acusando a “politização criminosa em relação à pandemia entre apoiadores e críticos do Presidente da República”. Não aparecia mais nos documentos lançados pelo conselho a ênfase na validade universal de medidas de distanciamento social ou a necessidade de avançar na política de vacinação contra a covid-19. Se antes se pedia cautela com a superestimação dos benefícios do “kit-covid” agora o CFM defendia a “autonomia absoluta dos médicos” na escolha do tratamento.

Analisar a atuação do CFM durante a pandemia requer algumas elucidações prévias. Fundada em 1951, a entidade é um braço institucional do Estado com a função de fiscalizar e normatizar a prática médica no Brasil. Desta forma, o seu núcleo operativo refletirá tanto a conformação atual do Estado brasileiro como também a situação da categoria médica no país. A gênese do Estado burguês no Brasil repõe a condição de um país subordinado ao antigo sistema colonial a partir da subjugação ao imperialismo em expansão. Em seus desdobramentos históricos, tal conformação estatal esteve desde sempre muito mais interessada em criar mecanismos de intensificação da superexploração da força de trabalho e do aparato repressivo do que criar uma rede de proteção e desenvolvimento de condições básicas para a sua população. A autocracia burguesa consolidou assim uma verdadeira “máquina de moer gente”, para lembrar a famosa expressão de Darcy Ribeiro.

Muito mais do que uma contingência sem qualquer interação com o passado brutal da realidade brasileira, o descaso completo que marcou a atuação governamental na pandemia de covid-19 no Brasil é também a expressão da intensificação de determinações já postas em nossa formação histórica. Estando embebido nessa rede de determinações de longa duração e influenciada pela ascensão do bolsonarismo em diversos setores da população brasileira, não se constitui grande surpresa a negligência do Conselho em se posicionar a favor de reais medidas de contenção da pandemia e insistir por tanto tempo em deixar a questão na conta da “autonomia absoluta dos médicos”.

Cabe agora, ainda que muito sucintamente, reconstruir as tendências que operam na atual categoria médica brasileira. O trabalho médico foi durante um grande período histórico no Brasil marcado pela atuação “liberal”, ou seja, desvinculada de certas coerções do assalariamento propriamente dito e dos mecanismos de precarização das relações de trabalho. Em sua maioria esses profissionais advinham de setores mais enriquecidos e com melhores condições de vida, refletindo uma tendência “aristocrática” na profissão. Tal fato começa a se modificar com a industrialização e aprofundamento das relações capitalistas no país. A saúde passa a ser cada vez mais uma mercadoria de grande importância na economia brasileira ao mesmo tempo que se inicia um período de piora das condições de vida dos trabalhadores médicos. Derivam desse processo diversas contradições que possibilitaram inclusive uma maior politização da categoria. Considerando as últimas décadas, podemos notar, por exemplo, uma crescente sindicalização dos trabalhadores da medicina. Há que se lembrar também o papel fundamental de muitas figuras ligadas à medicina, que participaram ativamente da Reforma Sanitária e das lutas que constituíram o Sistema Único de Saúde, não raro com presença importante de comunistas.

Pulamos então para a primeira década do século XXI. A construção do SUS foi também seguida da radicalização do desmonte dos direitos trabalhistas no Brasil. Os trabalhadores da saúde, inclusive os médicos, foram uma das primeiras categorias a sofrer com os processos de terceirização. Atualmente são poucos os médicos que ainda se enquadram no que chamamos de “trabalho liberal”, sendo uma grande maioria de assalariados e mais recentemente com número crescente de terceirizados (processo que alguns chamam de “pejotização”). A crise política e econômica vivenciada no Brasil, especialmente após 2013, trouxe ainda novos fatores para essa equação. Em íntima ligação com a guinada à direita de amplos setores das chamadas “classes médias”, vários estratos da categoria médica foram se afastando das pautas progressistas. Foge da proposta deste texto analisar detidamente o programa Mais Médicos inaugurado pelo governo Dilma Rousseff, inclusive em seus pontos problemáticos, porém, cabe destacar que esse programa gerou ampla insatisfação na categoria. Assim, podemos sintetizar de forma breve que o refluxo da Reforma Sanitária brasileira, o processo de desmonte do SUS, o incremento cada vez maior do assalariamento, com perda massiva de direitos trabalhistas, e finalmente algumas políticas do governo petista compõem um quadro que pode explicar o atual crescimento e hegemonia de setores bolsonaristas na categoria médica.

Ao observar as denúncias de “politização” das questões de saúde, que segundo o CFM deveriam ser tratadas por setores “técnicos”, podemos tirar algumas conclusões. A primeira e mais evidente é que a acusação de politização “do outro” serve apenas para mascarar a real agitação política que a extrema-direita vem fazendo dentro das entidades médicas. Tem sido constante por parte do conselho defender a “autonomia absoluta” dos médicos diante do “tratamento precoce”, mas nada é dito sobre as constantes denúncias de assédio sofrido por médicas e médicos em todo o Brasil, muitas vezes coagidos a prescrever o “kit-covid” sob o risco até de perderem seus empregos. A defesa de uma suposta “neutralidade” dos profissionais, como também a defesa de medidas arbitrárias em nome da “ciência” deve nos alertar para o fato de que não basta falar em nome da ciência para se fazer ciência de verdade. Mesmo a formação médica, com toda a sua carga de conteúdo, não garante uma autêntica formação científica. Na verdade, muitos que falam em nome da técnica e da ciência estão apenas tentando enunciar uma racionalidade protocolar, livre inclusive das determinações sociais que compõem qualquer fenômeno ligado à vida humana. Sabemos bem após mais de 500 mil mortes por covid-19 que a “doença” não é um fenômeno neutro, mas também expressa as marcas dos processos sociais e das lutas de classe no país. O recuo do Ministério da Saúde em relação ao “kit-covid” não representa algum tipo de iluminação momentânea, mas tem direta relação com a retomada das lutas de massa no país, que confrontaram o obscurantismo das palavras de ordem bolsonaristas, como também a pressão exercida pela CPI da covid, especialmente após vir a público o escândalo de corrupção da Covaxin.

Neste sentido, muito mais do que apostar em algum tipo de fatalismo na situação dos médicos brasileiros, se faz necessário aprofundar na gênese histórica da categoria, suas mutações internas, como também a sua abertura para processos emancipatórios. A defesa do “tratamento precoce” tem sido utilizada como verdadeira máquina ideológica da política bolsonarista com o intuito de frear as medidas comprovadamente eficazes no combate a pandemia (vacinação e distanciamento social) e mostra mais uma vez que o complexo da saúde não evidencia apenas questões de ordem “técnica”, mas sintetiza também questões de ordem ideológica. Aqueles que falam em nome da saúde também enunciam um conjunto de medidas que conduzirão a vida de muitas pessoas, com vastas consequências de ordem social e política. Cabe às forças de esquerda tomar consciência das contradições presentes na categoria médica e retomar as proposições classistas. Organizar os médicos em sindicatos combativos, estimular a politização em direção a um projeto emancipatório e reivindicar pautas no sentido de avançar onde a Reforma Sanitária não foi capaz de fazer, ou seja, avançar na modificação estrutural da sociedade brasileira rumo à construção de um programa socialista para a saúde.

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