Crônica de uma derrota anunciada

imagemfoto: WAKIL KOHSAR / AFP

H. Suricatto

Prefácio

Este presente artigo visa realizar uma análise que abrange em sua primeira parte, todo o contexto histórico do atual conflito afegão e o barril de pólvora que este país tem manifestado nos últimos 45 anos. Importante para analisar como as relações internacionais, a geopolítica e a evolução da guerra se manifestam neste montanhoso país da Ásia central, cujos eventos dos últimos meses merecem uma atenção dos comunistas do mundo todo, sem se prender a determinismos típicos de manuais. Esse regresso à história não se trata de vaidade intelectual, mas para justamente entender o movimento dos fatos históricos, suas determinações múltiplas, se manifestaram na síntese do desfecho da guerra afegã-americana. Sobre os eventos mais recentes e as fontes da pesquisa para este artigo, irei abordar na segunda parte, que vai tratar desde o acordo de paz entre Trump e o Taleban até a saída oficial das forças armadas americanas em 29 de Agosto de 2021.

Aeroporto de Kabul, Afeganistão, 16 de Agosto de 2021

Um C-17 da Força aérea americana decola desse aeroporto com mais de 800 pessoas embarcadas dentro de sua aeronave. Antes de decolar, dezenas de afegãos se penduram em sua aeronave na esperança de conseguir ser levado por ela para bem longe dali, para algum lugar que não fosse esse país. Logo depois da decolagem, uma pessoa é vista despencando a centenas de metros de altura da aeronave até se espatifar na pista de pouso. Segundo as fontes locais, era uma jovem promessa do futebol de apenas 19 anos.

Se há 20 anos, trabalhadores do World Trade Center se jogavam das torres gêmeas em um ato de desespero extremo, vimos essa infeliz cena ser reproduzida 20 anos e há dezenas de milhares de quilômetros dali, numa guerra iniciada oficialmente por aquele atentado e que se encerra com a vitória da força que um dia os EUA subjugaram. Seja nos atentados das torres gêmeas, seja no aeroporto de Cabul, a bucha de canhão para as aventuras militares sempre está nas classes mais oprimidas, sejam faxineiras e bombeiros nova iorquinos, sejam aldeões, militares e colaboradores afegãos que acreditaram na retórica de “democracia e liberdade”.

As manchetes da imprensa mundial são tomadas pela queda de Cabul, capital do Afeganistão, para as forças fundamentalistas islâmicas do Taleban, derrubado pelos estadunidenses em 2001, na sua caça por vingança pelos atentados de 11 de Setembro de 2001. A fuga do presidente do Afeganistão, a “rápida” captura das principais cidades do país e a pressa das forças invasoras da OTAN em evacuar suas bases militares e seu corpo diplomático em contraste com o avanço de Pick-Up’s armados de jihadistas tomando pontos estratégicos, evidencia a tudo e a todos a queda da retórica do império sobre o verdadeiro andamento da guerra estadunidense do Afeganistão (2001-2021) a mais longa da história dos EUA.

Existem lições boas para se tirar diante de todos estes eventos para compreender como esse fato consumado está inserido na atual conjuntura internacional, e em particular, na atual estratégia política externa dos EUA frente à nova década.

O regresso necessário à história

O sujeito que escreve sobre o presente, às vezes comete sempre o equívoco de ficar preso no imediato para explicar os eventos, e retira do passado apenas aquilo que lhe convém e não o que é necessário de fato. Os pontos se ligam não porque há vaidade histórica de explicar cada evento ali e aqui para dar doses gratuitas de pedantismo, mas de melhor compreender o movimento histórico dos eventos que culminaram no presente e subsidiam os prognósticos do futuro.

O Afeganistão é tido como um dos países mais difíceis do mundo para se controlar por forças estrangeiras, um verdadeiro cemitério de impérios. Desde os tempos de Alexandre o Grande até o império mongol, a geografia, as relações tribais, o ambiente hostil e a cultura de “senhores da guerra” sempre foram obstáculos para as forças que um dia tentaram ocupar e dominar este território. Nos atuais tempos capitalistas, no Século XIX, o império britânico em disputa com o império russo pela posse neocolonial do Afeganistão, sempre teve sérias dificuldades de estabelecer um domínio completo sobre o território, sendo uma de suas colônias mais problemáticas. No século XX, ao verem os britânicos abandonarem de vez o Afeganistão, na esteira do fim da primeira guerra, o país passou por um relativo desenvolvimento local típico de um estado de maioria islâmica da Ásia central. A sociedade afegã se mobiliza em torno de avanços políticos que décadas depois culminariam numa revolução popular socialista, a república de Saur em 1978. Não era um estado socialista aos moldes do leste europeu ou dos seus vizinhos chineses, mas era um estado nacional popular com claros fins de desenvolvimento econômico e social do país em seus moldes burgueses, o que não é tarefa fácil numa nação com seculares relações tribais e com o fundamentalismo religioso forte. Prosseguiram com a modernização do estado sob princípios socialistas visando superar os resquícios de dependência econômica colonial e pré-capitalistas, com pesado investimento de infraestrutura soviética. Com a hostilização de forças reacionárias lastreadas no extremismo dos tribais senhores da guerra, financiado pela Arábia Saudita e Paquistão, o estado socialista afegão convoca a União Soviética para lhe auxiliar militarmente no combate a tais forças que geravam instabilidade e desejavam restabelecer a autocracia islâmica com claros traços medievais. Aqui começa o atual ciclo de conflitos armados local.

Brejnev delibera a ocupação soviética do Afeganistão em 1979, os EUA reagem de imediato a esse “atentado à liberdade” do povo afegão armando a mais cara e complexa operação da história da CIA. Comprando o arsenal pilhado por Israel das guerras árabes-israelenses dos anos 1960/70 e atravessando a fronteira do Paquistão, esses “guerreiros da liberdade”, como os Mujahideen eram classificados pela máquina de propaganda dos capitalistas, antes armados com simples rifles de ação por ferrolhos britânicos, estavam bem armados com Kalashnikovs soviéticas que antes tinham sido destinadas a exércitos árabes. Como eram tempos de guerra fria e a URSS era uma superpotência militar, as dificuldades no campo militar eram poucas no início, dado que a superioridade bélica soviética se impôs com destacamentos avançados sobre território afegão para além das vilas e cidades, com intenso patrulhamento de suas rotas. A doutrina militar soviética consistia em uma posse completa do território, ao mesmo tempo, em capacitar e treinar o exército afegão e auxiliar no desenvolvimento social e econômico do Afeganistão para que a revolução nacional passasse para a via do socialismo, enquanto a operação durasse.

Pois sabemos bem que a dificuldade em si residia justamente no campo político, em se contrapor às antigas tradições islâmicas seculares extremamente enraizadas no povo local, constantemente reforçadas pela pesada propaganda imperialista antissoviética divulgada sobre o conflito. A propaganda foi eficiente para recrutar jihadistas do mundo inteiro para se somar às fileiras Mujahideen contra os soviéticos. O que antes, o terrorismo islâmico, disperso e local, era doméstico e frágil, com os recursos, a infraestrutura e a logística fornecidas pela CIA com a colaboração dos serviços secretos sauditas, paquistaneses e chineses, transportaram centenas de milhares de jihadistas a, pela primeira vez, se agrupar em uma verdadeira Legião Estrangeira em combate contra o comunismo. Não é novidade para ninguém como o então presidente americano Ronald Reagan, ao receber relatórios da CIA sobre o sucesso do recrutamento em massa, celebrava os “guerreiros da liberdade”, os recebendo no salão oval da Casa Branca.

Tal iniciativa foi responsável por tornar a ocupação soviética no Afeganistão, que era para ser pontual e prática, num verdadeiro atoleiro, a envolver cada vez mais a dinâmica das relações externas e internas da URSS para tal guerra. Levando consigo a morte de 15 mil soviéticos e mais de 100 mil feridos. As coisas complicaram mais ainda quando os EUA levaram para estes senhores da guerra armas antiaéreas portáteis Stinger, sofisticadas demais para a época, operadas nos desfiladeiros e penhascos do acidentado e montanhoso território afegão, ideais para seu uso efetivo e um inferno para manobras evasivas das tropas soviéticas, empregadas contra helicópteros e aeronaves, levando dezenas ao chão e arrastando o conflito até fevereiro de 1989, quando a cooperação militar com os afegãos cessa e as tropas soviéticas regressam a URSS para resolver os já candentes conflitos internos.

Com o colapso do estado soviético, o estado socialista afegão não encontra suporte na conjuntura internacional para se manter, embora tenha resistido bravamente por alguns anos e com apoio popular. Os limites da República de Saur estavam evidentes e não poderiam ser superados se não houvesse um salto qualitativo nas relações que o Estado tinha com a sociedade afegã, sem precisar se escorar na solidariedade internacional. A Guerra civil se torna inevitável e, em 1993, a república de Saur cai e se inicia a guerra civil entre os mujahideen até que esta é “vencida” pelo Taleban em 1996.

Os “guerreiros da liberdade” travam uma guerra entre si pela posse do estado afegão. O Taleban, fundado em 1994, ganha a sua maior porção, tomando Cabul e a maioria das províncias. Instala seu governo com sua interpretação local da etnia Pashtun, com uma legislação lastreada no Alcorão e na ponta do cano de seus fuzis. Seria tautológico dizer que o conjunto de direitos mínimos de liberdade, propiciados à sociedade afegã até a queda da República de Saur, foi suprimido em poucos anos, com um enorme legado sócio-político e econômico para aquele canto do mundo. Mulheres tratadas como objeto de fato, punições medievais a crimes não hediondos, implosão de símbolos culturais e religiosos a atentar contra aquilo que consideram os princípios do Islã, a produção de ópio para exportação e o grande campo de treinamento de terroristas profissionais para o mundo que se tornou aquele país, com consequências diretas nos conflitos militares mais notáveis dos anos 1990 – a Guerra do Golfo, as duas guerras da Chechênia, as guerras iugoslavas e as incursões terroristas na África e na Ásia – com notável desenvolvimento da Al Qaeda, dirigida por um “guerreiro da liberdade” chamado Osama Bin Laden, este mesmo que estampou em um jornal estadunidense acerca de “como sua luta serve para libertar o povo oprimido do Afeganistão das garras do comunismo soviético e tudo aquilo que ele entendia como progresso”. Bem notável o motivo da hostilidade destes nobres combatentes era perceptível nos lamentos dos senhores da guerra ao verem, durante a República de Saur, os socialistas ensinando suas mulheres a ler e a escrever e a se libertar da ignorância feudal que prendia essa sociedade a relações retrógradas tranquilas de serem mantidas, desde que cumprissem seu papel na sociedade global capitalista.

Os EUA têm uma facilidade enorme de apoiar grupos insurgentes que se voltam contra si uma hora por demonstrar que não irão cumprir seu acordo nas negociações prometidas. A sagrada intervenção nos assuntos internos do mundo árabe pelo Ocidente já estava tensionada desde que os EUA, nos anos 1970, se aproximam bastante de Israel numa época que nem a Europa Ocidental em suas relações diplomáticas hesitavam em apoiar fortemente o Estado judeu. A imposição de um estado israelense seria um dos motivos, mas não o fundamental elemento para a descrença destes grupos jihadistas com os EUA. Basta recordar que na guerra Irã-Iraque, dos anos 1980, Os EUA apoiavam indiretamente o regime de Saddam Hussein em nome da derrota de um inimigo geopolítico ainda maior, o Irã dos aiatolás, da Revolução Islâmica e da consequente expulsão e enforcamento de diplomatas em guindastes em plena praça pública de Teerã. A retórica do império de cercar o Irã não se dava apenas na frente iraquiana. Vale lembrar que o Afeganistão também faz fronteira com aquele país, e a guerra soviética-afegã não só tinha pretensões de expulsar a URSS e o comunismo do Afeganistão, mas de continuar gerando uma fronteira instável na teocracia dos aiatolás que ousou bater de frente com o império. Os terroristas islâmicos em sua enorme maioria têm lastro na vertente wahabista dos sunitas, cuja origem se encontra na Arábia Saudita, um grande patrocinador do terrorismo internacional e aliado dos EUA. Claro que não foram na fonte para liquidar a origem dos terroristas, sobretudo quando estes eram grandes aliados, que compravam sem hesitar os arsenais americanos, oferecendo bases militares e controlando o preço do petróleo muitas vezes de forma unilateral. Com a traição a Hussein na Guerra do Golfo em nome do rearranjo geopolítico para voltar seus interesses à captura de estados não aliados com grandes recursos minerais – petróleo notavelmente – tais agrupamentos se sentem traídos por seu aliado de outrora, e de fato são traídos à medida em que estes já cumpriram sua “missão” com os americanos e não têm serventia mais em grande escala. Décadas mais tarde, seriam os curdos a sentirem este gosto amargo do seu uso como mero peão do xadrez geopolítico.

Mas os fundamentalistas islâmicos souberam aprender, com seus então aliados, lições militares valiosas. A Al Qaeda se profissionaliza, torna-se uma rede digna de agência estatal de espionagem, para executar seus objetivos e de forma tímida emprega suas ações de terrorismo mundo afora, se aprimorando a cada atentado até executar sua peça de propaganda-mor. Aquela que tiraria o sono do mundo e provocaria uma humilhação sem precedentes ao campeão do mundo livre.

Ao conseguir executar, em 11 de Setembro de 2001, o atentado às torres gêmeas, ao Pentágono e quase enfiar um avião na Casa Branca, a organização extremista islâmica vira alvo nº 1 dos EUA e teria serventia grande para que se tocasse a plenos pulmões o papel de polícia do mundo, sem contestações. Estava inaugurado o século XXI.

A Guerra ao Terror e o ensaio de uma hegemonia global

Os anos 1990 testemunharam a queda da URSS e do socialismo do Leste Europeu, da enorme ofensiva neoliberal sobre os escombros do movimento operário mundial, órfãos de sua maior conquista histórica. Os EUA passaram a reinar em absoluto como superpotência econômica, política e militar. Hora de executar o ensaio geral de polícia do mundo.

Se na Guerra do Golfo, os EUA, junto aos seus aliados locais do Oriente Médio e da OTAN, puderam demonstrar gratuitamente ao mundo como seria este após a sua vitória na Guerra Fria (Gorbatchev meio que “abençoou” Bush Pai ao lavar as mãos com a invasão). Foi entre 1992 e 2008 que os EUA puderam exercer com vigorosa força a sua influência sobre praticamente todas as sociedades existentes no planeta e se prontificaram a se envolver em pequena e média escala em quase todo o conflito existente no mundo, seja na Somália, no Haiti, no Kosovo ou em vários estados latino-americanos.

Logo depois do fim da Guerra Fria, um grupo de trabalho criado pelo então presidente George Bush (o pai) e liderado pelo seu secretário da Defesa, Dick Cheney — que viria a ser vice-presidente de Bush filho — definiu como principal objetivo estratégico dos EUA consolidar o poder conquistado em 1991, impedindo o aparecimento de um novo concorrente regional ou global como a União Soviética. Naquele momento, falaram da necessidade de algo parecido com um novo Pearl Harbour para mobilizar apoios e viabilizar a imposição do poder global americano.

Ao invocar o estatuto da OTAN, segundo o qual, quando um membro do tratado é atacado, todos têm o dever de defender o estado assaltado, os EUA arrastam consigo na sua aventura afegã os demais membros do tratado. Se, por um lado, o ataque ao orgulho americano, com um golpe ao seu fálico símbolo de triunfo do capitalismo, ferido em plena manhã de Manhattan, por outro, a aliança do Ocidente contra o mundo árabe serviu de grande propaganda para todo tipo de fundamentalismo religioso islâmico mundo afora, a legitimar cada vez mais suas incursões terroristas externa e internamente às fronteiras dos estados de maioria muçulmana ou com notável população islâmica, agora mais profissionalizado, mais bem organizado e com ligações em cadeia global a dar dor de cabeça a todos estes países. Está inaugurada a Guerra ao Terror.

A resposta rápida americana não tardou. Em outubro de 2001, os EUA invadem o Afeganistão ao acusar o Taleban de abrigar Bin Laden e a Al Qaeda, mesmo que esse país tenha determinado a expulsão destes. Em dezembro, o Taleban é deposto e a guerra se concentra em caçar a alta cúpula da Al Qaeda e o próprio Osama. Se, aos olhos da imprensa mundial e da opinião pública, a operação Liberdade Duradoura (Sic) era legítima e justa. Um outro conflito, desencadeado dois anos depois, seria responsável por botar a nu a real pretensão dos EUA na Guerra ao Terror.

O Iraque explica

“No conflito com o islã radical, eles querem nos humilhar. E nós precisamos humilhá-los. ” – Henry Kissinger

O Iraque, em março de 2003, seria a guerra que explicaria muito mais o que os americanos faziam no Afeganistão que o próprio Afeganistão. A guerra preventiva da doutrina Bush é levada a cabo contra um dos membros do pitoresco “eixo do mal”, no qual figurava (ou figura) a Coréia Popular junto a três estados árabes como inimigos da paz mundial Iraque, Síria e Líbia. E era dever “civilizatório” dos democratas do Ocidente levar “democracia e liberdade” a estas nações. A doutrina da guerra preventiva dá seus primeiros passos no Iraque, onde Bush informa a existência de “armas de destruição em massa” em solo iraquiano a ameaçar a paz mundial, e Saddam precisa ser detido de uma vez por todas. Se em relação aos atentados de 11 de setembro, as teorias conspiratórias encontram pouca margem de manobra nas suas frágeis argumentações (de que os EUA arquitetaram este atentado contra seu próprio país para justificar uma intervenção militar no Afeganistão, coisa que deve ser levada pouco a sério). O Iraque foi praticamente todo sustentado no grande blefe do século até aqui, como ficaria comprovado pela própria opinião pública americana meses depois da ocupação, pelos soldados lá enviados e anos mais tarde por extensos relatórios vazados pelo Wikileaks.

Se Saddam Hussein era um ditador teocrático condenável, isso não surpreende ninguém, mas sabemos que questões morais em guerras entre estados capitalistas só servem para peça de propaganda, como o próprio Afeganistão nos comprova agora. As tais armas de destruição em massa nunca foram encontradas, uma outra justificativa precisava ser encontrada para explicar a Guerra do Iraque. A encontrada foi que o país oferecia abrigo para operações da Al Qaeda e que era dever do Ocidente levar a civilização, a democracia e os princípios liberais a estas nações no mundo globalizado. Nada disso foi facilmente engolido pela opinião pública mais consciente. Atos pipocaram mundo afora contra a guerra, com intensidade maior no próprio território estadunidense. A guerra, que era para ser uma curta intervenção aos moldes de Granada, Líbano, Panamá, Haiti, Somália, Kosovo e no próprio Iraque de 1991, não se concretizou. Inflou mais ainda o radicalismo islâmico, fortaleceu a islamofobia mundo afora e deu mais legitimidade retórica a grupos terroristas a prosseguir com seus atentados, agora voltados aos aliados dos EUA nas suas aventuras militares, com destaque a Madri de 2004, Londres de 2005 e Paris de 2015. Fora os que rolaram na África e na Ásia durante esse tempo.

Saddam foi capturado e executado, seu governo deposto, mas a guerra precisava prosseguir, a doutrina precisava ser mantida. Nesta oportunidade de se aproveitar dos recursos naturais do Iraque e promover seu projeto civilizatório, muitos viram uma bela oportunidade de negócio, essa que quase levou os EUA à bancarrota anos mais tarde, em 2008.

A guerra do Afeganistão e do Iraque como um grande negócio

Enquanto a opinião pública majoritária dos EUA estava a favor da guerra, a burocracia do Pentágono se apressou para justificar seus altos gastos e investimentos fúteis sobre a necessidade de prosseguir com a guerra. Bem alimentada, sobretudo, com lobby da indústria das armas e de toda uma rede de empresas a substituir o Estado em competências que antes eram exclusivas de divisões militares, como logística, suprimentos e infraestrutura. A privatização da guerra em escala industrial começa aqui, afinal as armas são cifras e é mais fácil entender sobre relações geopolíticas e relações internacionais se analisando uma guerra do que documentos de diplomacia.

Começava em oferecer suporte para as cadeias de suprimentos aos militares, cuja preparação foi feita visando uma intervenção curta e cirúrgica, sem necessidade de distribuir Marines por todo o território iraquiano e afegão, o que acabou ocorrendo meses depois. Ao ver que a guerra seria mais prolongada do que se supunha, logo as necessidades surgiram e com elas as oportunidades. Como estes serviços também estavam alinhados na promoção dos valores ocidentais, era até de bom grado que estas empresas privadas estivessem lá, que tivessem bastante civis para trabalhar nas Zonas Verdes e levassem o progresso para lá. Era um negócio próspero. A diferença do Estado afegão do americano é que, enquanto em um se chama corrupção, no campeão do mundo livre isso é visto como lobby. Muitos generais ficaram ricos com isso.

A conta chegando…

Mas logo, ao arrastar da guerra, a resistência aos ocupantes, que não se lastreava apenas no radicalismo islâmico, mas na cada vez maior ofensiva aos princípios básicos de um estado islâmico e de evidentes violações ao povo iraquiano e afegão – bombardeios a residências civis, falsos positivos, corrupção do governo fantoche – tornou-se uma guerra de guerrilhas de resistência à invasão, ganhando cada vez mais apoio da sociedade iraquiana e afegã, arrastando o conflito por mais longos anos. A própria presença dos americanos no Iraque e Afeganistão veio gerar mais recrutamentos ao Taleban e às facções iraquianas que se contrapunham à ocupação de seus respectivos países. A mesma fórmula usada para tencionar e hostilizar os soviéticos vinte anos atrás, agora se voltava contra os EUA, mas de formas diferentes, adaptadas à guerra do Século XXI e de sua notável evolução nas técnicas de combate, no material bélico empregado, mas sobretudo, na opinião geral sobre o conflito e como jogar com a subjetividade das massas de seu país e do país inimigo contra as tropas invasoras. Nisso o Iraque tinha de sobra, o conflito era por si só injustificável e caro no senso comum americano.

Morriam muito mais iraquianos e afegãos do que americanos. Isso era fato. Mas uma baixa americana era muito mais cara. Enquanto um insurgente afegão/iraquiano morria com um inventário que não passava de US$300, o americano, ao contar todo o seu investimento militar prévio, custava mais de US$ 30,000. Além disso havia as perdas com material bélico tanto usado contra miseráveis cidadãos afegãos/iraquianos e a destruição deste nas raras oportunidades operacionais em que um RPG-7 operado por um insurgente conseguia destruir um jipe ou mesmo um tanque de milhões de dólares, independente de quem operava, fossem as forças de defesa do fantoche governo iraquiano/afegão, ou os próprios militares ianques. Enquanto os insurgentes mortos eram alçados à condição de mártires, os militares mortos ou mesmo feridos eram vistos com desdém pelos próprios americanos, jogados à própria sorte quando regressavam da guerra, com suas mutilações, seus ferimentos e suas perturbações psicológicas a inviabilizar sua reintegração plena na sociedade civil. Não eram vistos como heróis pela maioria dos seus compatriotas, por mais que o cinema se esforce para apresentá-los como tais. Forças do Partido Republicano viram ali uma oportunidade, e os conservadores a empregariam anos mais tarde para constituir parte de sua atual base política, personificada em Trump.

Esses excessivos gastos seriam uma das causas da crise financeira de 2008 nos EUA. O alto custo da guerra prejudicou bastante a resposta rápida à crise, e tal bomba explodiu no colo do Partido Republicano. Os EUA estavam fartos de uma guerra – ao seu juízo – injustificável, a arrancar a vida de jovens Marines numa guerra estúpida (mas qual guerra imperialista não é estúpida?). O Afeganistão ainda permanecia como uma guerra justa, afinal, Bin Laden ainda estava vivo e solto. O foco e a tática precisavam ser modificados, mas a guerra precisava prosseguir. A escolha foi manter o conflito no Afeganistão e se retirar do Iraque. E seria no governo do democrata Obama cujas mudanças seriam realizadas e também seria sob seu mandato que a guerra do Afeganistão chegaria ao seu ápice.

O ápice da guerra americana no Afeganistão

Entre 2009 e meados de 2013, a guerra atingiu o seu máximo de intensidade. Mas agora sob novas táticas e com lições – supostamente aprendidas – do Iraque.

A mais notável seria vista no plano da tática, visível no perfil das tropas terrestres a serem empregadas. Se antes os Fuzileiros Navais eram essa força, agora eram as Companhias Militares Privadas (PMC, em inglês) a serem mais empregadas, nome chique para agência de mercenários. O efeito prático do uso de mercenários era sobretudo político e social, se um soldado americano morto numa guerra ao terror era condenável em certa parte por morrer numa causa que não acreditava muito, o mesmo não se podia dizer de um mercenário, afinal, estava lá por dinheiro, que faça o que quiser, não está ligado a nenhum estado oficialmente, tem carta branca para exercer suas Black Ops, de realizar massacres, de praticar estupros, saques e outras violências que não devem em nada às práticas do Taleban. Mas estes últimos tinham mais honra, por mais condenável que sejam seus ideais, são ideais de fato. Mas quem chora por um cadáver de um mercenário? Ou, para usar uma linguagem corporativa que eles tanto gostam de usar, a baixa do contratado não seria um problema para o cliente (os EUA) por não ser um investimento humano direto – as dezenas de milhares de dólares investidos num único fuzileiro, do seu recrutamento até a sua dispensa – causa pouco ou nenhum efeito colateral.

Estes contratados podem, em sua missão, até encontrar novas oportunidades de negócio, são soldados da fortuna, e estar no maior produtor de ópio do mundo configurou uma excelente oportunidade de negócio, pois não há uma diferença moral entre matar afegãos e aumentar ainda mais a produção e a comercialização da heroína dentro e fora do Afeganistão e neste comércio virar um privilegiado intermediário. E tudo isso sendo visto sob vistas grossas dos generais e do establishment, desde que cumpram sua missão: substituir os militares americanos em operações delicadas para a opinião pública.

Esse mesmo dilema moral seria também visto na Força Aérea. Existe uma diferença moral gigante entre um piloto de caça bombardear uma posição cheia de civis e regressar a sua base de Bagram e tomar contato com toda a repercussão local de mais um vilarejo aldeão bombardeado com civis entre os mortos e de um operador de drone (VANT, para os brasileiros), que nem dos EUA sai e totalmente alienado das consequências de sua missão, opera esse robô como se fosse um console de video game. Foi durante o mandato de Obama que os EUA começaram a empregar drones em suas incursões aéreas em larga escala, exportando esse mesmo modus operandi para outras intervenções pontuais mundo afora, como Iêmen, Líbia e Síria. Mais barato e com menos consequências políticas que o uso de caças operado por humanos in loco. Obama conseguiu a façanha de estar bombardeando sete países diferentes no mesmo ano, que grande democrata ele é!

A intensidade da guerra na primeira metade da década de 2010 foi grande ao ponto de ocorrer um evento inédito nas relações internacionais: pela primeira vez na história, um Nobel da Paz (Obama) bombardeia outro Nobel da Paz (a Cruz Vermelha). Essa anedota do conflito revela a mais pura hipocrisia americana na defesa de promover valores ocidentais, quando não hesitou em atacar mesmo um hospital de campanha tocado por uma ONG ocidental. Censura foi o que rolou à solta nestas guerras.

Foi também sob o mandato de Obama que houve a captura e a morte de Osama Bin Laden em 2011, numa mal explicada operação no Paquistão. Estado este que é um aliado da China e do próprio EUA e que ofereceu, desde os anos 1980, suporte aos mujahideen, sendo principal via de acesso a armas e também rota de ópio para o resto da Ásia, além de ser escola dos fundadores do Taleban. A operação foi acompanhada na improvisada War Room da Casa Branca e, depois da operação, o pronunciamento na rede nacional levou milhares de americanos às ruas para celebrar “vitória” sobre o terrorismo. A justificativa principal para prosseguir com a Guerra ao Terror e com a guerra no Afeganistão estava quase findada, mas havia ainda a necessidade de caçar os demais líderes da Al Qaeda, capturados ou mortos. Isso de fato ocorreu nos anos seguintes, coincidindo com a maior intensidade dos conflitos em território afegão. O motivo legal para que a guerra não fosse findada ao concluir a liquidação da alta cúpula da Al Qaeda e de sua articulação internacional encontra resposta em outra força terrorista, mais agressiva, a surgir dos escombros da invasão dos EUA no Iraque, da operação liberdade para o Iraque (Sic!)

O surgimento do Daesh como motivo de prolongar a guerra ao terror

Conforme afirmado antes, os EUA têm uma capacidade incrível de tornar seus peões no xadrez geopolítico em seus inimigos quando sacam que serão traídos uma hora ou outra. As forças auxiliares na queda de Saddam Hussein em 2003 e que não tiveram o poder partilhado consigo quando os governos fantoches iraquianos emergiram, rapidamente se reagruparam em torno de um projeto de poder sobre a posse de um amplo território dilacerado por uma guerra recém passada e por uma nova, a ter novamente o envolvimento dos EUA.

Surge de forma espetacular e violenta no cenário local o Daesh, ou como ele ficou conhecido no ocidente como o “Estado Islâmico” (EI ou ISIS). Valendo-se das mídias sociais e do espetáculo do terror como máquina de propaganda para recrutar milhares de jovens do Ocidente a serem conduzidos aos confins da Síria e do Iraque para instalar o território conhecido como califado. A forma de execução de seus atentados, ao mobilizar lobos solitários mundo afora com o ápice do terror nos atentados de Paris de 2015 fez reviver a Guerra ao Terror em sua retórica de legitimidade, mesmo que o Afeganistão não estivesse muito envolvido com o EI.

O temor de o Estado Islâmico se desenvolver no Afeganistão, a violência do ISIS e sua rápida ascensão rearranjam o tabuleiro geopolítico mundial rapidamente. A decadência americana é vista pelas demais potências do mundo e a Rússia ocupa de primeira esse vácuo político. O teatro do Oriente Médio precisa ser visto integralmente, o que ocorre em um país, ocorre em pequena ou em escala superior nos demais, por terem uma ligação maior por conta das proximidades políticas, econômicas, culturais e religiosas do território. Assim como ocorre em nossa América Latina. Após os atentados de Paris, no final de 2015, a França passa a confiar mais na Rússia que nos EUA, pelo consequente combate que este país fazia frente ao terrorismo, muito bem demonstrado na sua intervenção na guerra na Síria e responsável por praticamente dar a vitória a Assad frente à atual guerra civil síria, em vias de ser encerrada com vitória do regime, salvo uma virada espetacular de mesa neste atual teatro de operações da geopolítica mundial.

A comunidade internacional temeu o Estado Islâmico, porque, diferentemente da Al Qaeda, que pregava o terrorismo pontual em defesa do tradicionalismo islâmico, o Daesh se proclamava mais universal, querendo retomar o anacrônico califado dos tempos medievais, que ia da Espanha a Índia. Temeu que o Afeganistão fosse usado novamente como base de formação de jihadistas profissionais. O que era impossível, já que o Taleban e o Daesh são divergentes e não passou de bravata. Ficou bem comprovado que o EI era um fenômeno local, com poucas expressões fora dos limites da Síria e do Iraque e que o seu desenvolvimento foi bem potencializado com a revanche dos jihadistas contra o Ocidente, plenamente justificada na década anterior por uma estúpida guerra travada pelos EUA naquele território.

O evidente fracasso de uma guerra cara e prolongada estava já dando sinais, e logo a situação se tornaria insustentável por várias determinações, mas encontra lastro em outros eventos geopolíticos que representam a falência do projeto de dominação global dos EUA, ao ignorar o desenvolvimento de uma nova potência a fazer sombra à sua influência no mundo.

Os eventos que envolvem desde as negociações de paz entre os EUA e o Taleban até a retirada das tropas americanas serão abordadas na parte 2 deste artigo.