Lumpenização das classes sociais no Brasil

imagemPor Giovanni Alves

BLOG DA BOITEMPO

“Eu tenho fome
Eu tenho em mente
Uma grande orgia

Não tenho rosto
Nada do que você possa
Se lembrar depois”
Orgia, de Paulo Miklos

É com a crise estrutural do capital que na sua etapa de crise do capitalismo global se redefine o novo imperialismo e a recolonização dos ditos países “emergentes” (como o Brasil) num cenário histórico de disputa pela nova hegemonia do capital entre EUA e China. A reposição do sentido da colonização no Brasil é reforçada na medida em que nos tornamos país exportador de commodities – vale dizer, commodities de alto valor agregado, mas uma riqueza que é incapaz de se disseminar pela nação. O agronegócio vitorioso faz subsistir ilhas de prosperidade miserável cercadas pela barbárie do trabalho sem forma por todos os lados.

Em Para além do capital, István Mészáros observou que “a crise do capital que experimentamos hoje, é fundamentalmente uma crise estrutural”. Como observado por ele, não há nada especial em associar-se capitalismo a crise. Pelo contrário, crises de intensidade e duração variadas são o modo natural de existência da produção capitalista.

As crises são maneiras do capital progredir para além de suas barreiras imediatas e assim, estender com dinamismo cruel, sua esfera de operação e dominação. O capital necessita de crises para que possa se desenvolver como sistema de acumulação de mais-valor. Nesse sentido, como salientou Mészáros, a última coisa que o capital poderia desejar seria uma superação permanente de todas as crises, mesmo que seus ideólogos e propagandistas frequentemente sonhem com (ou ainda, reivindiquem a realização de) exatamente isso.

A novidade histórica da crise que atinge o sistema mundial do capital – pelo menos desde a década de 1970, tornou-se manifesta em quatro aspectos principais:

(1) seu caráter é universal, no sentido de ser uma crise sistêmica – incluindo crise social, política, ambiental, cultural e civilizatória. Enfim, a crise do capital não se restringe a uma esfera particular (por exemplo, crise financeira ou comercial, ou afetando este ou aquele ramo particular de produção, aplicando-se a este e não àquele tipo de trabalho com sua gama específica de habilidades e graus de produtividade etc);

(2) seu alcance territorial é verdadeiramente global no sentido mais literal e ameaçador do termo, em lugar de limitado a um conjunto particular de países (como foram todas as principais crises no passado);

(3) sua escala de tempo é extensa, contínua e se preferir, permanente, em lugar de limitada e cíclica, como foram todas as crises anteriores do capital – e, desde o big crash financeiro de 2008, o capitalismo no centro ou nas periferias vive um contínuo e persistente mal-estar social, independente do crescimento do PIB com vigor (o capitalismo desconectou de vez, crescimento da economia e bem-estar social);

(4) em contraste com as erupções e os colapsos mais espetaculares e dramáticos do passado, o modo da crise estrutural se desdobrar poderia ser chamado de rastejante, desde que, como observou Mészáros em Para além do capital, acrescentemos a ressalva de que “nem sequer as convulsões mais veementes ou violentas poderiam ser excluídas no que se refere ao futuro: a saber, quando a complexa maquinaria agora ativamente empenhada na ‘administração da crise’ e no ‘deslocamento’ mais ou menos temporário das crescentes contradições perder sua energia”. Prossegue Mészáros: “Seria extremamente tolo negar que tal maquinaria existe e é poderosa, nem se deveria excluir ou minimizar a capacidade do capital de somar novos instrumentos ao seu já vasto arsenal de autodefesa contínua. Não obstante, o fato de que a maquinaria existente esteja sendo posta em jogo com frequência crescente e com eficácia decrescente é uma medida apropriada da severidade da crise estrutural que se aprofunda”.

Enfim, a crise estrutural do capital com sua dinâmica sistêmica, global, permanente e rastejante, tem implicações sociometabólicas capazes de alterar o registro civilizatório no sentido radical – e nos casos de países do capitalismo periférico como o Brasil, isso torna-se efetivamente sensível (e Bolsonaro é só a representação histórica do esgotamento irremediável da promessa civilizatória do capitalismo brasileiro). Por isso, o declínio histórico-estrutural do capitalismo no plano global constitui um novo metabolismo social: o sociometabolismo da barbárie.

No caso do Brasil, país capitalista dependente de entificação hipertardia e extração colonial-escravista, o sociometabolismo do capital expõe uma fenomenologia própria que se caracteriza pela lumpenização da burguesia e lumpenização do mundo do trabalho, isto é, uma classe dominante hegemonizada pela fração rentista-parasitária, indiferente (e avessa) a um projeto nacional de desenvolvimento; e um mundo do trabalho urbano, sem forma, desorganizado, imerso em afetos particularistas, tendo como horizonte último, o acesso a direitos trabalhistas anacrônicos à temporalidade histórica presente do capital.

É importante resgatar como crítica, tais elementos sociais de fundo, pois a “lumpenização”da burguesia e do mundo do trabalho no Brasil, tem candentes implicações sociometabólicas nas classes sociais, incluindo burguesia, classe média e o proletariado propriamente dito.

Em primeiro lugar, é importante distinguir a barbárie social de outras formas históricas da barbárie no século XX. Por exemplo, o nazifascismo foi uma forma histórica de “barbárie política” no século XX. Mas, com a crise estrutural do capital a partir de meados da década de 1970, a barbárie adquiriu uma forma sociometabólica oriunda do complexo de reestruturações capitalistas que colocou o mercado como sendo a instância de controle social.

Com a vigência do neoliberalismo, agudizou-se o fetichismo da dominação do capital. Diferentemente, por exemplo, do Estado político nazifascista do capital, o “fascismo de mercado” ou “fascismo social”, é de difícil identificação imediata, sendo intransparente e intangível. Ele é a forma mercantil do estranhamento social, introjetando-se nos sujeitos, confundindo-se com suas pulsões, vontades e desejos. A barbárie social é a forma da “servidão voluntária” pós-moderna. A barbárie social é o modo de ser do metabolismo social do capital na era do capitalismo manipulatório. Como subproduto do novo sociometabolismo do capital, a barbárie social tornou-se a base material para as políticas da extrema-direita no século XXI (o que demonstra a afinidade eletiva perversa entre barbárie social e necropolítica). A pandemia do novo coronavírus explicitou tais vínculos orgânicos de modo obsceno – só não vê quem não quer ver.

Com a barbárie social, dissemina-se o que temos denominado de atitudes particularistas ou “ensimesmadas” das individualidades pessoais de classe. Instauram-se formas perversas de laços sociais que impregnam o sociometabolismo. A barbárie social é o sistema social de perversões narcísicas. As ciladas do identitarismo liberal – de gênero, de etnia, etc. – e supostamente de esquerda (como se manifestam no PT e principalmente no PSOL), representam o modo de ser do particularismo social que rompe com a perspectiva histórica da classe que vive do trabalho, como diria Ricardo Antunes.

O conceito de barbárie social possui um sentido sociológico preciso que se distingue de outras formas de alienação e autoalienação do passado histórico do capital. Ela se afirma com o capitalismo manipulatório que corrói o sujeito humano. A barbárie social é a forma de ser do metabolismo social nas condições históricas da “dessubjetivação de classe”. Ela é o elemento crucial do processo de (de)formação da classe (o que explica o afundamento da esquerda brasileira enquanto projeto politico-ideológico).

O fim da ascensão histórica do capital no Ocidente (1973) alterou radical e irremediavelmente, as condições de reprodução expandida do sistema mundial do capital, empurrando para o primeiro plano, suas tendências destrutivas. A barbárie social é a produção destrutiva da sociabilidade humana nas condições de uma sociedade cada vez mais social (a sociedade burguesa). A barbárie social é a barbárie histórica no estágio mais desenvolvido do processo civilizatório (no sentido de afastamento tardio das barreiras naturais).

No Manifesto Comunista de 1848, Karl Marx e Friedrich Engels observaram que a “barbárie” é uma importante determinação da civilização do capital. O desenvolvimento natural do capitalismo tendia a ser interrompido por uma epidemia de superprodução de mercadoria. Dizem eles: “A sociedade vê-se de repente retransportada a um estado de momentânea barbárie […] E por que? Porque a sociedade possui civilização em excesso”. Enfim, o estado de barbárie decorria da “civilização em excesso”. Essa suprema “contradição viva” do capital tem impactos decisivos no metabolismo social da modernidade capitalista. Pela primeira vez na história humana, o elemento de barbárie, isto é, a destruição das forças produtivas sociais, incluindo o trabalho vivo, tornou-se parte irremediável do modo de produção (o que não ocorria em nenhum dos modos de produção anteriores).

Mas na época de Marx e Engels, o estado de barbárie manifestava-se no momento das crises cíclicas do capitalismo. Com a crise estrutural do capital, a barbárie não se manifesta apenas durante as crises cíclicas do capitalismo, mas torna-se um elemento compositivo da reprodução histórica do sistema do capital: torna-se barbárie social. Não se trata mais de um momento de estado de barbárie, mas sim, o sociometabolismo da barbárie que caracteriza o capitalismo em sua etapa de declínio histórico.

Marx caracterizou o capital como sendo a “contradição viva”. Em sua etapa de declínio histórico, as contradições capitalistas explodem; não apenas as “contradições fundamentais” do capitalismo, mas inclusive, as “contradições metabólicas” do capital: a exposição da fratura metabólica entre o capital e a natureza.

Por um lado, a sociedade burguesa, é a sociedade que se torna cada vez mais social (o que György Lukács salienta como sendo um elemento do processo civilizatório). Por outro lado, devido ao estado permanente de barbárie (a barbárie social), a sociedade burguesa obstaculiza com intensidade e amplitude, o desenvolvimento do ser genérico do homem, dessocializando-o, não apenas pelo trabalho estranhado, mas pelo não-trabalho (desemprego em massa e a nova precariedade salarial que no caso da província do Brasil, expressa-se com vigor pela “uberização” do trabalho que degrada física, mental e moralmente a força de trabalho).

Enfim, a barbárie social é a etapa tardia da civilização do capital que explicita, no século XXI, a incapacidade do capital de realizar suas promessas civilizatórias. Com o colapso da modernização dos países de capitalismo dependente hipertardio e de extração colonial-escravista (como o Brasil), a partir da ascensão do capitalismo global e da lógica do capitalismo neoliberal e da nova razão do mundo (Dardot e Laval), tornou-se explícito o estado permanente de barbárie social.

O novo metabolismo social do capital representou a corrosão da base material para a formação de subjetividade de classe capaz de realizar a “negação da negação”. O horizonte da classe que nega o sistema social do capital foi corroído. No limite, a barbárie social é expressão mórbida do apodrecimento do homem burguês – e com ele, de todas as classes sociais. O capitalismo neoliberal é a forma estrutural da evolução do sistema do capital, incapaz de desenvolvimento por conta das contradições alavancadas do capitalismo na sua etapa de declínio histórico.

Podemos derivar mais consequências históricas deste processo histórico que vivemos há pelo menos trinta anos de neoliberalismo no Brasil: a barbárie social representa a exacerbação da lógica da forma-mercadoria diante do colapso/expansão da forma-valor. Por isso, ampliaram os fetichismos sociais (fetichismo do Estado, fetichismo da técnica, fetichismo do dinheiro, etc.).

O capitalismo globalizado do século XXI é o capitalismo do hiperfetichismo e do capitalismo quântico, com a alta produtividade do trabalho suprassumindo os fundamentos do valor e das categorias fundantes e fundamentais do modo de produção capitalista – no interior do próprio capital. Sob a vigência da forma-mercadoria, os produtos da atividade humana (objetos, instituições e valores) se tornaram “coisas”, isto é, opacos e intransparentes, recalcitrantes ao controle social, “negando” efetivamente o modo de ser “sujeito humano” capaz de autotranscendência.

É nesse sentido preciso que a barbárie social significa não apenas a dessocialização do homem como ser genérico, o irracionalismo que ascende historicamente com o capitalismo manipulatório do século XX; mas a barbárie significa a extinção da genericidade humana expressa na sua diluição nos particularismos em conflito na selva do mercado. Quando Chico de Oliveira registrou a extinção da nação como comunidade política, ele quis dizer: eis a era da barbárie social!

Instaurou-se um movimento de monstruosa regressividade ontológica do ser social: as individualidades pessoais de classe são desconstituídas em si e para si. A condição de “classe” do proletariado levada à exaustão com a “lumpenização” do proletariado, tende a negar a dimensão pessoal das individualidades humanas, decompondo-as como simulacros de personalidades, autocentradas e vazias, refugiadas nos identitarismos particularistas e suas ciladas, subproduto da ignorância cultural atávica de um capitalismo atrófico, que ocultam a profunda carência de uma vida plena de sentido. As personalidades humanas esvaziadas pelo capital são tão fictícias quanto o capital fictício que hegemoniza a nova dinâmica do capitalismo neoliberal.

Nosso tempo histórico é o tempo das contradições supremas do capital social total como etapa histórica de declínio da civilização burguesa. A dessocialização humana exposta acima ocorre na etapa mais elevada do processo civilizatório do homem (a redução das barreiras naturais). O homem se ressocializa no momento histórico em que a sociedade se tornou cada vez mais social. A dessocialização do homem é produto do desemprego em massa e exclusão social; e do processo de precarização e institucionalização da nova precariedade salarial baseada em formas de gestão toyotista (gestão pelo estresse); e a fragmentação dos coletivos sociais pelo capitalismo de plataforma com a ideologia do empreendedorismo e “uberização” do trabalho – trabalho sem forma – em plena Indústria 4.0.

O Brasil tornou-se vitrine da barbárie social do capitalismo globalizado do século XXI. País do futuro, sem futuro, porque… o futuro já chegou. É com a vigência da barbárie social que se expõe o problema crucial da possibilidade de constituição do sujeito histórico capaz de ir além do capital. Como sintomas da barbárie social, temos a dissolução do horizonte utópico e a reiteração do tempo presente (a “presentificação crônica”). A barbárie social explicita o novo irracionalismo social caracterizado pelo intimismo narcísico, expressão de personalidades fictícias cada vez mais particularistas, imersas na concorrência de mercado; pelo ideal de consumismo voraz – inclusive, o “consumismo de outros” – que visa suprir o vazio existencial de vidas inautênticas. E pior: a barbárie social na periferia expõe a miséria do sobrevivencialismo que faz com que a massa das multidões que vivem do trabalho precário tenham como única utopia sobreviver no dia-a-dia.

A nova lógica da virtualização do trabalho faz com que as sociedades neoliberais sejam sociedades da autoexploração, com a digitalização do trabalho aprofundando a alienação e autoalienação que caracterizam o trabalho capitalista. A problemática da autoalienação é a problemática candente dos tempos de barbárie social. Ela se expressa nos adoecimentos físicos e mentais. Mesmo antes da pandemia, a preocupação com a saúde dos trabalhadores e trabalhadoras era crescente. Com o aprofundamento da barbárie social na situação de pandemia, cresceram os indicadores de transtornos psicológicos e depressão no mundo do trabalho.

A ruína do mercado do trabalho no Brasil, o aumento da nova pobreza de classe média, somando-se à pobreza crônica estrutural da sociedade capitalista no Brasil e a pandemia do novo coronavírus, a preocupação com a sobrevivência tornou-se um elemento fundamental. A sociedade brasileira é hoje a sociedade da luta pela sobrevivência. O Brasil tornou-se um país do sobrevivencialismo. Não se trata apenas dos mundos de miseráveis que habitam no Brasil e que se preocupam cotidianamente em não morrer de fome. Mesmo nas camadas médias assalariadas o sobrevivencialismo é um elemento de preocupação do mundo do trabalho. Nesse caso, o sobrevivencialismo das camadas médias é de outra natureza: elas se preocupam em não se “miserabilizar”, isto é, lutar para que o padrão de vida delas não caia ao nível dos “pobres”.

Diante da pandemia, a dura luta pela sobrevivência sofre radicalização viral. A guerra contra o vírus intensifica a luta pela sobrevivência. O vírus transformou o mundo em uma quarentena em que a vida fica completamente estagnada, transformada em sobrevivência. E na luta pela sobrevivência, a questão da qualidade de vida não se coloca. Todas as forças vitais são aplicadas para prolongar a vida a qualquer custo. A sociedade de sobrevivência perde completamente a capacidade de valorizar a qualidade de vida. Na verdade, sacrificamos voluntariamente pela sobrevivência tudo o que torna a vida digna de ser vivida. A pandemia do novo coronavírus instaurou uma “nova normalidade”, em nome da sobrevivência. Aceitamos sem questionar o “estado de exceção”, que reduz a vida à pura sobrevivência. Trata-se de um fato objetivo que abre espaço para a barbárie social. Finalmente, um traço importante da miséria brasileira reproduzida como “ópio do povo” e também, como “choro das criaturas aflitas”: o fundamentalismo de mercado ganha sua expressão teológica na disseminação do neopentecostalismo da prosperidade. “Deus” se torna “dEUs”, o EU das criaturas aflitas imersas na alienação e autoalienação cotidiana.

A barbárie social se manifesta de forma extrema nos países de capitalismo dependente hipertardio como o Brasil. Tais traços da barbárie social salientados acima são elevados à enésima potência no caso brasileiro. Os traços de barbárie social compõem-se e articulam-se com traços da “miséria brasileira”, caracterizada pela irresolução histórica da questão democrática, questão nacional e questão social. A barbárie social do capitalismo globalizado 4.0 e a “miséria brasileira” do arcaico sendo reposto efetivamente pelo moderno, efetuam uma “dança macabra” onde uma se confunde com a outra. Não se trata de mera regressividade histórica, mas sim da atualização (aggiornamento) do capitalismo retardatário do Brasil. Fica a interrogação: como denominar a conjunção histórica “monstruosa” entre a “miséria brasileira” e o “sociometabolismo da barbárie” no século XXI? É a “dança macabra” entre duas formas de estranhamento social do capital que produzem a “lumpenização” do homem burguês no Brasil – como iremos ver adiante.

Na medida em que ingressamos na fase de declínio histórico do capital como modo de produção da vida – e no Brasil, isso se expõe como sendo a catástrofe brasileira –, manifesta-se como característica do modo de controle estranhado do capital a sua expansividade e incontrolabilidade. Trata-se de uma problemática que deve marcar o século XXI articulando as contradições fundamentais do capitalismo e as contradições metabólicas do capital (a fratura metabólica entre o capital e a natureza!).

Desde o seu impulsionamento histórico com o globalismo neoliberal, a mundialização do capital contém um elemento paradoxal de “civilização em excesso”. A barbárie sociometabólica – outro nome para a barbárie social – é a nova normalidade da vida social. Ela se explicita como sendo o sistema de controle estranhado do metabolismo social por meio da disseminação de personalidades narcísicas autocentradas em suas fruições egoísticas que se utilizam do outro como mero meio do gozo particularista (ethos burguês). O homem perverso tende a imputar ao outro a culpa pela sua própria desgraça. É a vigência da banalidade do mal – banalidade (e racionalização) do mal que se incorpora no próprio metabolismo social. As formas perversas (e farsescas) de sociabilidade humana tornaram-se o modo de estruturação do metabolismo social de manipulação do capital nas condições históricas do Estado e sociedade civil neoliberal.

No Brasil, o colapso da modernização como projeto histórico civilizacional desenvolvimentista e a integração do país da “miséria brasileira” no capitalismo global significou o apodrecimento do homem burguês e, por conseguinte, a lumpenização da classe média e o aburguesamento do lumpesinato. Trata-se de processos reflexivos e pontos nodais da conjunção entre sociometabolismo do capital e “miséria brasileira”. A sociomorfologia da barbárie intensifica (e amplia) a reificação das relações sociais humanas, intervertendo-as em relações sociais instrumentais mediadas pelo dinheiro e poder.

Foi com o modo de produção capitalista que emergiu a coisificação de homens e mulheres, transformados em mercadoria-força de trabalho. O Brasil nasceu sob o domínio da reificação universal tendo em vista sua formação escravista-colonial. Desde o século XV, nós somos “modernos”. Essa é a nossa trágica particularidade histórica inscrita no modo de entificação do capitalismo no Brasil. Mas a irrupção da era neoliberal há trinta anos, fortaleceu à exaustão, o laço social estranhado contido no nosso DNA histórico. Na medida em que o neoliberalismo reforçou a coisificação de homens e mulheres, tornados meros meios para fins particularistas, nos reencontramos com um traço ontogenético da “miséria brasileira”: a escravidão moderna. Neoliberalismo e recolonização articulam-se do mesmo modo que miséria brasileira e sociometabolismo da barbárie. Fechou-se sobre nós, com o globalismo neoliberal – duplamente – o “império da manipulação social”. A era lulista nos fez esquecer da farsa da Nova República, criando outra farsa exposta com o golpe de 2016. Com o capitalismo globalizado fomos repostos pelo golpe neoliberal, com nosso “destino histórico”: o Brasil como colônia de exploração que nasceu sob o estigma da forma-mercadoria (Brasil é o nome originário da mercadoria pau-brasil comercializada pelos colonizadores português).

O projeto vitorioso de ignorância cultural como dominação de classe alcançou um patamar supremo com a manipulação espiritual das “criaturas aflitas” (Igrejas neopentecostais) e a manipulação cognitiva pelas redes sociais da internet e meios tradicionais de manipulação do povo brasileiro (e classe média) – jornais, revistas, rádios e televisão. E, por fim, manipulação política por meio da prática histórica da “politicagem” (o sistema político comandado pelas oligarquias políticas e os novos “currais eleitorais”).

A ignorância cultural deforma a subjetividade humana, intensificando a autoalienação. O Brasil vive – no século XXI – o “coquetel da morte” caracterizado pela “dança macabra” entre o historicamente novo (a barbárie social impulsionada pela nova razão neoliberal); e o historicamente arcaico (a miséria brasileira). No que diz respeito à subjetividade social, os algozes tendem a imputar às vítimas de opressão, espoliação e exploração, a culpa pela própria desgraça. Isto tornou-se elemento do sociometabolismo da barbárie.

Por exemplo, no plano da organização do trabalho – setor privado e setor público, presenciamos a lógica do novo gerencialismo ou gestão do toyotismo sendo incorporada com vigor: o fracasso é culpa do sujeito. Os atos infames dos algozes aparecem como expressão da normalidade extrema da civilização do capital. No caso do Brasil, país de civilização cristã de extração colonial-escravista, o afeto da culpa faz parte há séculos da subjetivação social. Por isso, com o capitalismo global, o capitalismo brasileiro se reencontra com sua própria miséria histórica. Na verdade, o novo controle estranhado do metabolismo social na era neoliberal opera a organização psíquica dos afetos regressivos da alma humana brasileira (culpa, medo e ressentimento) no sentido da conservação social. Mais uma vez, eis o sentido da barbárie social enquanto elemento compositivo da prática política da direita e extrema-direita. A política da extrema-direita soube explorar a nova economia psíquica do capital e seu lastro material da barbárie social.

Antes de concluirmos, é interessante resgatar o significado do termo “lumpenização” do homem burguês. Por “homem burguês” entendemos não apenas o homem capitalista, mas o homem de classe média e o homem proletário enquanto sujeitos integrados à ordem competitiva do consumo e suas expectativas contingentes de realização pessoal. Na sociedade burguesa, o aburguesamento é a condição ideológica dominante, inclusive entre proletários e miseráveis. Mesmo imerso na “proletariedade extrema”, o “lumpen” paradoxalmente, não se indigna contra a ordem burguesa, mas pelo contrário, visa integrar-se nela. O termo “lumpemproletariado” (do alemão Lumpenproletariat: “seção degradada e desprezível do proletariado”, de lump ‘pessoa desprezível’ e lumpen ‘trapo, farrapo’ + proletariat ‘proletariado’), ou lumpesinato, ou ainda subproletariado, designa, de acordo com Marx e Engels, a população situada socialmente abaixo do proletariado com direitos sociais. O “lumpen” do ponto de vista das condições de vida e de trabalho, é formada por frações miseráveis, não-organizadas do proletariado, não apenas destituídas de recursos econômicos, mas também desprovidas de consciência política e de classe, imersos em trabalho sem forma, sendo, portanto, suscetíveis de servir aos interesses da burguesia. O subproletariado brasileiro historicamente esteve no limiar da lumpenização (o que explica a operação dos currais eleitorais organizados pelas oligarquias burguesas dominantes).

A nova precariedade salarial e a multidão de proletários subutilizados no mercado de trabalho com as economias de plataformas, é uma forma de operar a lumpenização social tendo um caráter político (e simbólico) de conservação social da ordem decrépita do capital. Na perspectiva marxista, o lumpemproletariado seria pernicioso, já que seu cinismo, e sua absoluta ausência de valores, poderiam “contaminar” a consciência social do proletariado como classe social. O termo lumpemproletariado, que pode ser traduzido, ao pé da letra, como “homem trapo”, foi introduzido por Karl Marx e Friedrich Engels, em A Ideologia alemã (1845). O lumpenproletariat na época de Marx e Engels, seria constituído por quem nada contribuía para a produção, dedicados a atividades marginais, como prostitutas, ladrões, etc. Marx assim descreveu o lumpenproletariat:

“Sob o pretexto da instituição de uma sociedade beneficente, o lumpemproletariado parisiense foi organizado em seções secretas, sendo cada uma delas liderada por um agente bonapartista e tendo no topo um general bonapartista. Roués [rufiões] decadentes com meios de subsistência duvidosos e de origem duvidosa, rebentos arruinados e aventurescos da burguesia eram ladeados por vagabundos, soldados exonerados, ex-presidiários, escravos fugidos das galeras, gatunos, trapaceiros, lazzaroni [lazarones], batedores de carteira, prestidigitadores, jogadores, maquereaux [cafetões], donos de bordel, carregadores, literatos, tocadores de realejo, trapeiros, amoladores de tesouras, funileiros, mendigos, em suma, toda essa massa indefinida, desestruturada e jogada de um lado para outro, que os franceses denominam la bohème [a boemia]; com esses elementos, que lhe eram afins, Bonaparte formou a base da Sociedade 10 de Dezembro (O 18 Brumário de Luís Bonaparte, p.91)

Não se faz revolução social com lúmpens. O ser lúmpen significa pessoa desprovida de qualquer tipo de princípio ético, sendo, além de uma categoria sociológica, um estado de espírito que não se restringe a classes ou categorias sociais; mas pode-se utilizá-la para caracterizar um princípio de subjetivação. A barbárie social é o modo de subjetivação do “lúmpen” pois implica a corrosão do caráter ou a degradação de valores ético-politico da prática social.

No caso do Brasil, o modo de objetivação prussiano-colonial do capitalismo há séculos tornou o Estado burguês fragilizado em seus componentes ético-políticos. Corroído pelo patrimonialismo e interesses privatistas, o Estado burguês no Brasil sempre teve dificuldades em constituir-se como esfera pública. Por isso, a corrupção da res publica é um fenômeno endêmico lastreado pelos interesses das classes dominantes. Feito à imagem do Estado político, a sociedade civil incorporou os traços da corrosão ético-moral. Com a era neoliberal, aprofundou-se as debilidades da institucionalidade pública, tendo em vista o protagonismo do mercado com seus interesses particularistas.

Na verdade, a era da barbárie social é a era da corrupção do capital como sistema de controle do metabolismo social. Não se trata apenas da corrupção por dinheiro, mas a corrupção de valores morais. A corrupção privada subsiste à sombra da corrupção estatal. O Estado político é manifestação da sociedade civil burguesa que o constituiu a sua imagem e semelhança. A crise estrutural do Estado como instância político-moral é um elemento estrutural do capital em sua etapa de declínio histórico. No caso do Brasil, a corrupção é um elemento da “miséria brasileira” que se aprofundou com o capitalismo neoliberal.

A “lumpenização” da classe média significa o acirramento da concorrência e da degradação dos princípios ético-morais de sociabilidade burguesa. É expressão do apodrecimento do homem burguês. O homem burguês se desmancha no ar: como tudo que é sólido. De guardiã dos valores burgueses da civilização do capital, a classe média tornou-se “coveira” das promessas éticas de reprodução social da ordem burguesa. No mundo social da escassez, o pequeno-burguês – por má-fé ou ingenuidade – “sujou as mãos”, assumindo com fatalismo, o lado podre da vida burguesa.

O caso do Brasil é exemplar. Com o neodesenvolvimentismo da era lulista (2003-2014), a invasão da ordem burguesa pelos “novos bárbaros” (os pobres aburguesados no limiar do lumpesinato) aterrorizou o imaginário da classe média miserabilizada mobilizada pela direita e extrema-direita (utilizei o termo “proletaróide” para caracterizar o pobre aburguesado). O lúmpen não é burguês, mas aspira a ser: eis o segredo oculto do lumpenizado. Ele é o burguês ressentido de sua miserabilidade humana. O lúmpen quer ser preposto do burguês, “testa-de-ferro” da classe dominante. A lumpenização significa a “decadência sem elegância” (décadence sans élégance) do homem burguês que, com seu apodrecimento por conta do declínio histórico do capital, tende a se disseminar pelo metabolismo social. Mas, a barbárie social que se dissemina na sociedade burguesa, não vem de fora tal como os antigos bárbaros que ocuparam Roma Antiga. Ela é endógena à ordem metabólica do capital – emergiu de dentro da ordem perversa do capital que degrada em suas entranhas as relações humano-sociais. O homem burguês lumpenizado invade o que está corroído (e corrompido) pelo apodrecimento da relação-capital.

A “lumpenização” da classe média e o “aburguesamento” do proletariado são determinações reflexivas da barbárie social que, no caso da “miséria brasileira”, adquiriram dimensões colossais. Existe um sentido de crise civilizatória que, com a crise do capitalismo global, aprofundou-se na década de 2010.

Concluímos nossa larga análise sobre as origens históricas da miséria brasileira fazendo referência ao filme O invasor (1999), de Beto Brandt. Lançado no começo do século XXI, o filme de Brandt é premonitório ao expor elementos da barbárie social que emergiriam no Brasil com a crise do capitalismo global da década de 2010. O filme mostra o apodrecimento do Estado oligárquico-burguês, expondo em sua narrativa, a figuração nítida da desigualdade social e da corrupção moral da classe média. Anísio, interpretado por Paulo Miklos, é o invasor, sendo ele a representação do lúmpen aburguesado que ocupou o espaço social da classe média moralmente corrompida. Um paralelo com Jair Bolsonaro, eleito em 2018 para Presidência da República, não seria mera coincidência. Bolsonaro representa isso: a classe média lumpenizada instigada em seus afetos medonhos pelo medo da miserabilidade. Mesclam-se na alma do homem burguês lumpenizado os afetos do medo, culpa, ressentimento e ódio de classe – contra os pobres. Uma das músicas do filme se intitula “orgia”. Diz respeito ao mundo social da barbárie constituída por um mundo de homens sem rostos, rostos virtualizados, vazios de expressão humana. Enfim, rostos do trabalhador sem forma. Rostos que nada dizem e nada lembram. Como diz uma passagem da letra da música: “Não tenho rosto/ Nada do que possa se lembrar depois” ou ainda “Eu tenho fome/Eu tenho em mente/Uma grande orgia”. A letra de Paulo Miklos não diz respeito à fome material, mas sim à fome espiritual, produto histórico secular da ignorância cultural como projeto de poder do Estado oligárquico-burguês no Brasil.

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Giovanni Alves é doutor em ciências sociais pela Unicamp, livre-docente em sociologia e professor da Unesp, campus de Marília. É pesquisador do CNPq com bolsa-produtividade em pesquisa e coordenador da Rede de Estudos do Trabalho (RET), do Projeto Tela Crítica e outros núcleos de pesquisa reunidos em seu site giovannialves.org. É autor de vários livros e artigos sobre o tema trabalho e sociabilidade, entre os quais O novo (e precário) mundo do trabalho: reestruturação produtiva e crise do sindicalismo (Boitempo, 2000) e Trabalho e subjetividade: o espírito do toyotismo na era do capitalismo manipulatório (Boitempo, 2011). Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às segundas.

Confira aqui a primeira parte desse artigo da série sobre a catástrofe brasileira:

https://blogdaboitempo.com.br/category/colunas/giovanni-alves/

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