A fraude da «guerra contra o terrorismo»

imagemUma viatura militar norte-americana na província de Hasaka (Nordeste da Síria), em Novembro de 2018 Créditos / PressTV

José Goulão

ABRIL ABRIL

A «guerra contra o terrorismo» foi declarada em 2001 pelo então presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, juntamente com a OTAN, a União Europeia e outras instituições internacionais satelitizadas por Washington, alegadamente na sequência dos ainda muito mal explicados atentados de 11 de setembro do mesmo ano; sabe-se hoje que alguns dos conflitos abertos a partir daí, designadamente as invasões do Afeganistão e do Iraque, estavam programados antes da catástrofe de Nova Iorque, pelo que esta foi um pretexto mas não a causa.

Em 20 anos dessa operação multifacetada e transnacional, que entretanto em 2014 o presidente Barack Obama rebatizou como «guerras ultramarinas de contingência», o terrorismo, sobretudo o de fachada «islâmica», não apenas se enraizou e organizou como alastrou através do planeta, com especial incidência na África, mas também no Cáucaso, na Ásia Central e outras regiões asiáticas como a província chinesa do Xijiang. Além do Afeganistão e do Médio Oriente, onde o fenômeno nasceu.

Em suma, a «guerra contra o terrorismo» agravou o fenômeno que prometeu combater. Nasceu como uma fraude.

Não se inclui no conceito de terrorismo contra o qual terá sido declarada a «guerra» a manifestação de terror mais determinante para a desordem mundial em que vivemos e cujas práticas e designação vêm sendo silenciadas ou mesmo abolidas pelas centrais midiáticas internacionais: o terrorismo de Estado.

Esta forma de violência, institucionalizada com a cobertura de entidades que deveriam zelar pela paz e o direito internacional, como por exemplo a ONU, acaba por ser responsável pelo terrorismo com outras chancelas, entre elas a «islâmica», com as quais é frequentemente conivente, utilizando-as consoante os seus objetivos e as regiões a controlar.

Uma história factual
Quando se iniciou a «guerra contra o terrorismo», entendida praticamente como uma guerra contra a al-Qaeda – considerada, sem provas, como responsável pelos atentados de 11 de setembro – o terrorismo de fachada «islâmica» manifestava-se essencialmente no Afeganistão, nos Bálcãs – aqui em aliança com a OTAN na operação de destruição da Iugoslávia – em bolsas de oposição em alguns dos mais poderosos países do Oriente Médio e também na Palestina: o Hamas (braço da Irmandade Muçulmana egípcia) é um movimento que começou por ser reativado por Israel (contra a OLP) durante a primeiro Intifada, a chamada «revolta das pedras», em 1988.

A generalidade dos grupos fundamentalistas islâmicos atuando à época tinham declaradamente o dedo das principais potências ocidentais em colaboração com as petroditaduras terroristas do Golfo, sobretudo a Arábia Saudita, os Emirados Árabes Unidos e o Qatar.

Tudo leva a crer, pela evolução das circunstâncias ao longo das últimas duas décadas, que essas ligações não foram cortadas, ainda que possam ter adquirido outras formas de atuação onde, contudo, a violência e a crueldade continuaram sempre presentes.

Os Estados Unidos e o Reino Unido nunca esconderam a participação na gênese da versão atual do terrorismo islâmico, nos anos oitenta do século passado, reativando antigos instrumentos usados por Londres durante o Império Britânico, como o salafismo no Afeganistão e a Irmandade Muçulmana no Egito. A Irmandade Muçulmana, como movimento político-religioso enraizado através do mundo islâmico, deve considerar-se a entidade da qual emanaram todas as variantes terroristas «islâmicas» de índole sunita em atuação – embora esses grupos possam considerar-se, essencialmente e cada vez mais, organizações mercenárias.

Nem a história oficial servida pelos meios corporativos consegue esconder que os Estados Unidos, o Reino Unido e a Arábia Saudita criaram os mujahidines no Afeganistão, grupos com práticas medievais cuja principal missão era combater o apoio militar soviético à República Democrática do Afeganistão, a forma de governo que até hoje mais fez pelo país, incluindo o reconhecimento dos direitos das mulheres.

Dos mujahidines, considerados no Ocidente como «combatentes da liberdade» e recebidos como tal pelo presidente norte-americano Ronald Reagan na Casa Branca, emanou o universo de grupos terroristas «islâmicos» que atuam hoje do Afeganistão e do Kosovo, onde governam, a Cabo Delgado em Moçambique, atravessando o Oriente Médio, parte da Europa, da Ásia e da África.

A partir dos mujahidines afegãos formou-se a al-Qaeda (a «rede» de mercenários) sob a gestão direta de Osama bin Laden, oriundo de uma das principais famílias de magnatas da Arábia Saudita e com ligações de parentesco com a casa real, que cumpriu a missão sob o comando da CIA e a colaboração dos serviços secretos britânicos, sauditas e paquistaneses.

Estes são, como se disse, elementos factuais de uma história que não é negada pelos próprios instrumentos de propaganda ocidental que gerem o universo midiático, formando a opinião da grande maioria das populações do planeta.

Ligações que não se desfazem
Observando a realidade internacional hoje existente, a «guerra contra o terrorismo» nasceu como um combate ficcionado entre os criadores e as criaturas. As potências ocidentais, com os Estados Unidos, o Reino Unido e a União Europeia à cabeça, propuseram-se assim a exterminar, para consumo da opinião pública, a rede terrorista a que tinham dado origem, invocando alegadamente a sua responsabilidade pelos atentados de 11 de setembro de 2001.

Inicia-se assim uma longa e trágica história, assente em razões falsas, na qual se sucedem episódios que seriam estranhos se não se suspeitasse – e rapidamente confirmasse – que nunca foi intenção de Washington e seus satélites erradicar a teia terrorista «islâmica», mas sim adaptá-la e utilizá-la para provocar guerras, intervenções político-militares, destruição de Estados independentes, operações de rapina de recursos naturais, guerras civis, golpes de Estado.

A al-Qaeda e os seus vários ramos regionais, a al-Nusra, o Isis, Daesh ou Estado Islâmico, o Hayat Tharir al-Sham, os Talibã são designações de grupos terroristas «islâmicos», «radicais» ou «moderados» conforme as conveniências semânticas, os quais, apesar das divergências pontuais assentes sobretudo em questões pessoais, tribais, de influência regional e de escolas religiosas, em última análise não contrariam ou servem mesmo aos interesses ocidentais. Os casos do Iraque, da Síria, da Líbia, do Iêmen, da Somália, do Sudão, dos Bálcãs, da África Central, da província chinesa do Xijiang não necessitam de explicações muito profundas para se perceber que a guerra entre os criadores e as criaturas serviu muito bem a ambos os lados durante os últimos 20 anos.

De exemplo em exemplo
Vale a pena, apesar disso, repescar alguns exemplos que ilustram cumplicidades que parecem ser estranhas apenas para quem é crédulo, ingênuo ou está plenamente à mercê da propaganda midiática.

Abu-Bakr al-Baghdadi foi um dos fundadores do Estado Islâmico, Isis ou Daesh, uma obra que concretizou depois de ter saído de uma prisão norte-americana no Iraque. Pouco tempo depois a sua imagem foi captada numa reunião secreta ilegal realizada em território sírio entre chefes terroristas e o senador fascista norte-americano John McCain, sempre muito bem relacionado com a Casa Branca independentemente do presidente. O Isis surgiu praticamente do nada em 2014; com uma surpreendente dinâmica arrasadora, atravessou o Iraque quase sem oposição do novo exército deste país, cuja formação custara centenas de milhões de dólares aos contribuintes norte-americanos, praticando inenarráveis massacres de dezenas de milhares de pessoas a partir de uma espalhafatosa frota de centenas de pickups Toyota novinhas em folha e só se detendo quase às portas de Bagdá. Na Síria, o Isis conseguiu controlar uma vasta região onde se situam os principais recursos petrolíferos do país, com a capital em Raqqa. Quando o exército regular sírio, com apoio russo, libertou Raqqa, muitos dos mercenários do Isis e respectivas famílias foram salvos e evacuados em operações supervisionadas pela CIA, deslocados sobretudo para o Afeganistão.

Em 2019, a seguir à derrota na Síria, quando o Isis perdeu peso operacional na guerra internacional movida contra o país, um grupo de forças especiais dos Estados Unidos liquidou al-Baghdadi. A lei do silêncio continua a ser o melhor remédio contra aliados cuja imagem pode ser incômoda, principalmente quando estes deixam de ser úteis.

Que Osama bin Laden foi criado como dirigente terrorista pela CIA e entidades congêneres ninguém duvida. Porém, ninguém poderá dizer quando terminou a ligação entre criadores e criatura, se é que isso alguma vez aconteceu. Já muito depois da saída soviética do Afeganistão, o chefe da al-Qaeda foi visto em Sarajevo em 1998, onde foi garantir o apoio dos seus mercenários aos muçulmanos da Bósnia e Herzegovina e ao seu chefe, Alija Izetbegovic. Isto é, integrou-se na estratégia da OTAN de destruição da Iugoslávia, na qual o território bósnio foi transformado num protetorado da própria Aliança Atlântica.

Três anos depois, precisamente dois meses antes do 11 de setembro de 2001, Bin Laden esteve em tratamento renal num hospital do Dubai. Nessa ocasião, segundo o jornal francês Le Figaro, citando fontes da inteligência francesa, o dirigente da al-Qaeda recebeu uma visita de cortesia do chefe de antena da CIA e um acompanhante, além do responsável pelos serviços secretos da Arábia Saudita, muito bem relacionado simultaneamente com a al-Qaeda e os Talibã.

Não menos relevante é o caso do expoente terrorista Abdelhakim Belhadj, figura que mereceu a confiança da OTAN na operação de destruição da Líbia, apesar de vários trabalhos de investigação o terem dado como um dos responsáveis pelo sangrento ataque de Madri em 11 de março de 2004, que provocou 193 mortos.

Belhadj esteve ao lado de Bin Laden no Afeganistão, fundou o Grupo Islâmico Combatente que lutou contra Khadaffi na Líbia, passou por uma prisão clandestina da CIA na Tailândia e apareceu depois em lugar de destaque entre os terroristas que, aliados à OTAN, assassinaram Khadaffi e destruíram a Líbia em 2011. A OTAN nomeou Belhadj como comandante militar de Trípoli a seguir à tomada desta cidade, cargo de onde partiu pouco tempo depois para a Síria, onde dirigiu o recrutamento de mercenários para o Exército Livre da Síria, o grupo dos chamados «moderados» que participou no desencadeamento da guerra contra Damasco com apoio dos Estados Unidos, OTAN e União Europeia. Os «moderados», na prática, são um mito propagandístico, nunca funcionaram com autonomia: atuaram sempre, como ainda hoje acontece, sob a cobertura operacional da al-Qaeda e do Estado Islâmico.

A guerra e destruição da Líbia fomentaram o desenvolvimento de agrupamentos de mercenários que, sob as chancelas da al-Qaeda e do Estado Islâmico no Magrebe – com a mão de Belhadj – estenderam o terror à África Central, designadamente ao Níger, ao Mali e ao Burkina Faso, detentores de recursos naturais que o colonialismo ocidental não quer partilhar com mais ninguém. Chegaram mesmo bastante mais a sul, à região petrolífera de Cabo Delgado, Moçambique. Como resposta ao alastramento africano do terrorismo com a marca do Isis, a União Europeia e a OTAN fizeram deslocar tropas para algumas das zonas atingidas, afinal para combater alegadamente os terroristas que criaram, mas sobretudo para policiar e garantir a exploração das regiões mais ricas desses países e das suas vizinhanças.

Abdelhakim Belhadj foi premiado pelo senador John McCain em nome dos Estados Unidos, recebeu um milhão de libras do Reino Unido como «reparação» dos tempos em que esteve preso e foi eleito deputado líbio. Várias fontes o dão atualmente como chefe do Estado Islâmico no Magrebe. A Interpol continua sem dar andamento ao mandado de captura contra Belhadj que tem em seu poder.

O caso de Idlib
Numa situação de flagrante atualidade, os Estados Unidos, a OTAN e a União Europeia apoiam abertamente o terrorista Abu Muhammad al-Julani, chefe do Hayat Tharir al-Sham, a designação mais recente do ramo da al-Qaeda na Síria e que dirige a ocupação da província de Idlib, neste país. Os grupos terroristas às ordens de al-Julani contam com a ajuda militar da Turquia, em tropas, e dos Estados Unidos, no fornecimento de armas, transferidas da Sérvia, da Romênia e da Bulgária, como testemunhou a jornalista de investigação búlgara Dilyana Gaytandzhieva, com base em numerosos documentos das empresas norte-americanas que participam neste tráfico.

Idlib é o último bastião terrorista na Síria, uma zona que Washington e Bruxelas ambicionam transformar em base para reativarem os seus objetivos de derrubar o governo de Damasco e desmantelar o país – a exemplo do que aconteceu no Iraque, na Líbia e também no Iêmen, sem contar com a Somália e o Sudão.

De acordo com uma operação de propaganda montada em Washington, e na qual foi utilizada a estação de televisão pública dos Estados Unidos PBS, a organização de al-Julani terá rompido com a al-Qaeda. O chefe terrorista foi entrevistado pela PBS para declarar a sua fidelidade a Washington e a contenção da violência, mas a situação no terreno permanece imutável, gerida sob o clima de terror próprio da al-Qaeda. A ruptura de al-Julani com a organização fundada por Bin Laden não é para ser levada a sério.

Não é difícil deduzir destes fatos e de muitos outros que tornariam este texto quilométrico, por exemplo o acolhimento e treino de mercenários do Isis em bases militares ilegais instaladas pelos Estados Unidos na Síria, que o terrorismo, sobretudo o de chancela «islâmica», se enraizou e ampliou ao cabo de 20 anos de «guerra contra o terrorismo» e o seu terrível cortejo de milhões de vítimas entre mortos, feridos, desalojados e refugiados. Os monstros entretanto criados funcionam como ativos de operações clandestinas a serviço de grandes potências. E os que dizem combater o terrorismo não têm vergonha em recorrer aos seus préstimos quando é impossível assumir perante a opinião pública a prática de atrocidades que contradizem lamentavelmente os discursos sobre direitos humanos, democracia, libertação dos povos e objetivos humanitários.

Em vez de erradicar o terrorismo, a guerra alegadamente desencadeada contra este fenômeno destruiu Estados fortes e independentes, ampliou os focos de instabilidade um pouco por todo o mundo, espalhou ainda mais fome e aprofundou as desigualdades, alargou o poder imperial e colonial no controle das fontes dos mais importantes recursos naturais – com as consequências trágicas que se percebem para o estado do planeta.

A «guerra contra o terrorismo» não é apenas uma fraude; é um crime contra os valores que a «civilização ocidental» apregoa, uma operação expansionista que eleva os lucros da indústria transnacional de guerra e dos grandes potentados econômicos e financeiros mundiais.

José Goulão, exclusivo O Lado Oculto/AbrilAbril