Lições da derrota imperialista no Afeganistão

imagemJorge Cadima

ODIARIO.INFO

O fiasco afegão dos EUA em agosto de 2021 é fruto de muitas décadas de ingerências imperialistas, incluindo vinte anos de invasão e ocupação directa do Afeganistão pelos EUA/OTAN.

O saldo da ingerência EUA/OTAN no Afeganistão é um desastre completo. Muitas centenas de milhares de mortos; milhões de refugiados e desalojados; um país destruído, cuja economia gira à volta da produção do ópio (85% a 90% da produção mundial) e que alimenta o tráfico de drogas internacional, o sistema financeiro do capitalismo mundial e as operações dos serviços secretos do imperialismo. Mas o Afeganistão nem sempre foi assim. Quem olhar hoje para fotografias do Afeganistão nas décadas de 70 e 80 do século passado terá dificuldade em acreditar que se trate do mesmo país que nos habituamos a ver nos anos mais recentes.

A Revolução Afegã de 1978

A Revolução de 27 de abril de 1978, encabeçada pelo Partido Democrático Popular do Afeganistão (PDPA) entroncou numa longa tradição de resistência anti-imperialista do povo afegão, que enfrentou e infligiu derrotas ao poderoso Império Britânico ao longo do Século XIX (1). Em 1919, sob a influência da Revolução de Outubro na vizinha Rússia, o governo britânico foi forçado a reconhecer a independência do Afeganistão. A URSS e o Afeganistão estabeleceram ao longo do Século XX relações de amizade e cooperação. Em 1973 a desacreditada monarquia afegã é substituída por uma República, mas cujo Presidente fora chefe do governo, e era primo do Rei. Cinco anos mais tarde o Afeganistão juntar-se-ia a uma longa lista de países que conheceram avanços revolucionários importantes no século passado.

Miguel Urbano Rodrigues, num livro (2) relatando as suas viagens ao Afeganistão revolucionário, conta como «Dias antes da revolução, mais de 100 000 pessoas concentraram-se diante da Embaixada dos EUA em gigantesca manifestação de protesto contra as ingerências imperialistas na vida nacional. […] Em Kabul, Herat e Kandahar vivia-se em atmosfera pré-revolucionária. Nesses dias, uma cerimônia religiosa não atrairia uma centena de pessoas. O rio da revolução corria como uma torrente de montanha».

O conhecido jornalista australiano John Pilger escreve um merecido elogio à Revolução Afegã de 1978, num artigo com o título «O Grande Jogo de esmagar nações» (rt.com, 25.8.2021): «Foi uma revolução imensamente popular que apanhou de surpresa ingleses e norte-americanos. Jornalistas estrangeiros em Cabul, relatou o The New York Times, ficaram surpreendidos ao descobrir que ‘quase todos os afegãos que entrevistaram diziam estarem encantados com o golpe’. […] Secular, modernista e, em grau considerável, socialista, o governo declarou um programa de reformas visionárias que incluía direitos iguais para mulheres e minorias. Os presos políticos foram libertados e os arquivos da polícia política queimados publicamente. Sob a monarquia a esperança de vida era de 35 anos; 1 em cada 3 crianças morria na infância. Noventa por cento da população era analfabeta. O novo governo introduziu cuidados médicos gratuitos. Foi lançada uma campanha de alfabetização em massa. Para as mulheres, os ganhos não tinham precedentes: no final da década de 1980, metade dos estudantes universitários eram mulheres, e as mulheres representavam 40% dos médicos do Afeganistão, 70% dos professores e 30% dos funcionários públicos». Era assim a revolução popular conduzida pelos comunistas afegãos.

Refletindo a contraditória realidade do país foi decretada uma Reforma Agrária «em nome de Alá». Quase esquecido é o fato de que o Afeganistão chegou a ter um cosmonauta, Abdul Ahad Momand, que viajou para o espaço em 1988, tendo passado seis dias na estação espacial soviética Mir. Ao falar com a sua família, tornou o pashtun na quinta língua falada a partir do espaço.

Foi para derrotar esta realidade de progresso e libertação nacional e social revolucionária (com inevitáveis erros e evitáveis divisões internas) que os EUA, em nome do anticomunismo e do anti-sovietismo, desencadearam uma gigantesca e brutal operação de ingerência e subversão. Retiraram do caixote de lixo da História as mais retrógradas e reacionárias forças feudais e do fundamentalismo religioso, a quem entregaram milhares de milhões de dólares, armamento sofisticado e legitimidade política para cometer os seus crimes – simbolizada pela recepção na Casa Branca dos dirigentes dos mujahedins.

Em resposta a esta agressão externa, o governo afegão apelou à ajuda militar soviética, no final de 1979. Uma operação que foi rapidamente convertida pela propaganda ao serviço do imperialismo em «invasão do Afeganistão». Seria como classificar a atual presença russa na Síria, a pedido do governo legítimo desse país, como uma ‘invasão’. A propaganda do imperialismo é exímia em converter as vítimas em agressores e vice-versa.

Esta verdade dos fatos foi abertamente confessada pelo ex-Secretário de Segurança Nacional dos EUA, Zbigniew Brzezinski, em entrevista à revista francesa Nouvel Observateur (n.º 1372, 15.1.1998). Afirmou: «segundo a versão oficial da História [sic] a ajuda da CIA aos mujahedins começou em 1980, ou seja após a invasão do Afeganistão pelo exército soviético, a 24 de dezembro de 1979. Mas a realidade, mantida secreta até agora [sic] é bem diferente: foi na realidade a 3 de julho de 1979 que o Presidente Carter assinou a primeira diretiva sobre a ajuda clandestina aos opositores do regime pró-soviético de Cabul. E nesse dia eu escrevi uma nota ao Presidente na qual explicava que, em minha opinião, esta ajuda iria desembocar numa intervenção militar dos soviéticos». O jornalista da Nouvel Observateur insistiu que «quando os soviéticos justificaram a sua intervenção afirmando que visavam lutar contra uma ingerência secreta dos EUA no Afeganistão, ninguém acreditou neles. E no entanto, tinham um fundo de razão… Você não lamenta nada hoje?». Brzezinski responde: «Lamentar o quê? Esta operação secreta foi uma excelente ideia. Teve por efeito atrair os russos para a ratoeira afegã e você quer que eu me lamente?». Perante a insistência do jornalista que perguntava se não lamentava «ter dado armas e conselhos a futuros terroristas», o Conselheiro de Segurança Nacional dos EUA respondia: «O que é mais importante para a História do mundo? Os talibãs ou a queda do império soviético?». Palavras carregadas de amarga ironia, no verão de 2021, face à débâcle norte-americana no Afeganistão e aos sinais cada vez mais evidentes da decadência dos EUA.

Os fatos falam por si: a libertação nacional e social dos povos conquista-se pela luta e gera inevitavelmente a resistência violenta das classes dominantes, internas e externas. A hipocrisia da comunicação social pró-imperialista sobre ‘direitos humanos’ ou ‘direitos das mulheres’ é revoltante. Mas raia o inconcebível quando aborda o Afeganistão.

A destruição imperialista do Afeganistão

Importa relembrar o que significou, no concreto, o apoio do imperialismo aos seus ‘combatentes pela liberdade’ terroristas. Pode-se fazê-lo citando fontes apoiantes do imperialismo. Em 27 de Fevereiro de 1980 o Diário de Notícias republicou uma reportagem do New York Times onde se afirma: «Os ‘mujahedin’ não fazem prisioneiros […] ‘Queriam mandar toda a gente às aulas deles, mesmo os velhos e as mulheres com mais de 10 filhos. Portanto matamos o professor que era comunista e fugimos’ diz-nos um guerrilheiro, explicando o que acontecera na sua aldeia. […] Dois dos jovens mujahedin conduziram um dos visitantes a uma ravina por trás da aldeia, onde diziam ter executado 16 comunistas. Havia ossos humanos espalhados entre as rochas».

Mas a maioria dos crimes ‘democráticos’ não chega ao grande público. O famoso jornalista Robert Fisk escreveu (Independent, 23.9.2001): «Em 1980 eu trabalhava para o The Times, e mesmo a sul de Cabul ouvi uma história muito perturbadora. Um grupo de combatentes religiosos mujahedin tinha atacado uma escola porque o regime comunista forçara as raparigas a serem educadas ao lado dos rapazes. E tinham bombardeado a escola, assassinado a mulher do diretor e cortado a cabeça ao seu marido. Era tudo verdade. Mas quando o The Times publicou a história o Foreign Office [Ministro dos Negócios Estrangeiros inglês] protestou junto dos serviços internacionais [do jornal] porque o meu relato apoiava os russos. Claro. Porque os combatentes afegãos eram os gajos bons. Porque Osama bin Laden era um bom moço. Charles Douglas-Hume, então editor do The Times insistia sempre que os guerrilheiros afegãos fossem designados ‘combatentes pela liberdade’ nas manchetes».

A sórdida aliança do imperialismo com o terrorismo contrarrevolucionário é uma constante da História. Lembremos a Líbia, a Síria e o ISIS, como antes a Nicarágua, Angola ou Moçambique. A barbárie da dominação imperialista, seja pelas guerras de agressão directa, seja por interpostos bandos terroristas ao seu serviço, é uma realidade que nenhuma propaganda poderá jamais apagar.

A alteração na correlação de forças mundial, resultante da vitória da contrarrevolução na URSS e outros países do Leste europeu, acabaria por representar também o dobre de finados para a Revolução Saur [de Abril] afegã. Mas importa assinalar, até pelo que confirma de base de apoio popular a essa revolução e pelo contraste evidente com os acontecimentos recentes, que o governo progressista afegão sobreviveu mais de três anos após a saída do último soldado soviético (15.2.1989) e sobreviveu mesmo quase meio ano à dissolução da União Soviética (26.12.1991). Foi apenas em Abril de 1992 que o último Presidente do Afeganistão progressista, Mohammad Najibullah, cercado pelo imperialismo triunfante e abandonado pela camarilha colaboracionista de Ieltsin, se demitiu e refugiou nas instalações da ONU em Cabul. Quatro anos mais tarde, quando os talibãs tomaram pela primeira vez Cabul (26.9.1996, Najibullah foi o seu primeiro alvo. O jornalista Jason Burke (escrevendo na London Review of Books em 22.3.2001) descreve assim o que se passou após o rapto do ex-Presidente das instalações da ONU: «foi espancado, castrado, arrastado para detrás de um jipe e depois fuzilado. Também o seu irmão foi morto e os seus corpos maltratados foram pendurados numa trave […] no centro da cidade». É evidente o paralelismo com o assassinato do Presidente líbio Kadafi no final da guerra da OTAN de 2011. O imperialismo gosta de castigos públicos exemplares de quem se atreve a fazer-lhe frente.

O imperialismo não é invencível

Os países alvo das campanhas imperialistas são rapidamente esquecidos nas manchetes da comunicação social de regime quando o ‘perigo’ do progresso social é afastado e ‘a ordem’ é restabelecida. Mesmo que esses países caiam no desastre total. Foi o que aconteceu com o Afeganistão, que conheceu alguns dos anos mais terríveis de combates e destruição entre 1992 e 1996, no silêncio mediático. A capital, ocupada pelos mujahedins da Aliança do Norte após a demissão de Najibullah em 1992, esteve cercada pelos talibãs durante três anos. Alvo de bombardeios constantes por parte dos sitiantes, Cabul conheceu mais de 20 mil mortos e 100 mil feridos (Time, 27.2.1995). Quando os talibãs tomaram a cidade instalaram um regime de terror, com execuções públicas e rigorosíssimas medidas de cariz religioso.

Mas a invasão do Afeganistão pelos EUA em dezembro de 2001 não teve por objetivo central pôr fim ao regime dos talibãs, a quem a guerra suja financiada pelo imperialismo abriu as portas do poder. O que realmente determinou a invasão foi a viragem na política dos EUA após o desaparecimento da União Soviética. O imperialismo norte-americano, sentindo-se liberto duma realidade que o condicionara e limitara durante três quartos de século, passou à ofensiva. Os sinais da decadência da hegemonia planetária dos EUA, hoje por demais evidentes, já eram visíveis no final do milênio (3), embora a vitória política sobre o campo socialista ajudasse a camuflar essa realidade. Numa tentativa de contrariar o seu declínio, o imperialismo norte-americano decidiu aproveitar a conjuntura e passar à ofensiva, com a ocupação directa de numerosos países, nomeadamente do Médio Oriente rico em recursos energéticos cruciais para uma dominação mundial.

Seja qual for a verdade dos factos dos ataques de 11 de setembro de 2001 (a única coisa segura é que a versão oficial não corresponde à realidade), o que é evidente é que estes serviram de pretexto para a grande viragem do imperialismo EUA em direcção a uma estratégia de ocupações diretas. Eram os anos em que, como confessou o General Wesley Clarke, ex-chefe das forças armadas da OTAN na guerra contra a Iugoslávia, nos corredores do Pentágono se proclamava abertamente que nos cinco anos seguintes sete países seriam invadidos e ocupados (4). Eram os anos em que um neocon, de nome Jonah Goldberg, escrevia tranquilamente um artigo com o título «Baghdad Delenda Est» (5) descrevendo o que designava por ‘Doutrina Ledeen’: «A cada dez anos, os Estados Unidos precisam de pegar num pequeno país de merda e atirá-lo contra a parede, só para mostrarmos ao mundo que falamos a sério» (www.nationalreview.com, 23.4.2002) (6). A arrogância não conhecia limites.

Mas a História veio mostrar os limites do imperialismo. Vinte anos transcorridos após a invasão do Afeganistão, e face à resistência que nunca deixou de se manifestar, mesmo por parte dos seus antigos aliados, os EUA acabam por se retirar de forma humilhante do Afeganistão. Duas décadas de massacres, que prosseguiram literalmente até ao último dia (7), tiveram como saldo uma desprestigiante retirada. O espectáculo do ‘Presidente’ Ghani a fugir do país com 169 milhões de dólares no avião (news.yahoo.com, 18.8.2021) é elucidativo da natureza do regime fantoche de ocupação criado pelos EUA. Tal como o é a descrição do ex-Vice-Presidente Saleh feita por Scott Ritter, ex-fuzileiro e inspector de armamentos da ONU antes da invasão do Iraque de 2003, e que entrou em rota de colisão com a política externa do seu país ao constatar as mentiras sobre as ‘armas de destruição em massa de Saddam Hussein’. Ritter afirma (8) que «Saleh é um tipo importante na CIA», que «geria esquadrões da morte» cujo objetivo era «assassinar dirigentes talibãs» e «as suas famílias». E acrescenta que os membros destes esquadrões da morte «são as pessoas que transportamos para fora do Afeganistão nos nossos aviões [durante a retirada]. São eles que estão vindo para os Estados Unidos».

No seu discurso de 31 de agosto, o Presidente Biden explica a retirada, referindo-se aos incomportáveis custos econômicos e políticos da guerra. Biden queixou-se que 20 anos de ocupação do Afeganistão custaram aos EUA «2 trilhões de dólares», ou seja «300 milhões de dólares por dia ao longo de duas décadas», e deu a informação «chocante» de que «em média, 18 ex-combatentes se suicidam, por dia, na América». Este colossal valor, sensivelmente igual a oito anos de Produto Interno Bruto de Portugal, alimentou os mega-lucros privados do complexo militar-industrial. Mas contribuiu para o insustentável endividamento do Estado norte-americano. As discussões em curso sobre a elevação do patamar da dívida pública dos EUA (quase 30 trilhões de dólares) mostram que a situação a que conduziram décadas de pilhagem dos recursos públicos pelo grande capital comprometem a viabilidade do seu Estado.

É também uma lição importante a extrair dos acontecimentos afegãos: apesar de uma esmagadora superioridade de recursos, o imperialismo, quando confrontado com resistência, pode ser derrotado. Os processos históricos, econômicos, sociais e políticos não ficam em suspenso. E, quando se acumulam as contradições, dão-se saltos qualitativos que evidenciam a realidade que a propaganda midiática tenta ocultar.

Biden como Trump; a UE como os EUA

A saída das tropas dos EUA do Afeganistão – independentemente dos distanciamentos e críticas que se seguiram à débâcle – foi uma opção partilhada pelas facções da classe dirigente norte-americana que se degladiam com ferocidade. O acordo com os talibãs prevendo a retirada foi originalmente assinado em fevereiro de 2020 pelo então Presidente Trump e deveria ter sido concretizada até Maio deste ano. O novo Presidente Biden adiou a retirada, mas concretizou-a.

Para além da insustentabilidade financeira e política duma guerra que se arrastava sem fim à vista há 20 anos, também existe outra realidade a sublinhar: o acentuado declínio relativo dos EUA e a ascensão impetuosa da República Popular da China e do seu papel na economia mundial. Não se trata apenas de uma comparação de Produtos Internos Brutos, embora seja de sublinhar que a China já é hoje a maior economia mundial em termos de Paridade de Poder de Compra (PIB PPP). É também a entrada em força da China em setores tecnologicamente de ponta, entre os quais os voos espaciais, as telecomunicações 5G, a computação quântica, a robotização de inteiras instalações portuárias. E é sobretudo o desafio que a ascensão chinesa representa para o imperialismo, para mais vinda de um país que é herdeiro da segunda grande Revolução Socialista da História e é dirigido por um Partido que se define como marxista-leninista. O problema não está numa fictícia ‘agressividade’ chinesa. O que é bem real é a agressividade do imperialismo, que encara como ‘ameaça’ qualquer desafio à sua hegemonia mundial, nem que seja por permitir que o resto do planeta possa ter alternativas aos ditames do grande capital monopolista e das instituições a seu serviço (como o FMI e o Banco Mundial). Uma ‘ameaça’ contra a qual o imperialismo reage por todas as formas que considera necessárias e viáveis, incluindo a guerra, como o General Loureiro dos Santos antecipou há mais de duas décadas (Diário de Notícias, 13.3.2000).

É sobre esta base que assentam outros elementos de unidade entre as facções apoiantes de Trump e Biden no seio do grande capital dos EUA: a identificação da China como inimigo principal; a recentragem de toda a política externa e militar em função do grande objetivo de travar e domesticar a China; a necessidade imperiosa de inverter o curso de desindustrialização e decadência dos EUA para poder enfrentar esse ‘desafio’.

O Estado norte-americano precisa desesperadamente de sanear a sua situação financeira, para poder investir na reconstrução das decrépitas infraestruturas do país e tentar retomar um poderio económico e tecnológico que tem perdido (com óbvias implicações políticas e militares). Mas para isso terá de redirecionar aspectos fundamentais da sua política do último meio século, que conduziram ao empobrecimento acentuado de milhões de trabalhadores norte-americanos e a um descontentamento crescente que alimenta a crise política no país. Não é certo que essa reorientação seja concretizável, o que pode alimentar tendências aventureiristas.

Naturalmente que a retirada das tropas terrestres dos EUA do Afeganistão não significa o fim da ingerência no Oriente Médio, ou sequer no Afeganistão. Como terá dito o atual diretor da CIA, William Burns (9), «os militares norte-americanos podem ter saído do Afeganistão, mas a CIA não». O imperialismo já confiscou os dinheiros do Banco Central afegão no exterior. A ingerência e desestabilização do país e da região irá prosseguir também por meios aéreos ou espaciais («sobre o horizonte» como diz Biden) e por interpostas (novas ou velhas) organizações terroristas, como o misterioso ISIS-K. É expectável que sejam redirecionadas em função do alvo chinês, mas também visando desestabilizar outras potências da região, como a Rússia e o Irão, que têm afirmado de forma crescente a sua autonomia e resistência às desesperadas tentativas de manter um mundo hegemonizado pelos EUA.

Mas o fiasco afegão acabará por agravar em numerosos campos a crise da hegemonia planetária dos EUA. Mesmo entre classes dominantes tradicionalmente subordinadas ao imperialismo norte-americano, serão inevitáveis as discussões e avaliações sobre a melhor forma de defender os seus interesses neste instável mundo em profunda mudança e quando se multiplicam os sinais da decadência do poder do imperialismo norte-americano.

A vassalagem manifestada ao longo de décadas pela União Europeia e os seus governos – incluindo sucessivos governos portugueses – às políticas de guerra e agressão do imperialismo norte-americano é vergonhosa. São cúmplices dos crimes cometidos, nomeadamente no Afeganistão, cuja ocupação inicial pelos EUA foi convertida em «missão OTAN». E nem sequer detinham real poder de decisão, como ficou patente no momento da retirada. Esta vassalagem acrítica, que se manifesta igualmente em numerosos outros campos (participação noutras guerras de agressão e violadoras da Carta da ONU; empenhamento nas vergonhosas campanhas contra países soberanos, incluindo a confiscação dos seus bens, como acontece com as contas bancárias em Portugal da Venezuela Bolivariana; confrontação e sanções à Rússia) não impedem que os EUA se apropriem de forma mafiosa ou sancionem empresas europeias (veja-se o caso do assalto à jóia da coroa da engenharia francesa, a Alstom). No imperialismo, a concertação sempre coexiste com as rivalidades.

Mas a roda da História não pára. E cabe aos povos determinar o seu sentido de marcha, aprendendo as lições que lhe permitam retomar os caminhos dos avanços revolucionários.

Notas
(1) Veja-se o texto de Eça de Queiroz sobre o Afeganistão nas suas «Cartas de Inglaterra».↲
(2) «Polônia e Afeganistão. O cerco imperialista à contra-informação», Editorial Caminho, 1983.↲
(3) Veja-se a clarividente caracterização da realidade internacional na Resolução Política do XV Congresso do PCP, em 1996.↲
(4) Os sete países eram o Iraque, Síria, Líbano, Líbia, Somália, Sudão e Irã. Nenhum dos grandes patrocinadores do terrorismo fundamentalista estava nesta lista (www.democracynow.org, 2.3.2007).↲
(5) ‘Bagdá deve ser destruída’ em Latim, numa óbvia alusão à forma como o Senador Romano Catão terminava os seus discursos, pedindo a destruição do grande rival mediterrânico de Roma, a cidade de Cartago.↲
(6) Michael Ledeen, alegado autor desta ‘Doutrina’, é um homem do establishment e dos serviços secretos dos EUA. Foi o inventor da falsa e provocatória ‘pista búlgara’ na tentativa de assassinato do Papa João Paulo II.↲
(7) O chefe do Comando Central dos EUA, General McKenzie, confessou que uma família de 10 pessoas, incluindo sete crianças, foi morta «por engano» num ataque por drones no dia 29 de Agosto de 2021 (NY Post, 17.9.21).↲
(8) Ver o vídeo em www.consortiumnews.com, ‘Watch CN Live! – Afghanistan: the 20-year disaster», 31.8.2021 (perto da marca de 1h10m).↲
(9) Citado nas já referidas declarações de Scott Ritter.↲

Fonte: https://www.omilitante.pcp.pt/pt/375/Internacional/1850/Li%C3%A7%C3%B5es-da-derrota-imperialista-no-Afeganist%C3%A3o.html