A privatização da Atenção Primária à Saúde no Brasil

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Mais do mesmo ou aumento das exigências do capital: a ADAPS e o aprofundamento da privatização da Atenção Primária à Saúde no Brasil

Secretariado da Fração Nacional de Saúde do PCB

A criação do Sistema Único de Saúde (SUS) em 1988, como resultado do acúmulo de lutas dos movimentos populares, social e sindical das duas décadas anteriores, desde seu início já dava mostras das contradições fundamentais que o constituem: propunha-se a ser uma política de saúde inscrita num modelo de proteção social amplo, incompatível com o advento das políticas neoliberais que se instauravam, naquela época, no país.

Mesmo reconhecendo os avanços trazidos pelo SUS à população, as exigências do modelo econômico capitalista neoliberal de diminuição de investimentos em políticas sociais, flexibilização de direitos, dentre outras, podem ser apontadas como condições limitantes ao pleno exercício do direito à saúde, resultando em problemas como restrição de acesso a assistência, medicamentos, insumos e realização de exames, contribuindo com isso para a situação precária em que se encontram os trabalhadores da saúde (más condições de trabalho, salários defasados, perda de direitos, etc.).

Essa orientação política neoliberal, implementada a partir dos anos 1990, não foi rompida por nenhum governo, apesar de diferenças pontuais na execução das políticas de saúde. Hoje podemos caracterizar o SUS como um sistema historicamente subfinanciado, com uma ampla rede de atenção primária à saúde limitada em suas possibilidades assistenciais e uma rede de média e alta complexidade insuficiente, hegemonizada pelo setor privado conveniado ao SUS, que drena ainda mais seus recursos pela venda de serviços. Além disso, enfrentamos um processo de desfinanciamento do SUS, a partir do ano de 2017, com a instituição da Emenda Constitucional n° 55 ou “EC da morte”, que não somente congela como retira recursos das políticas sociais, medida que já subtraiu ao menos 25 bilhões de reais do Sistema.

Apesar da intensificação e do aprofundamento dos desmontes do SUS perpetrados pelo atual governo, suas limitações não se encontram no plano conjuntural, tratando-se de uma questão estrutural intimamente relacionada ao modo de produção capitalista que nega direitos e mercantiliza todos os aspectos da vida. O Estado, neste modo de produção com o seu conteúdo de classe, fomenta e garante a manutenção dos interesses privados de frações da burguesia que lucram no setor saúde historicamente, enquanto precarizam as condições de trabalho no SUS e sucateiam os serviços públicos.

Processo gradual que permeia toda essa situação é a privatização indireta dos serviços de saúde pelos chamados “novos modelos de gestão” (Organizações Sociais – OSs, Organização da Sociedade Civil de Interesse Público – OSCIPs, Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares – EBSERH) e arranjos institucionais como as parcerias público-privadas, em que o Estado transfere a função de execução das políticas de saúde e gestão dos serviços a essas entidades que se orientam pela lógica do setor privado, em detrimento das necessidades da classe trabalhadora, retirando direitos dos trabalhadores do setor, reduzindo o cuidado em saúde a procedimentos focalizados e orientando o processo de trabalho por metas que não respondem às necessidades sócio-sanitárias dos usuários do sistema.

À medida em que a crise do capital se agrava, iniciativas como a ADAPS (Agência de Desenvolvimento da Atenção Primária à Saúde) representam uma saída para a manutenção da reprodução e lucratividade do capital no setor saúde , seja pela ampliação de suas áreas de atuação ou pela apropriação do fundo público possibilitado por esses arranjos institucionais.

Nesse sentido, os interesses do capital concentrados na atenção secundária e terciária também se expandem na Atenção Primária. Tal nível de atenção, defendido pelos organismos internacionais como área de responsabilidade do Estado a partir de um pacote de serviços focalizados e mecanismos de combate à insegurança social gerada pela pobreza extrema, também se constitui em um campo cobiçado pela fração da burguesia empresarial do setor saúde em face de seu potencial de lucratividade.

A criação da Agência de Desenvolvimento da Atenção Primária à Saúde, na esteira do Programa Médicos pelo Brasil (Lei nº 13.958, de 18 de dezembro de 2019), constitui-se na maior iniciativa do governo federal em direção ao aprofundamento da privatização da Atenção Primária no país, já combalida pelas mudanças na sua organização, com a Nova Política da Atenção Básica – PNAB (Portaria nº 2.436, de 21 de setembro de 2017), e no seu financiamento, com o Previne Brasil (Portaria nº 2.979, de 12 de novembro de 2019).

A ADAPS constitui-se em pessoa jurídica de caráter privado, sob a forma de Serviço Social Autônomo. Do ponto de vista de suas competências, são previstas ações de gestão, execução de serviços assistenciais e o desenvolvimento de atividades de ensino, pesquisa e extensão, podendo, para isso, firmar convênios com entidades privadas nacionais e internacionais. Além de facilitar a incorporação da iniciativa privada à Atenção Primária, tal medida caminha para a distorção do princípio da descentralização, ao ignorar a responsabilização dos municípios pela atenção primária à saúde, cursando também com a ausência de mecanismos de controle e participação por parte dos trabalhadores da saúde e de usuários sobre suas ações.

A ADAPS se difere das formas institucionais de privatização anteriores que restringem formalmente os “fins lucrativos” nas empresas contratadas pelo SUS para fazer a prestação direta aos usuários. A ADAPS é diferente, portanto, das OSs que escamoteiam sua lucratividade através de contratos com empresas prestadoras de serviços ou de insumos (através de superfaturamento transferem recursos a elas) e aos altos salários dos seus gestores. A Agência amplia a flexibilização de contratação de trabalhadores do setor “nas condições de mercado”, sem incorporação ao regime jurídico único e correspondentes sistemas de aposentadorias, além de não estar submetida aos limites de contratação de pessoal pela Lei de Responsabilidade Fiscal. Portanto, aprofunda a desregulamentação e fragilização dos vínculos empregatícios no SUS.

O empresariamento da APS, que restringe a sua abrangência, é também facilitado pelo assento de entidades privadas no colegiado gestor da ADAPS, o que representa a inclusão de atores privados na tomada de decisão oficial e formal da política nacional de atenção básica.

Diferentemente dessas propostas, a implementação de um sistema de saúde que atenda aos verdadeiros interesses da classe trabalhadora perpassa por um financiamento que rompa com as medidas exigidas pelas políticas de ajustes fiscais e direcione o fundo público para atender as necessidades da classe trabalhadora, pela reorganização do modelo de atenção, pela reversão dos processos de privatização e pelo controle do trabalhadores na gestão das políticas de saúde, apontando para um SUS público, estatal em sua totalidade, universal e de qualidade, contribuindo com as bases de um projeto de sociedade próprio da classe trabalhadora que rompa com os ditames do capital. Portanto, reafirmamos a necessária defesa do SUS e a luta para além dele, pelo poder popular no rumo ao socialismo!