Viva os 90 anos de Zuleide Faria de Melo!

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Por Fábio Martins Bezerra – membro do Comitê Central do PCB.

Nesse 06 de janeiro, nossa querida Camarada Zuleide Faria de Melo completa 90 anos de vida!

E confesso que escrever sobre a Zuleide não é nada simples e fácil de fazê-lo, pois, por mais que se possa escrever sobre a história de vida dessa grande mulher, sempre corremos o risco de esquecer algo relevante de uma trajetória de vida militante, acadêmica e feminista cujas particularidades se confundem e se misturam intensamente.

Mas gostaria de ressaltar brevemente aquilo que talvez ainda não foi dito em outras homenagens e que só reforçam nossa admiração, carinho e amor por essa mulher comunista que merece um lugar de destaque na rica história centenária do PCB.

Alagoana de nascimento, Zuleide muito jovem decidiu mudar-se para o Rio de Janeiro, à época ainda capital do país, para dar sequência aos seus estudos, vindo a se formar em Ciências Sociais, fixando residência na cidade maravilhosa, desde então.

Em 1964, no ano do golpe, decidiu se organizar no PCB e nem a família tampouco seu cônjuge à época sabiam de sua militância. As tarefas que ela assumiu exigiam o máximo de discrição e, naquele período, seu perfil enquadrava-se nos quesitos necessários a algumas funções.

Durante mais de uma década tive o prazer de frequentar sua residência em Botafogo e comungar histórias de vida e de sua militância, principalmente nos anos 70 e 80, quando esteve à frente de um importante projeto de extensão junto a favelas do Rio de Janeiro, envolvendo saúde pública e organização das comunidades, ou quando assessorou o camarada Horácio Macedo, então reitor da UFRJ, em projetos de extensão no Complexo da Favela da Maré.

Foi em uma madrugada após uma longa reunião do CC que, conversando sobre conjuntura e seus desafios, que a camarada me contou uma passagem que sempre me vem à mente e de todas as histórias é a que mais me marcou.

Eram meados dos anos 70, quando o Secretariado Nacional solicitou à camarada que se dirigisse do Rio de Janeiro a São Paulo em uma viagem “bate e volta” a fim de entregar uma valise a um “contato” que teria todo um ritual de segurança e procedimentos para apresentar-se e assim confirmar que era a pessoa certa. O local do encontro seria a rodoviária de São Paulo.

Sem pensar duas vezes, Zuleide aceitou a tarefa e, para não despertar suspeitas, disse ao seu marido que iria visitar uma amiga em Jacarepaguá e só retornaria à noite (ela me disse que nessa época Jacarepaguá ficava tão longe do seu bairro que um passeio de ida e volta demorava praticamente quase o mesmo tempo que uma viagem Rio- São Paulo ida e volta de ônibus).

Cedo ela embarcou no primeiro ônibus para São Paulo, chegando no horário previsto e direcionando-se para o ponto indicado nas instruções que lhe foram dadas. Não demorou nem cinco minutos, um senhor trajando a vestimenta que haviam lhe informado se aproximou com um cigarro à mão e, sentando-se ao seu lado, perguntou se ela tinha fósforos, mostrando-lhe um isqueiro, sutilmente, em uma das mãos. Essa era a senha.

Ela respondeu dizendo algo que agora já não me recordo mais, mas que certamente não fazia nenhum nexo com a natureza da pergunta e o contexto, mas que adequava-se perfeitamente às instruções que foram repassados a ambos os camaradas.

Após alguns segundos sentados um ao lado do outro sem nada falar nem se olharem mais, ela se levantou e deixou sua valise no chão bem ao lado do assento onde se encontrava o distinto cavalheiro e, sem olhar para trás, pegou um táxi até o centro de São Paulo, desembarcou próximo à Praça da Sé, caminhou por algumas ruas e, depois de se certificar que não estava sendo seguida, pegou outro táxi e retornou à rodoviária para embarcar novamente para o Rio de Janeiro.

Não me contive e perguntei a ela se em algum momento teve curiosidade em ver o que havia na valise e ela, sempre com aquele sorriso no rosto, disse-me:

-Não!

– “E se desse alguma coisa errada?” Perguntei.

– “E se o cidadão não fosse o tal contato e se isso e se aquilo…?”

E antes que emendasse um rosário de perguntas e suposições, ela me fitou com seus olhos azuis e disse algo que hoje, passados mais de 25 anos, entendi onde ela queria chegar quando começou essa história.

– “Camarada, quando se está em uma conjuntura como aquela da Ditadura, nas condições em que nos encontrávamos, pode nos faltar tudo, mas coragem e acima de tudo respeito e confiança não nos podia faltar jamais, pois é isso que nos mantém vivos enquanto Partido”!

E respeito e confiança foram o que os membros do Secretariado Nacional depositaram naqueles camaradas para assumirem aquela tarefa, que certamente foi meticulosamente pensada para se evitar riscos e exposição desnecessárias.

E é sobre “respeito e confiança” que trago ao conhecimento de nossos camaradas e amigos, entre tantas memoráveis lições que essa incrível Camarada nos proporcionou, princípios fundamentais a toda e qualquer organização comunista, independente do contexto e dos cenários, pois para nós os desafios e os ataques sempre exigirão respeito mútuo e confiança em quem está nas trincheiras de luta, ao nosso lado, contra a horda de lacaios e agentes do capital.

Essa é uma singela homenagem a uma mulher que foi muito mais do que assessora de Luiz Carlos Prestes e Giocondo Dias, muito mais que articuladora da CEBRAPAZ nos anos 1980, responsável pela guarda dos arquivos de Astrojildo Pereira, presidenta da Associação Cultural José Martí- RJ por vários anos, uma das articuladoras da resistência contra o liquidacionismo em 1991/92 e presidenta nacional do PCB entre o XI e o XIII Congressos, em nossa trajetória de reconstrução revolucionária.

É uma homenagem acima de tudo a uma mulher cativante, forte e dona de uma inquebrantável firmeza ideológica, que foi e ainda é um exemplo para muitas gerações de comunistas e que, mais do que “respeito e confiança” como princípios para a militância política – em condições muitas vezes desfavoráveis e instáveis -, fez da coragem em lutar por uma outra sociedade, da convicção e, porque não dizer, do amor à causa revolucionária, os princípios de uma vida dedicada à subversão de tudo aquilo que nos oprime, explora e nos desumaniza.

Agradeço a honra e a oportunidade de ter desfrutado mais de duas décadas ao seu lado, querida Camarada Zuleide e agradeço a você as inúmeras lições de vida que nos passou e que nos inspiram a mim e a muitas pessoas que te conheceram, a dar sequência ao seu trabalho e a de tantos e tantas camaradas memoráveis nesses cem anos de trajetória de resistência e lutas em defesa do socialismo!

Salve nossa querida Camarada Zuleide Faria de Melo!